sábado, 29 de setembro de 2007

AUSENCIA

Não sei do dia de hoje,
nem do seguinte.
Estranho os passados,
futuros
e o talvez de mundos.

Tudo que sei
é o grande deserto
onde descansam
meus pés, razões
e pensamentos.

Tudo que sei
é o viver ao acaso
e ao sabor da sorte.

A MUSICALIDADE DO SEC XX


Caso tivesse de definir em termos musicais o século XX, daria certamente uma dupla resposta: Em sua primeira metade o Jazz seria seu estilo ou configuração musical mais rica e fecunda. Na segunda metade, indiscutivelmente o Rock and Roll mereceria a mesma adjetivização. Como apaixonado ouvinte de ambos os estilos, diria ainda que cada um a sua maneira e de modo contraditoriamente complementar construíram e estabeleceram a original e múltipla linguagem musical do último século.
O Jazz estabeleceu os padrões básicos da dança moderna, inventou a “musica popular” da civilização industrial urbana, definindo um modo novo de fazer e “sentir” música, uma música mais para o corpo e os sentidos, para a excitação, do que para alma e o leve enterterimento social. A própria palavra jazz deriva de jass, um termo obsceno.
O Rock and Roll aprofundou essa nova sensibilidade com a eletrificação dos instrumentos insistindo, tal como o jazz, em uma ritmilidade frenética baseada na combinação tumultuada de vários instrumentos, como se reinventando a caoticidade e agressividade de sons e ruídos que decoram as paisagens urbanas.
Na medida em que esse novo modo de sentir e viver música estabelecido pelo Jazz e perpetuado e transformado pelo Rock destinava-se ao corpo e aos sentidos, engendrou formas comportamentais e padrões culturais específicos e ant-convencionais que foram naturalmente associados a um abstrato ideário de liberdade, contribuindo para a instabilidade das formas tradicionais de cultura e sociabilidade e a verdadeira revolução dos costumes que “deu o tom” dos anos sessenta e setenta em todo o mundo ocidental.

sexta-feira, 28 de setembro de 2007

LITERATURA INGLESA IX


Em março de 1941, Virginia Woolf ( 1882-1941) se suicidaria nas frias águas do rio Ouse, escrevendo tragicamente o último capítulo de sua vida e melancolia. Deixava como legado uma literatura única e revolucionária, reflexo direto de sua profunda inquietude interior. Ouso dizer que, a partir dela, a literatura inglesa e britânica adentrou com raro brilho no séc. XX , através de sua sensibilidade e consciência peculiar.
Os monólogos, devaneios e disgressões das personagens, deslocados de qualquer eixo narrativo, fazem de obras como Passeio ao Farol (1927), O Quarto de Jacob ( 1922), Orlando(1928) e As Ondas (1931), um verdadeiro mergulho nos abismos da consciência humana em seu estranhamento e envolvimento  com o mundo exterior, com nossos vazios, angustias e incertezas.
Virginia Woolf permanece para mim, por tudo isso, como a maior escritora do séc. XX ou, pelo menos, uma daquelas cuja leitura mais surpreende e fascina...

“... O estranho em relação à vida é que, embora sua natureza deva ter sido evidente para todo mundo há centenas de anos, ninguém deixou o registro adequado. As ruas de Londres estão mapeadas; nossas paixões não. O que vamos encontrar ao dobrar essa esquina?”


( Virginia Woolf. O Quarto de Jacob/ Tradução de Lya Luft. RJ: Nova Fronteira. 2º Ed, 2003; p. 105.)

SIR GAWAIN E O CAVALEIRO VERDE




Sir Gawain e O Cavaleiro Verde é um poema épico oral de autoria desconhecida difundido na velha Inglaterra e transcrito por volta de 1400. Dentre as composições do ciclo arthuriano esta chama atenção pela rigorosa estruturação da narrativa.
A história inicia-se na noite de ano novo com a surpreendente e repentina aparição de um misterioso cavaleiro na corte do Rei Arthur. De estatura gigantesca, armadura e armas verdes, impunha uma acha no lugar da espada e lança um curioso desafio a todos os cavaleiros ali reunidos: Aquele que ousasse tomar sua acha e decapita-lo com um único golpe deveria no ano seguinte, também em noite de ano novo, apresentar-se na Capela verde para oferecer-se ao mesmo desafio. Gawain, sobrinho do Rei, oferece-se para desferir o golpe mortal. Apesar de sua precisão, perante os atônicos olhares de todos os presentes, como se nada tivesse acontecido, o corpo decapitado ergue-se e pega a cabeça ensanguentada nas mãos, e após confirmar o compromisso ali selado retira-se pacificamente.
Exatamente um ano depois, Sir Gawain deixa a corte do Rei Arthur para buscar a capela verde e cumprir o bizarro pacto. Suas errâncias em torno desta estranha demanda são marcadas por vários episódios simbólicos que personificam os desafios enfrentados pelo herói na busca de sua “redenção” ou individuação. Mas o mais curioso deles é aquele no qual o próprio cavaleiro verde, em sua capela, esclarece a Gawain todo o mistério por traz do desafio e se apresenta. Impossível precisar o pleno significado desta passagem que apesar da cristianização intencional do manuscrito, mantém seu “encanto” pagão....

“... Bertilak de Hautdesert é como me conhecem nesta terra. Fui encantado e minha cor foi transformada pelo poder de Morgana, a Fada, que mora em minha casa, por muitas artimanhas de magia que aprendeu com o sábio Merlim, a quem envolveu em seu amor por algum tempo, como sabem todos os cavaleiros em Camelot.

Assim “Morgana, a Deusa”, ela se fez:
É o nome com que exerce seu fascínio.
Ninguém possui orgulho ou altivez
Imune a tal poder, a tal domínio.

_ Ela me enviou com este disfarce à vossa corte famosa, para pôr à prova o grande orgulho da Casa, a reputação e o renome da Távola Redonda. Encantou-me deste modo estranho para enfeitiçar-vos os sentidos, para magoar Guinevere e aguilhoá-la até que morresse apavorada diante daquele fantasma fabuloso que falava a segurar a cabeça nas mãos, perante a mesa principal. É esta que tenho em casa, a velha dama. Ela é, na verdade, sua tia, meia irmã de Artur, filha da Duquesa de Tintagel, em quem, depois, Uther gerou Artur, que agora reina. Por isso eu te peço, bravo cavaleiro, que voltes ao encontro da tua tia, que te alegres em minha casa, pois és estimado por meus homens.”

(Sir Gawain e o cavaleiro verde/ Anônimo; tradução de Marta de Senna. RJ: Francisco Alves, 1997; p.123 et seq.)

terça-feira, 25 de setembro de 2007


DELIRIO EM MADRUGADA


Tento conciliar o sono e o dia seguinte
no passar das rotas coisas
de vida e rotina
que me fazem ser.
Vontade de querer
o que não sei
no improvável da própria vida,
adivinhação de destinos
distantes e perdidos
no colo da mansa madrugada virgem.

TEMPO ABSOLUTO

O mundo dos velhos dias
assombra-me a alma
como se fosse todo o passado
uma profecia as avessas
prestes a ganhar o dia
e reinventar o futuro
no vazio do meu presente
cada vez mais descartável.

Tento pensar
no aprofundar-se dos dias
como um aperfeiçoamento,
como um esforço contínuo
de busca
da mais perfeita existência.
Como se fosse possível
esquecer erros
e enfeitar acertos
até o esquecer de todas
as incertezas
dos atos que se perdem
em meus dias.

CRÔNICA RELÂMPAGO IX

O Tempo da permanência de objetos e lugares em nossas vidas tornou-se incerto e imprevisível, convertendo-se em uma perfeita alegoria para as emergentes sensibilidades do tempo presente. Se tempo e espaço são inequivocadamente categorias contingentes da percepção consciente, historicamente enraizadas e enraizadoras da cultura moderna, sua articulação em nosso referencial de mundo vem se tornando cada vez mais complexa na medida em que deixamos, por exemplo, de ter e viver aquilo que chamaria, um pouco impropriamente, de “culturas pessoais de memória”. Em outros termos, nossos descartáveis utensílios domesticos, fotografias e caseiros filmes digitais já não possuem hoje em dia uma aura viva, uma alma ou marca que lhes permita sinalizar significativamente nosso lugar no tempo e espaço de todos os dias, uma permanência ontológica relativa capaz de tornar o nosso mundo pessoal significativamente inteligível.
Uma visita a antiquários, o contato com a atmosfera e realidade mágica que a ontologia dos objetos antigos propiciam, como se quase dizendo a essência dos contextos e vidas a que pertenceram, é mais do que suficiente para a constatação de que algo mudou nas estratégias construtivas de nosso universo pessoal. Uma velha escrivaninha era como um monumento do existir biográfico do seu dono, algo que se incorporava ao seu próprio mundo vivido, como uma missiva escrita em cuidadosa caligrafia. Hoje em dia, nossos objetos são descartáveis como as próprias realidades estabelecidas pelos nossos contextos vividos. Não me cabe aqui dizer se isso é positivo ou negativo, mas apenas constatar que algo mudou e não apreendemos ainda todos os possíveis desdobramentos e significados disso...

LITERATURA INGLESA VIII

Conheço muito superficialmente a poesia materialista e, ao mesmo tempo, intimista e melancólica de Percy Byshe Shelley ( 1792-1822). Não tive ainda o prazer da leitura daquelas que podem ser consideradas suas maiores obras. Refiro-me ao poema filosófico Queen Mab ( Rainha Mab) ou Alastor or the Spirit of Solitude ( Alastor ou o Espírito da Solidão).
Arrisco-me, entretanto, a dizer, com base nos poucos versos seus que tive o prazer de ler e sentir, que em sua poesia emerge uma lírica singular, sensual e imaginativa, onde a natureza se faz experiência de mistério e, ao mesmo tempo, conhecimento, através do devaneio poético.
Ironicamente este singular poeta encontrou a morte nos braços da fúria da própria natureza morrendo afogado durante um naufrágio ocorrido em uma tempestade que se desencadeou sobre o golfo de Spezzia, na itália....
Reproduzo aqui um fragmento de um de seus poemas menores: A Uma Cotovia que muito bem ilustram sua prodigiosa inventibilidade.

“...Que coisas são fontes
Do teu canto em flor?
Que ondas, campos, montes?
Que céu, de que cor?
Que imenso amor dos teus, que ignorância da dor?

Ao teu claro gozo
Languidez não vem;
Tédio doloroso
não te assombra o bem:
Amas, sem ter sabido o tédio que o amor tem.

Dormindo ou desperta,
Devesa ter a morte
Uma luz mais certa
Que a da nossa sorte.
Senão teu canto não seria claro e forte.

Da saudade ao sonho
Aspiramos tanto!
Nosso ar mais risonho
É da dor o manto;
Nossas canções mais suaves são as de mais planto.

Mais que todo o ouro
Que um canto descerra,
Que todo o tesouro
Que em livros se encerra,
Teu canto ao poeta val, desdenhador da terra!

Soubesse eu o que goza
Tua alma, e tal fora
A minha harmoniosa
E lírica loucura,
Que o mundo escutaria como escuto agora.”

( Clássicos Jackson. Vol. XXXIX; POESIAS, 2º Vol. Seleção de Ary de Mesquita. RJ/ SP/ PA: W.M. Jackson Editores; s/d. p. 57 et seq.)

MARIA DE FRANCE E A MATÉRIA DA BRETANHA


Quase nada sabemos sobre Marie de France, a não ser que viveu no sec. XII. Na introdução que preparou para a tradução de suas famosas Lais, Antônio L. Furtado assim especula sobre essa curiosa personagem feminina:

“... Quanto a pessoa da autora, nada conhecemos de sua biografia e nem ao menos sabemos quem foi. Entre as hipóteses sugeridas pelos estudiosos figuram as quatro seguintes: Maria, abadesa de Shaftesbury, meia irmã do rei Henrique II da Inglaterra; Maria de Meulan ou de Beaumont, filha do conde inglês Waleram de Beaumont; Maria, abadessa de Reading, naquela época centro importante da atividade literária, e que estão mantinha a posse de manunscrito contendo os Lais e as Fables; Maria, condessa de Bolonha, filha do rei inglês Estêvão de Blois e de Matilde de Bolonha. Em qualquer caso, parece ter sido de origem normanda, em vista do dialeto de francês antigo que empregava. Supõe-se porem que tenha vivido por longo tempo na Inglaterra, citando-se neste sentido: o modo como tratou algumas narrativas localizadas em solo inglês; a intromissão em seus escritos de algumas palavras inglesas; e o fato de ter traduzido as Fábulas dessa língua. A permanência na Inglaterra faz crer que o “nobre rei”, objeto da dedicatória incluída no prólogo dos Lais, tenha sido precisamente Henrique II, homem de considerável cultura, que deu estímulo decisivo à emergência da tradição literária arturiana.”

( Lais de Maria de France/ Tradução, introdução e notas de Antônio L. Furtado; prefácio de Marina Colassanti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 20.)

Especulações a parte, o fato é que Maria é uma das mais singelas e encantadoras vozes femininas da Idade Média. A atmosfera feérica, imaginativa e sensual de seus pequenos poemas narrativos personificam um aspecto mais leve da matéria da Bretanha, voltado exclusivamente para a celebração do amor cortes a margem da saga personificada pelo monumental ciclo arturiano.
O maravilhoso bretão encontra-se nas páginas dos seus Lais através da aventura e desventura de princesas e principes, animais fantásticos e encantamentos sem par, de modo tão sereno que podemos classificar seus Lais como contos de fada; mesmo considerando a época em que forma compostos. Afinal, eles não se destinam a outra coisa a não ser a evasão e a fantasia em seu sentido mais gratuito e leve.

O FRAGMENTO COMO MÉTODO

O Fragmento tornou-se a mais apropriada forma para o exercício da atividade reflexiva. Isso na medida em que a indeterminação, a pluralidade de possibilidades ou o deslocamento da problemática da verdade, fizeram-se visíveis no horizonte do pensamento contemporâneo.
O fragmento destina-se ao entrelaçar de sucessivas e plurais indagações que estabelecem variadas conexões onde o conjunto não é a mera soma das partes, onde o sentido último não é dado a não ser pelo artesanal e subjetivo preencher de vazios.
Quando nenhum sentido é sistematicamente dado, a intuição se torna a essência do exercício de pensar e a alma do uso metódico do fragmento.

O OUTRO DO TEMPO

Mando notícias
de algum rosto esquecido
no fundo da memória,
de alguma persona desconhecida
e presente em meu perder de realidades
idealizadas e possíveis
no quase perfeito do meu mundo vivido.
Ser apenas o cotidiano rosto de todos os dias
não me faz suficientemente real
no impreciso tempo do mundo
e descubro a persona oculta
como o mais profundo dizer
de mim mesmo
no pouco de cada dia vivido.

CRÔNICA RELÂMPAGO VIII


Normalmente concebemos as rotinas como um conjunto fechado de fatos e atos diariamente reproduzidos mecânicamente, um autêntico trabalho de Cicifo, ao qual somos obrigados pelos imperativos da sobrevivência imediata. Mas as rotinas possuem movimentos e nuanças internas que as tornam algo mais do que um repetitivo e enfadonho esforço.
O roteiro obrigatório de um dia não elimina, afinal, sua singularidade no vasto corpo dos anos, mesmo que ela nos escape, já que apenas eventualmente guardamos na memória a aventura banal de um dia qualquer. Independente disto, no acaso de cada dia, toda rotina parece manter uma sombra, um duplo de si mesma, a nos dizer a urgência de opções ou golpes inesperados de tempo que dão visibilidade ao que até então não percebíamos ou não participava diretamente da tediosa procissão de dias que definem a vida.
Acredito em linhas gerais que as rotinas mudam em sua permanência. De algum modo discreto elas cultivam descontinuidades em suas estruturas aparentemente rígidas. A inércia dos dias e de nós mesmos, afinal, não passa de uma conveniente ilusão...

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

GRA|NDE MÃE E ETERNO FEMININO

Quando aqui aludo a “Mãe”, reporto-me a uma imagem arquetípica e, portanto, a alguma coisa que não tem realidade no tempo e no espaço, mas atua dentro de nós concretamente como uma espécie de princípio, “força”, ou pré- disposição, que em nada depende da nossa vontade para existir ou agir em nossos afetos e imagens de realidade. Um arquétipo constelado cria um estado de comoção bio-psíquica ambivalente. No caso do arquétipo da “Grande Mãe” estamos lidando com a imagem mais próxima do “arquétipo primordial” cuja principal expressão é o círculo, o urobolos, onde nada se diferencia e tudo está contido. Trata-se da mais obscura e inconsciente realidade do “Grande Feminino” que gradativamente torna-se “Mãe”, isto é, um lugar de nascimento e proteção, assim como de transformação e morte, um recipiente mágico ou escuro que, em termos simbólicos, podemos associar a terra, a matéria, ao jardim, a flor, ao mar, a lua, a noite, a gruta, a vaca, a cobra, ao mundo subterrâneo dos mortos, e ainda, em outra dimensão, a pia batismal, o vaso, a Igreja, a casa, a cidade, o caldeirão, o forno, o abismo, a cruz, dentre muitos outros exemplos. Além disso, antropomorficamente a “Mãe” pode ser personificada tanto por figuras como a mãe natural, a avó, a professora, e a sogra, quanto por divindades femininas como as Nornas, Eva, Ísis, Deméter e Maria.

ERICH NEUMANN, partindo das formulações de JUNG, concebeu uma interessante distinção entre o caráter elementar e de transformação do Feminino. Em suas próprias palavras:

“Designamos por caráter elementar o aspecto do Feminino que, como o “Grande Círculo” e o 'Grande Continente', demonstra a tendência de conservar para si aquilo a que deu origem e a envolve-lo como uma substância eterna. Tudo o que dele nasceu lhe pertence, continua sujeito a ele e, mesmo quando o indivíduo se torna independente, o Grande Feminino relativiza essa autonomia, tornando-a uma variante secundária do seu existir, enquanto Grande Feminino.(NEUMANN Erich. A Grande Mãe. Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. SP: Cultrix,1996, p.36. )

Trata-se aqui da “inércia natural do âmago da psique”, da insuperável “gravitação do ego” em torno da psique objetiva ou daquilo que costumamos definir como “inconsciente” ou fundamento desconhecido da natureza. Por outro lado, há uma tendência oposta igualmente poderosa:“O caráter de transformação do Feminino, ao contrário do caráter elementar, é a expressão de uma outra constelação na psíquica fundamental. No caráter de transformação enfatiza-se o elemento dinâmico da psique, o que, ao contrário da tendência conservadora do caráter elementar, coloca em movimento algo já existente e leva a uma modificação , em suma a transformação. Durante o desenvolvimento psíquico, o caráter de transformação da psique que é projetado no Feminino, encontra-se primeiramente submetido ao “domínio anterior” do caráter elementar, e só aos poucos vai se desligando daquela supremacia para adquirir uma forma própria e independente.”( Ibidem. P.38.)

O caráter transformador do Grande Feminino se assemelha a um processo de integração e transformação interna da psique, através da matéria, da qual a consciência participa enquanto “criatura” e “sujeito”, enquanto aquele “particular criativo” envolvido por uma totalidade indefinida e inesgotável que o modifica na medida em que se faz em inúmeras variações de si mesmo. O caráter elementar do Feminino, advirto, pressupõe uma consciência informe e pouco diferenciada do inconsciente, enquanto o caráter transformador pressupõe uma consciência movida por um impulso de diferenciação progressiva do inconsciente que acaba por conduzir a uma consciência masculina ou racional de mundo.
A “Mãe” só pode ser definida como tal através do filho. Do mesmo modo, o filho só pode definir-se como tal em função da mãe. Estas duas imagens arquétipicas encontram-se relacionadas como dois opostos complementares. Assim sendo, é impossível compreender uma sem a outra. Do mesmo modo que uma semente de laranja jamais gerará uma mangueira, o inconsciente jamais originará algo inteiramente diverso de si mesmo. Falar sobre a componente feminina da fenomenologia da psique projetada na imagem da “Grande Mãe” é reconhecer exatamente esta unidade de opostos que desafia nossa tradicional visão de mundo, mergulhar na fantasia das mais elementares e primais realidades da natureza humana; regidas pelo princípio de Eros.
O embaixador J.O DE MEIRA PENNA, muito precisamente, assim define o arquétipo materno em sua dimensão impessoal / coletiva:

“O inconsciente é precisamente o domínio insondável dos arquétipos, “os reinos infinitos de todas as formas possíveis” onde “serpenteiam os fantasmas como um rio de névoas”... As Mães são as imagens primordiais- a expressão multiforme, englobante e dramática daquilo que é o arquétipo telúrico primordial: a Magna Mater, a Grande Mãe, a Terra Mãe, a Natureza.”( MEIRA PENNA, José Osvaldo de. Em Berço esplendido. Ensaios de Psicologia Coletiva Brasileira. RJ: Topbooks / Instituto Liberal, 1999, 2º Edição, p.54. )

Enquanto as imagens masculinas do inconsciente tendem a um relacionamento mais próximo da consciência e do mundo do ego, as imagens femininas mergulham nas obscuras paisagens telúricas do inconsciente, no mistério das origens irracionais da realidade humana e trans-humana, revelando os incompreensíveis hieróglifos da Magna Carta da alma e da própria vida.

Pode-se encontrar em uma fala de Mefistófeles, nas páginas do FAUSTO de GOETHE, uma definição singular do mistério arcaico do feminino personificado pela imagem arquétipica das deusas mães:

“Revelo-te, contrariado, um dos maiores mistérios. Há deusas poderosas que reinam na solidão. Em volta delas não existe sequer o lugar, menos ainda o tempo. Sentimo-nos comovidos só de falar nelas. São as MÃES.” ( GOETHE, J. W. Fausto. RJ: Otto Pierre Editores, 1980, p. 250.)

Talvez, o que antes de tudo diferencie a imagem arquétipica de Anima da imagem arquétipica da Grande Mãe seja justamente a ausência da criança, do filho. Anima é normalmente personificada pela mulher velada ou desconhecida, a irmã, a amiga, a amante ou a virgem. EMA JUNG em um original ensaio sobre a presença arquétipica aqui discutida, a identifica ainda, em seu plano mais elevado, com a própria Anima Mundi, com a representação de algo precioso e escondido no seio da matéria e do mundo. Assim sendo, em sua dimensão supra pessoal, que não pode ser integrada totalmente pela consciência, enquanto componente diferenciado da totalidade da personalidade, Anima seria uma espécie de Deusa da Natureza. Além de vestir a pele de alguns animais como a lebre, a gata, ou pássaros como a pomba e a águia, como é possível deduzir de imagens recorrentes nas narrativas folclóricas e religiosas, também podemos encontra-la nas imagens de fadas, sereias, fantasmas, ou ainda, deusas vinculadas a fertilidade e heroinas como Afrodite, Cibele, Helena, Atena, etc.

O ARQUETIPICO DA GRANDE MÃE E A EXPERIÊNCIA ARCAICA DA FÓRMULA VASO-CORPO

Em Psicologia analítica o arquétipo do grande feminino, da Grande Mãe, confunde-se em suas variadas manifestações com o simbolo central da própria representação do inconsciente...
Durante o sono o ego retora diariamente ao seio materno do inconsciente do qual se originou e não é difícil adivinhar sua permanência diurna em nossas íntimas nostalgias e fantasias de infância ou no fundo dos mais criativos e profundos devaneios e ansiedades que nos acompanham pela vida a fora.
Como introdução ao tema gostaria de sugerir aqui uma reflexão em torno do simbolo central do feminino, a equação arquetípica corpo-vaso, valendo-me de um fragmento da obra mais conhecida sobre o assunto, ou seja, A Grande Mãe: Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente de Erich Neuman.

“ O núcleo simbólico do Feminino é o vaso. Desde os primórdios da evolução até seus estágios mais recentes, encontramos esse símbolo arquétipo como a essência do feminino. A equação simbólica básica MULHER=CORPO=VASO corresponde, talvez, a experiência básica mais elementar da humanidade com relação ao Feminino, em que este além de vivenciar a si próprio, será vivenciado pelo Masculino.
Todas as funções vitais básicas, principalmente o “metabolismo”, ocorrem neste esquema corpo vaso, cujo o “interior” é desconhecido. Suas zonas de entrada e saída tem um significado muito especial, pois da mesma forma que o alimento e a comida são colocados para dentro desse vaso desconhecido, dele mesmo “nascerão” coisas de todas as funções criadoras, desde as excreções e o sêmen, até a respiração e a palavra.
Todos os orifícios corporais- olhos, ouvidos, nariz, boca, (umbigo), reto, área genital-, assim como a pele, enquanto considerados locais onde ocorrem as trocas entre o interior e o exterior, tinham um aspecto numinoso para o homem primitivo. Por esse motivo, eles também são destacados como áreas de “ornamentação” e proteção e, nas auto-representações artísticas, tem um papel especial enquanto ídolos.
A concretude física do corpo vaso, cujo interior permanece sempre obscuro e desconhecido é a realidade do indivíduo, o local onde vivencia todo o mundo instintivo do inconsciente. Tal processo se inicia com as experiências básicas do recém nascido de fome e sede, que o incomodam de dentro para fora- a partir da escuridão do corpo-vaso- como todo tipo de ânsia, dor e pulsão. Ao mesmo tempo, tanto o ego como a a consciência ocupam tipicamente os seus lugares na mente, onde serão apercebidas, por essas instâncias, reações estranhas, oriundas do interior do corpo-vaso.
A equação arquetípica corpo-vaso é de importância fundamental para a compreensão do mito e da simbologia e, além disso, para compreensão da imagem de mundo do homem primitivo.
(...)
O simbolismo do corpo como vaso ainda está vivo para o homem moderno, na medida em que acredita na existência de uma alma contida no corpo. Também falamos de nossa “interioridade” como o mundo interno, nossos valores mais íntimos etc., quando desejamos nos referir a conteúdos da alma ou do espírito, como se eles existissem “dentro” de nós, em nosso corpo vaso, e como se pudessem 'sair' dele.” (Erich Neumman. A Grande Mãe: Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. SP: Cultrix, 9º ed, 1999; p. 46)

QUASE EXISTÊNCIA

ACASO E VIDA

O acaso é mais sábio
que os significados
que escrevemos na vida
pelos caminhos do mundo.

Pois a vida
não tem sentidos
guardados em misteriosos propósitos
ingenuamente concebidos
pela ingenuidade d'alma.

A vida é apenas
o ser de todas as coisas
em movimento
dentro da gente
no brincar da sorte
e do acaso.

EGO E VENTO

Esqueço por um instante
o desarticulado conjunto biográfico
esculpido pelas inúteis rotinas
que me dão forma.
Pois vim ao mundo
para saber
a aventura de sucessivos acasos
e desencontrar futuros
no vento norte da vida.

MERLIM E CERNUNNUS

Na Vita Merlini (1135) cuja autoria é atribuida a Geoffroy de Monmouth, Merlim surge como o rei de Demetae ( Dyved-Pais de Gales) que enlouquece diante dos horrores da guerra refugiando-se na floresta da Caledônia ( Velyddon, no sul da Escócia).
Isolado torna-se vidente e profeta assistido por sua irmã Ganeda que lhe constroi um palácio de setenta portas e setenta janelas de onde pode dedicar-se a observação dos astros. O texto é perpassado por suas profecias sobre o futuro da Bretanha.
Este curioso “Merlim Silvestre” encontra-se mais próximo do imaginário pagão do que o “filho do diabo” de Robet de Boron, mas ambos compartilham símbolos comuns. Alguns dos mais significativos são a errância, a ocorrência em ambas narrativas do episódio de previsão de uma trípice morte onde o riso anuncia a vidência associando-se ritualisticamente a ela como um sinal irreverente.
Julgo inútil aqui especular sobre as possíveis fontes comuns utilizadas pelos dois autores; parece-me mais interessante apontar para a definição do mito a partir de certas imagens centrais e configuradoras que levou a tradição a associar a personagem de Merlim a enigmática figura do deus gálico conhecido como Cernunnus ( o cornudo) representado com galhos de cervídio, por exemplo, na bacia de Gundrestup, onde aparece rodeado por diversos animais e serenamente imóvel em posição búdica em uma cena fantástica cujo o pleno significado hoje nos escapa. Sobre Cernunnus, seguro dizer que era um deus da natureza e da floresta possivelmente associado ao Nemeton ( bosque sagrado) do imaginário druidico. Deus das metamorfoses e do renascimento, em alguns aspectos, aproxima-se do mercúrio alquímico e não é realmente difícil entender as razões especulativas que o fizeram ser associado a Merlim....

DEVANEIOS E COTIDIANO



EVASÃO
Não presto atenção
aos cenários dos meus labores.
Sonho montanhas enevoadas
acima da dança dos arvoredos
em qualquer lugar distante
dentro de mim.

A realidade imediata
quase não existe
em suas incertezas,
tumultos e túmulos.

Exploro em emoção sem brilho
as vastidões infinitas
do meu intimo vazio.

NADA E COTIDIANO

Cai sem sentido ao chão
um copo vazio.
Um copo que de repente
não mais existe
e dá vida a cacos inertes
sobre um carpete imundo.

Tudo não passa
de uma caseira banalidade
sem consequências,
algo indigno do título de acontecimento.

Entretanto,
no acaso do copo e dos cacos
vislumbro toda profundidade
do incômodo significado
do NADA
nos pedaços dos meus eus dispersos
no ocaso de alguma vã filosofia.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

LITERATURA INGLESA VII

Oscar Fingall O' Flahertie Wills Wilde (1854-1900) é na verdade um autor essencialmente britânico já que nasceu em Dublin, Irlanda.
Publicou, entretanto, pela primeira vez em Londres seus primeiros versos por volta de 1878 e em pouco tempo notabilizou-se como autor de peças teatrais muito bem sucedidas entre as quais constam O Marido Ideal, O Leque de Lady Windermare e aquela, considerada por muitos sua obra prima, A Esfinge.
Pessoalmente estou mais familiarizado como as densas e indefiníveis páginas do seu único romance: O retrato de Dorian Gray e com suas Histórias de Fadas. Estas últimas, diga-se de passagem, foram escritas. Como se sabe, para seus filhos. Wilde casou-se em 1884 com Constance Mary Lloyd, com quem teve dois rebentos. Após o nascimento destes repentinamente tomou horror da vida conjugal e passou a viver em companhia do jovem Alfred Douglas, escândalo que lhe custou à época dois anos de prisão e toda a boa reputação como escritor. Durante o período de carcere redigiu De Profundis, uma amarga apologia a dor e da melancolia... Mas em suas aparentemente inocentes Histórias de Fadas, já nos deparamos com o amargor e a tristeza como traços essências da vida em meio a feiura, encanto, surpresas, ilusões e desilusões que definem o mundo.
No prefácio que elabora para o Retrato de Dorian Gray, Wilde, como bom critico da moral vitoriana que era, traça a imagem da atividade artística como um exercício absoluto de liberdade, uma criação acima de qualquer restrição ética ou moral, da subjetiva “impressão das coisas belas”... Em suas próprias palavras ao término do citado prefácio:

“ Pode-se perdoar-se a um homem a criação de uma coisa útil, contando que ele não a admire. A única justificativa para a criação de uma coisa inútil é que ela seja admirada intensamente.
Toda arte é absolutamente inútil
.”

Mas esse encantamento pelo beleza encarnada na inutilidade de uma obra de arte pressupõe também que:

“... Toda arte é ao mesmo tempo aparência e símbolo.
Os que penetram abaixo dessa aparência o fazem por sua conta e risco.
Os que decifram o símbolo também o fazem por sua conta e risco. A arte reflete o espectador e não a vida.”


Uma passagem desta obra merece aqui ser citada:

“...- Eu agora, nunca aprovo nem reprovo nada. Aprovar e reprovar são atitudes absurdas para com a vida. Não viemos ao mundo para dar largas aos nossos preconceitos morais. Jamais presto atenção ao uie diz o vilgo, nunca interfiro no que fazem as pessoas sim´páticas. Quando uma personalidade me fascina, seja qual for o modo de expressão escolhido por essa personalidade, considero-o absolutamente satisfatório. Dorian Gray apaixonou-se por uma linda pequena, que personifica Julieta, e pretende casar-se com ela. Por que não? Se casasse com Messalina, nem por isso seria menos interessante. Você sabe que eu não sou um paladino do casamento. O verdadeiro inconveniente do casamento é que ele extingue em nós o egoismo. E os seres sem egoismo são incolores. Carecem de personalidade. Ainda assim, há temperamentos que o estado conjugal torna mais complexos. Esses conservam o seu egotismo e acrescentam-lhe muito muitos outros “egos”. Obrigados por isso a viver uma vida múltipla, tornam-se superiormente organizados. E ser superiormente organizado é, ao meu ver, a finalidade da existência do homem.” (Oscar Wilde. O Retrato de Dorian Gray. Tradução de Marina Gaspary. RJ: Ediouro, 9º Ed., 2001, p.73.)

MARCAS

Tento inutilmente esquecer
que estou aqui,
que as horas demoram
a ficar dentro de mim
definindo o vazio
de tempo souto e insosso
onde me desconheço
no cair morto
dos segundos
que me escapam rebeldes
em um grito de eternidade.
Mas tudo é um momento;
um impertinente acontecimento
no vago e provisório tempo
que escreve-se como ingrata tatuagem
na pele incerta da alma.

ILUSÕES

Perdi-me sem querer
ou perceber
em um dia incolor
no vazio deserto
das horas.

Esvazei-me de mim
bebendo o silêncio
dos mais densos esquecimentos
Como se nada fosse importante,
como se não houvesse realidade,
ou existisse qualquer possibilidade
de um amanhã seguinte.

A vida se desfez
em qualquer pensamento
de ideal distante,
de onde me acenavam
ilusões e cansaços
convidando a mentira
de uma migalha
de mera felicidade.

CRÔNICA RELÂMPAGO VII


Liberdade é uma palavra relativa, quase vazia... E, por outro lado, um estado impreciso do espirito, uma inquietação ou silencioso grito, que nos ensina o gosto do ar e do céu diante de cada dificuldade que nos impõe a vida.
Liberdade talvez se confunda com a irracional necessidade de termos escolhas, mesmo quando não as enxergamos, quando elas não se confundem com o sabor de opções, e se impõem como o amargo possível imediato ao qual nos leva a vertigem dos dias.
Liberdade... é algo que nos habita, principalmente quando não nos sentimos livres.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

AUSÊNCIA

Faz poucos dias
perdi-me
em luzes e fantasias
de sol pequeno,
fiquei esquecido
por mim mesmo
a margem de alguma estrada
onde os quatro ventos sopravam
todos os cantos do infinito.

Variações de nada
decoraram meu céu impuro
no impreciso vazio
das saudades que tive
de mim
no saber de todas as coisas.

CHRÉTIEN DE TROYS E A MATÉRIA DA BRETÂNEA


O frances Chrétien de Troyes ( aprox. 1135 - ? ) me parece ser, dentre os autores que se ocuparam da matéria da Bretanea, aquele em que a problemática de sua cristianização não ocupa o primeiro plano d anarrativa, a exemplo de outros dos seus continuadores, como Robert de Boron. Em seu Percival ou o Romance do Graal, a imagem do miraculoso vaso associa-se mais significativamente ao tema pagão da terra enferma e morte ritualística do rei do que a de uma milagrosa relíquia a ser buscada e recuperada em nome de um projeto redentor de inspiração messiânica. Em sua obra, o que predomina é na verdade o tema do amor cortes e sua metafísica do amor e da dama inspirada pelas tradições celticas e armóricanas, além do lirismo provençal.
Pode-se dizer com segurança que Chrétien nasceu na região de Champagne e que esteve submetido a dois importantes patronatos: a corte de Champagne e a de Frandes. Sabe-se, inclusive que uma das filhas de Eleonor da Aquitânia, a grande patrona das letras, Marie de Champagne, foi quem lhe propôs o tema e o argumento de Lancelot ou o Cavaleiro da Charrete, obra através da qual a personagem foi introduzida no ciclo Arthuriano.
O leitor contemporâneo, não sem razão, pode intuir nas imaginativas imagens dos cavaleiros da Távola Redonda, em suas mil peripécias, errâncias e jogos amorosos, uma dissimulada ou inocente crítica a própria instituição medieval da cavalaria... Basta lembrar que o desenvolvimento do ciclo arthuriano deu-se paralelamente as Cruzadas, embora estas, até onde eu sei, nunca sejam significativamente mencionadas nestas obras. A própria incapacidade dos nobres cavaleiros da corte de Arthur mostrarem-se dignos do graal ou obtê-lo, dá o que pensar sobre o significado desse ideário cavaleiresco representado pela matéria da bretânha frente a realidade de seu próprio tempo... Há algo mais do que a mera construção de um modelo de perfeição cavalaleiresco como ensinam os manuais... Mas tal problematização vai muito além da obra deste autor, primeiro nome da literatura em França.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

DESAFIO AO DIA

Acorda dia.
Quero de ti
qualquer coisa além das horas,
da morte ou da janela aberta
em movimento de paisagem.

Quero o imediato
do gosto puro e selvagem
do corpo e da alma
espalhado em cada objeto
a minha volta.

Quero o tudo do nada
que me transforma e forma
discretamente
em cada segundo de insólitaexistência.

CARNE E VERBO



Queria agora
gritar a vida
em todas as cores,
formas e odores
que a palavra transforma
em realidade
no perpassar dos sentidos;

Dar carne a palavra
que me diz e contradiz
no mágico exercício
do canto e do encontro
de mim mesmo
no vazio do verbo.

Mas como despir-me
do impreciso de Ser,
saber apenas a vida
na elementar e vadia
realidade da alma
que dentro do infinito
se faz finitude
no abstrato do mundo?

CRÔNICA RELÂMPAGO VI



No imaginário contemporâneo, os signos já não possuem necessáriamente correspondência verdadeiramente verificável com o mundo que por princípio deveriam representar; ultrapassaram a fronteira do símbolo no esboço de uma hiper realidade estabelecida pelo jogo entre sentido e não sentido em cujo hiato existimos.
A polifonia de gestos, imagens, palavras e artefatos culturais diversos, ou até mesmo, sentimentos e emoções, que alucinadamente desfilam, pior exemplo, na superfície da tela de um monitor de computador, alterou sem que nos déssemos inteiramente conta, nosso modo de lidar e viver com as linguagens e configurações anímicas em que existimos.
Inaugurou-se, assim, sob o sígno dos jogos de incertezas e performasses, a construção de uma imagem contemporânea e imprecisa de mundo que nos suga a existência na aventura desafiadora de descontrução permanente e manutenção do espectro plural que somos na descontrução de toda experiência e realidade vivida de Ser.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

CICLO ARTHURIANO


O contexto sócio cultural que configurou a “matéria da bretanea” é particularmente interessante: A sociedade européia do séc. XII caracterizava-se por um significativo crescimento econômico, demográfico e territorial. O crescimento populacional e agrícola propiciava o crescimento das atividades comerciais e da vida urbana modificando sensivelmente a paisagem social e cultural da cristandade ocidental.
No plano religioso, a Igreja define de forma clara sua organização interna ( padres, bispos, arcebispos, cardeais e Papa), seus dogmas e crenças ( Trindade, virgindade de Maria, sacramentos, etc.). A Reforma Gregoriana ( 1073-1216), procurando libertar a Igreja da influência da nobreza feudal, passava a dividir a sociedade em dois grupos opostos: clérigos e leigos.
A nobreza, em contra partida, começava a construir uma cultura própria e relativamente independente da cultura clerical. A literatura inspirada na chamada “Matéria da Bretanha”( ciclo Arthusiano) é o mais significativo exemplo disso. A tradição oral e folclórica, preservada e difundida pelos trovadores, poetas e cancioneiros, transformou-se, então, em poesia escrita em língua vulgar destinada a educação e ao divertimento de um público refinado ( a nobreza feudal ).
Foi neste contexto que o “amor cortês” definiu-se como um fenômeno literário, contestador da cultura clerical, intimamente vinculado a nobreza e ao folclore celta. Através da literatura ele transportava para o plano das relações amorosas as relações de vassalagem que então se afirmavam no plano político e social. Além disso, embora adúltero, esta nova concepção de amor fundava-se no valor pessoal ou virtude (cortesia) dos amantes.
Cabe acrescentar que a expressão “amor cortês” é moderna. Nos textos do século XII ele é simplesmente definido como bone amor, fine amor ( bom amor, amor delicado ou verdadeiro) Tal expressão caracterizava os jogos amorosos e o ideário cavaleiresco difundidos inicialmente nas cortes da Inglaterra e do sul e do norte da França. Os romances de cavalaria de inspiração arthusiana e seus modelos ideais, destinavam-se antes de tudo a educação da aristocracia. O refinamento cultural, a cortesia, eram então vistos como mais importante do que a “nobreza de berço”.
O exemplo mais significativo de difusão deste elitista ideário de sociedade sugerido pelos modelos estabelecidos pela “Matéria da Bretanha” foi a corte de Eleanor da Aquitânia, neta do primeiro trovador conhecido; Guilherme de Paiters ( 1071-1127) e rainha sucessivamente da França e da Inglaterra. Sua corte era o meio cultural em que se educavam, a partir dos modelos corteses, os barões, cavaleiros duques, duquesas e príncipes, segundo regras de cortesia e virtude que exaltavam o feminino e seu papel nos jogos amorosos.
A figura central destes romances inspirados na “Matéria da Bretanha” é, sem sombra de dúvida, a figura do cavaleiro errante que corre o mundo em busca de aventuras e procura afirmar-se pelo seu valor e virtudes pessoais em uma sociedade onde os códigos simbólicos e culturais impõem a predominância do coletivo sobre o individual. Entre o século XI e XII a cavalaria não era objeto de qualquer normatização jurídica e ainda não havia se convertido em um vazio título de nobreza como ocorrerá a partir do séc. XIII. Os cavaleiros, especialistas na arte da guerra, compreendiam uma camada específica dos jovens de “baixa nobreza” que percorriam a Europa em busca de fama e de um bom casamento. Era cavaleiro todo aquele que havia sido sagrado por outro cavaleiro através da cerimônia da Investidura. Normalmente os cavaleiros eram vassalos de algum senhor feudal e tinham por obrigação, além da fidelidade ao seu senhor, a proteção dos pobres e da Igreja.
É difícil precisar o papel da lenda do Graal no contexto desta literatura profundamente imaginativa. Pode-se apenas constatar a tenção introduzida pelo tema do santo vaso, representando certa demanda religiosa que, diga-se de passagem, se relacionava tanto com o imaginário cristão quanto com o maravilhoso de origem pagã, frente o tema mundano do “amor cortês”. Foi neste universo literário atravessado por outras questões paralelas que a lenda de Merlim fez sua entrada na literatura universal de modo realmente desconcertante e surpreendente.

O MITO DE MERLIM SEGUNDO ROBERT DE BORON


A personagem de Merlim fez sua primeira aparição na literatura ocidental através da obra do clérigo galês GEOFFREY DE MONMOUTH (1100-1155). Por volta de 1135 surgem as PROPHETIA MERLINI, posteriormente incorporadas a HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE (1136). Em 1148 aparece a VIDA MERLINI cuja a autoria, embora discutível, também é atribuída a GEOFREY. Foi por intermédio de sua obra que Arthur, até então um folclórico chefe guerreiro que se destacara no combate aos invasores saxões durante o século VI, converteu-se em um poderoso monarca comparável a personalidades como Alexandre, o Grande, e Carlos Magno. Uma das fontes das quais GEOFREY se valeu para a composição de sua obra foi certamente a HISTÓRIA BRITTONUM de NENNIUS DE MÉRCIA, mas muito pouco se pode falar sobre as referências literárias e folclóricas que inspiraram o autor. Curiosamente, a preocupação relativa e poética com dados históricos ou seculares de suas obras contradiz uma característica dos continuadores da dita “matéria da Bretânha”, ou seja, a intemporalidade dos personagens e seu universo vívido. Essa peculiaridade lhe distancia das canções de gesta ou de outras composições medievais como a anônima CANÇÃO DOS NIBELUNGEN ou a CANÇÃO DE ROLAND.
A HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE é pouco depois do seu aparecimento na Inglaterra traduzida para o francês pelo normando WACE DE JERSEY sob o título de ROMANCE DE BRUTUS. A tradução apresenta alguns elementos inexistentes no original como, por exemplo, a primeira menção a mesa redonda de Arthur. Ao longo dos séculos XII e XIII, a partir da Inglaterra e especialmente da França, cria-se e divulga-se pelas cortes da Europa toda uma literatura que transforma e aperfeiçoa a crônica, recriando as lendas folclóricas da antiga Bretânha perpetuadas pela tradição oral.[1]
O mais significativo literato que, depois de GEOFREY DE MONMOUTH, ocupou-se da chamada “matéria da Bretânea” foi o francês CHRÉTIEN DE TROYES em cuja a obra, porém, a figura de Merlim aparece de modo velado na imagem de misteriosos eremitas que surgem significativamente no caminho dos cavaleiros de Arthur durante suas andanças e aventuras. A associação definitiva entre Merlim, a Távola Redonda e a lenda do Graal, pelo que se sabe até o momento, foi estabelecida por um outro francês chamado ROBERT DE BORON. Sua obra, ao contrário da de CHRÉTIEN, é de cunho claramente teológico, justapõe a imagem do profeta de origem misteriosa a imagem do santo Graal criando entre elas uma unidade enigmática. É justamente a partir do MERLIM de ROBERT DE BORON, escrito entre duas outras obras, JOSÉ DE ARIMATÉIA e PERCIVAL OU A QUESTÃO DO SANTO GRAAL , que pretendo tecer minhas considerações.
Em linhas gerais, estou inteiramente de acordo com a leitura de MARIE LOUISE VON FRANZ que vê na dualidade da origem de Merlim, filho do diabo e de uma virgem pura temente a Deus, a concidentia oppositorum que o faz portador do princípio da totalidade de modo muito similar ao mercúrio alquímico. Este fato torna-se mais compreensível quando associado ao drama do velho rei pescador. Na leitura da citada autora, o rei moribundo do Graal, representa a atitude cristã envelhecida. Sua ferida na coxa, na região genital, alude ao problema da natureza e da sexualidade não solucionado pelo cristianismo e ao estado de dissociação característico da consciência cristã frente a repressão dos conteúdos anímicos personificados pelo imaginário pagão. Merlim parece atuar no sentindo da superação da unilateralidade do ideal de espiritualide cristão mediante a imagem do Graal como personificação de uma nova totalidade que se insinua de modo contraditório e misterioso no imaginário medieval.
Na interpretação de EMMA JUNG [2], o obscuro profeta dos tempos de Arthur, é um ser luciferiano, semelhante a mefistófeles, um representante do “intelecto in statu nascendi”, uma personificação viva do logos e, simultaneamente, portador da numen naturae enquanto um deus de duas faces análogo a Hermes ou ao mercurius duplex da alquimia. O Merlim de ROBERT DE BORON realiza esta ambigüidade de modo realmente exemplar. Ele estabelece sobre o mito cristão uma interpretação distinta e complementar a dos evangelhos canônicos e da Igreja. Merlim usurpa assim, mesmo que veladamente, o lugar de cristo como mediador entre o homem e Deus. Coisa que ele mesmo confessa:
“...E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus”[3]

Além disso, como esclarece ao eremita Blaise, que “mete por escrito” a lenda do Graal:
“...Entretanto este livro não estará revestido de autoridade, porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor, ao passo que o senhor, o faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer, assim seu livro será cheio de segredos e poucos haverá que os desvendarão.”[4]

Este caráter obscuro e ambíguo de Merlim marca toda a narrativa. Filho de um incubo e de uma virgem, anunciado por um concílio de demônios, instrumento da vingança dos mesmos contra os profetas que anunciaram a vinda de Cristo, Merlim descarta, entretanto, a possibilidade de uma regressão ao paganismo e realiza, por intermédio da obra do Graal, um caminho alternativo de redenção que tem como centro a Távola Redonda. O segredo do Graal, nesta versão associado as palavras trocadas entre Jesus e José de Arimatéia, em momento algum é revelado.
[1]
[2] 2- Cf. JUNG, Emma. Anima e Animus. SP: Cultrix
[3] 3- BORON, Robert de. Merlim, p.70.
[4] 4- Ibidim,p.56.

A DAMA DO CÉU FUTURO


A Dama do Céu Futuro
Me aguarda
Em algum jardim perdido
Em paisagens verdes de sonho,
No não lugar do desejo
Onde parte de mim vive
Em eterno exílio.

A Dama do Céu Futuro
Acalanta sono de estrelas
E faz companhia a lua,
É quase luz
No sol incolor da sombra.

A Dama do Céu Futuro
Semeia perfumes no vento
Na promessa de uma definitiva primavera,
Além do vazio
Passar sereno dos dias
Que me consomem
E conduzem
Ao nada do infinito.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

LIBERDADE

Tenho a vida aberta
em todas
as direções do mundo,
vontades, sonhos
e sombras
me ensinam labirintos
no perder-se na alma das coisas.
Tenho tudo que busco
no vazio de mim mesmo.

VERDADE,MITO E COTIDIANO VIVIDO

O comportamento arcaico da personalidade total em cada ser humano, aquela tonalidade imagética e afetiva, que nos faz coletiva e individualmente sentir que a existência realmente existe, é o alfa e o ômega de todo fenômenologia cultural. Assim sendo, o sentimento de que alguma coisa é real, seja uma árvore, uma cadeira ou uma abstração lingüistica como o Estado ou qualquer conceito filosófico, ocorre em nós do mesmo modo que se estabelece no homem das sociedades arcaicas a convicção de que um deus habita uma árvore ou se manifesta mediante determinados fenômenos atmosféricos.
Tudo o que é concebido ou imaginado, não importa se em bases racionais ou intuitivas, é real na medida em que configura um fenômeno psíquico. Mesmo os espíritos mais leigos não tem dificuldades para admitir que por detrás da consciência, esta realidade cognitiva sobreposta aos cinco sentidos e condicionado a um relacionamento com o mundo exterior, existe um infindável e obscuro universo de fenômenos e processos cuja natureza pouco conhecemos ou somos até mesmo incapazes de conceber com a devida justeza. Nada me impede de identificar nestas regiões sombrias da psique algo daquilo que poderíamos tomar como sendo nossa “herança arcaica”, os imperativos da história viva da natureza. Sem sombra de dúvida, as representações do sagrado, de modo mais preciso do que qualquer outra variante da vida cultural, traduzem as impressões ou “revelações” deste “além” meta- psicológico. Não foi por mero capricho que desde as épocas mais remotas o homem viu-se através da experiência religiosa de algum modo envolvido, na condição de sujeito e objeto, por personificações intuitivas das mais profundas e misteriosas modalidades do ser projetadas no mundo material e em seus próprios processos vitais. A moderna psicologia profunda hoje nos oferece a possibilidade de desbravar o continente ainda maioritariamente virgem da inconsciência humana, descobrir novos modos de ler a história no homem e o homem na história, traduzindo, em termos modernos, o conhecimento intuitivamente psíquico de si e do mundo acumulado por um sem número de crenças e imagens do sagrado. Talvez elas digam mais sobre nosso atos, hábitos e pensamentos mundanos, do que a vida moderna permite imaginar.

MARIE LOUISE von FRANZ E O ESTUDO DOS CONTOS DE FADA

A investigação científica dos processos psíquicos autônomos ou inconscientes, as interconexões e sobreposições dos significados das imagens arquétipicas, é uma tarefa irrealizável sem a devida consideração de nossas reações pessoais e afetivas.

Não podemos absolutamente excluir arbitrariamente do campo do entendimento nossos condicionamentos e pré disposições subjetivas sob o pretexto de sermos “acadêmicos” ou “objetivos” em nossas formulações.

Parafraseando MARIE LOUISE VON FRANZ, colaboradora de C.G.Jung durante longas décadas, assim como não se pode estudar as plantas sem situar o solo onde elas crescem e um bom jardineiro possui necessariamente um conhecimento do solo tão bom quanto as plantas, em mitologia, nós somos o solo dos temas simbólicos e não podemos ignorar, portanto, a base humana a partir da qual estes temas florescem.
Quero, neste capítulo, ocupar-me especificamente da interpretação dos contos de fada, assunto que mereceu de VON FRANZ uma atenção muito especial dentro do conjunto de suas pesquisas. Para ela os contos de fadas são

“...a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do Inconsciente Coletivo. (...) Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquétipas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva. Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado , atingimos as estruturas básicas da psique humana através de uma exposição do material cultural. Mas nos contos de fada existe um material cultural consciente muito menos específico e, consequentemente, eles espelham mais claramente as estruturas básicas da psique.”
FRANZ, Marie Louise von A Interpretação dos contos de Fada. SP: Ed Paulinas, 1990. pg.9)

A simplicidade dos contos de fadas, seu caráter intelectualmente elementar, proporcionam uma exposição singularmente clara e precisa dos fatos psíquicos. Tal material é encontrado nas sociedades de todo o mundo justamente entre as pessoas simples, como camponeses e índios, constituindo uma parcela significativa daquilo que denominamos como o folclore de um país ou de uma região. Seja sob a forma de sagas locais ou de contos de fadas genuínos como os que encantam a imaginação de nossas crianças, certas histórias ou relatos são incorporados ao patrimônio cultural de uma coletividade e se convertem em expressão de sua identidade e memória social. As imagens e símbolos estruturantes destas narrativas apresentam padrões elementares e arcaicos que permitem sua leitura como expressão de um “pensamento simbólico” ou de fantasia. Diante dele o intelecto acadêmico mostra-se medíocre em seu estilo de formulação destinado quase sempre a sustentar verdades absolutas motivado pela sede de prestígio, vontade de poder ou insegurança.

O estudo dos mitos e, especialmente dos contos de fadas, exige certo desprendimento mental ou sensibilidade para o objeto, ele pressupõe uma renuncia a necessidade de compreender e explicar do complexo egoico. O intelecto, quando indiferenciado de suas raízes instintivas torna-se destrutivo ao cristalizar uma atitude segundo a qual “isso é apenas isso” ou “esta é a verdade” inibindo assim outras possibilidades de expressão e percepção. Em outros termos, no meio acadêmico tradicionalmente o intelecto transcende seu próprio domínio de operações convertendo-se em um monstruoso impulso de maquinação arguta que se impõe unilateralmente a consciência e a matéria observada.

No estudo dos mitos e símbolos defrontamo-nos com um material que não comporta opiniões e interpretações unívocas, que não pode ser esgotado por nenhuma leitura ou significação possível. Neste sentido, o método analógico associativo, originário do campo da psicologia profunda, é apenas uma referência que me permite construir um determinado discurso sobre a natureza da matéria mitológica da qual participo tanto intelectualmente quanto emocionalmente.

Tomar a psique como objeto é, entre outras coisas, saber que uma parte dos conteúdos inconscientes permanece irremediavelmente inconsciente enquanto outra submete-se a capacidade discriminadora ou diferenciadora da consciência. Os vários motivos e figuras de um conto de fadas são um testemunho da realidade humana em sua forma mais elementar. Muitos conteúdos que hoje tomamos como parte integrante da personalidade consciente nestas antigas histórias apresentam-se ainda vinculados ao inconsciente estando projetados de modo autônomo através de certas situações ou personagens. A figura do herói nos contos de fadas, por exemplo, representa geralmente, um modelo ou padrão arquétipo que visa uma dada modalidade comportamental associada a algum aspecto do Si-mesmo psicológico associado a construção do ego humano.

WALTER BENJAMIM E O CONCEITO DE HISTÒRIA




Uma pintura de Klee intitulada “Angelus Novus” mostra um anjo que parece estar prestes a se afastar de alguma coisa que encara fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter o mesmo aspecto. O seu rosto está voltado para o passado. Onde percebemos um desencadear de acontecimentos, ele vê apenas uma única catástrofe, que não para de acumular destroços sobre destroços, e depois os atira a seus pés. O anjo gostaria de ficar , despertar os mortos, e reconstruir o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso ; e o vento bate em suas asas com tamanha violência , que o anjo não consegue mais fecha-las. Essa tempestade o empurra inexoravelmente em direção ao futuro, para o qual as suas costas estão voltadas, enquanto a pilha de destroços sobe ao céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”
Walter Benjamim in, Teses sobre o conceito de história .

A 9º tese sobre o conceito de história de Walter Benjamim, inspirada pelo Angelus Novus de Paul Klee, e influenciada por um poema do seu amigo, o historiador Gerson Scholem, pode ser definida, em linhas gerais, como uma breve narrativa alegórica sobre a tensão entre o passado e o futuro que condiciona toda consciência do presente.
Trata-se de uma crítica a noção de progresso, tão cara a cultura pós-iluminista, e uma original “leitura negativa” do processo histórico. Tal constatação não escapa, naturalmente, nem mesmo ao leitor mais desatento e desenformado, que ignore o contexto em que o texto foi concebido: a caótica Europa de 1940,ano de guerra no qual o nefasto pacto Hitler/Stalin atentava contra as mais sinceras esperanças da civilização ocidental frente o espectro concreto da barbárie. Estou inteiramente de acordo com Robert Alter quando diz que:



“ Não faz diferença se tomamos o anjo da maneira que Benjamim o apresenta, como uma alegoria geral da inflexibilidade com que se deve acompanhar o desenvolvimento da história- “Onde percebemos um desencadear de acontecimentos, ele vê apenas uma única catástrofe”- ou se vemos nele, como sugeriu Rolf Tiedemann num ensaio circunspecto, uma representação do materialismo histórico. O que importa é que a tensão entre o passado e o futuro, que, como já vimos, ocupa um lugar fundamental no pensamento de Benjamim, atinge o seu clímax aqui, ameaçando desmantelar todo o raciocínio que ele estava tentando montar sobre o objeto e o caráter do processo histórico. Esta imagem da história como uma pilha de destroços que atinge o céu e como uma catástrofe contínua reflete, obviamente, o momento que Benjamim vivia: a primavera de 1940, quando a maior parte da Europa estava sob a sombra da suástica, e Stalin e Hitler tinham se unido num pacto assassino. No entanto, o terrível estranhamento em relação a um passado harmonioso, que tinha suas bases , em última análise, na velha história hebraica da expulsão do Éden, era um componente importante do pensamento de Benjamim desde a década de 1920.É difícil deixar de entender a última frase , “ Essa tempestade é o que chamamos de progresso” , como uma amarga ironia, apesar do lado marxista e messiânico de Benjamim provavelmente procurar ver nela um sentido mais positivo. De qualquer maneira, o anjo, uma espécie de refugiado atônico do mundo do simbolismo religioso, não se encontra em um eixo vertical entre o celestial e o terrestre, como no poema de Scholem, mas sim num eixo temporal entre o sonho da origem paradisíaca e o prospecto inconcebível – ou seria ele um pesadelo? – daquilo que se encontra no fim da longa catástrofe da história.”(Robert Alter, Anjos necessários: tradição e modernidade em Kafka, Benjamim e Scholem; pg.149-150. )

O passado, como construção e apropriação contínua de um presente, como rememoração e “relâmpago”, sugerido pela 5º tese, parece desfazer-se na 9°, onde o anjo, enquanto alter ego mítico do historiador, denuncia a impossibilidade trágica de qualquer leitura “positiva” da história, pois enxerga apenas um tempo sem nenhum “agora” ou qualquer outra possibilidade que transcenda a inexorável tragicidade do progresso, do devir, contra toda permanença e realidade dada. Já não é possível despertar os mortos ou reconstruir o que foi destruído. A tempestade do progresso nos afasta cada vez mais da origem, do “paraíso”, nos esvaziando de todo significado, de toda tradição. Desta forma, o anjo da história de Benjamim, “este refugiado atônico do mundo dos símbolos”, é um mito moderno que anuncia a barbárie, um desenraizamento radical, que nos obriga a uma ruptura nunca antes possível, a um reinicio absoluto, frente ao pesadelo da razão e da própria vida contemporânea, cada vez mais esvaziada de significados.
Todo o universo de imagens, crenças e experiências que correspondem ao mundo pré- moderno da tradição, permanecem, entretanto, vivos como forças subterrâneas no imaginário contemporâneo. Apenas nossa consciência diferenciada do inconsciente já não é mais capaz de percebe-las ou vivência-las como antigamente.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

DELIRIO E RISCO

Tento um pulo no infinito,
tento a vida e a morte
em apostas azuis e líricas
de nítidas noites.

Tento o tudo ou nada
de ser em finitude;
de saborear limites e dores
até a realização mais profunda
da carne da minh'alma.

LITERATURA INGLESA VI


Robert Louis Stevenson ( 1850-1894) foi, sem dúvidas, um dos mais expressivos e imaginativos autores da Inglaterra Vitoriana. Mesmo quando não associadas, em um primeiro momento, ao seu nome, suas obras estão profundamente enraizadas em nosso imaginário ficcional ou a doces lembranças dos tempos idos de infância. Basta citar seus dois romances de aventura mais consagrados: A Ilha do Tesouro e o Médico e o Monstro.... Basta tal menção para atestar a familiaridade do autor em nosso mias íntimo imaginário.
Mas o que mais interessa nas histórias e ensaios de Stevenson é a amoralidade de suas aventuras. Elas não nos impõem qualquer lição de moral ou teleologia racional... Apenas nos fala de risco e aventura na construção de nossas individualidades, na emoção das descobertas que reinventam o mundo dentro da gente.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

DESLOCAMENTO

A vida amarrotada e suja
me faz tocar a alma das coisas,
a fantasia de cada objeto,
pensamento e imagem
onde existo.

Tento brincar no caos do mundo
até o infinito do espelho do outro
que não sou....

Invento um nada,
qualquer ordem,
no vento
que me espalha
sobre tudo
até o limite
de descrer em mim...
e saber mil mortes,
milhões de vozes
em existência
de pessoas, coisas
e além...

PAUL ZUNTHOR: BABEL E O INACABAMENTO




Um dos mais singulares e ricos escritos historiográficos que conheço é certamente Babel e o Inacabamento do historiador medievalista Paul Zunthor.... Esta é sua última obra... aquela onde o poeta ofusca o historiador  em um derradeiro grito  frente ao inacabamento ontológico contra o qual se debate toda escrita da história.

Escrever sobre o mito de babel era um projeto antigo, mas sempre adiado pelo autor  Seu editor Francês, Thierry Marchaisse  em sua nota à edição francesa do livro,  nos fala sobre o signo do inacabamento sob o qual se construiu a narrativa de babel:

“A ideia do meu livro, confiava ele ao seu irmão, Louis Zunthor, durante a última conversa telefônica entre os dois, é um pouco o negativo da eternidade... Decerto que o não acabarei... Bem vistas as coisas, talvez seja melhor assim...” E é legítimo pensar que ele cogitava então ( depois de tantos inacamentos sucessivos e puramente contingentes) nessa outra forma de inacabamento, necessário e essencial, que o seu título anunciava e que ele entendia, aliais, “de maneira dinâmica, processo e não tanto um fim absoluto”. De facto, se o “inacabamento” é o outro nome de Babel, como poderia este livro acabar melhor do que permanentemente inacabado? E é seguramente assim que se deve compreender uma nota não datada redigida no hospital e encontrada após a sua morte ( 11 de janeiro de 1995), a qual indica que, até o fim, ele terá hesitado sobre a última frase deste livro e até mesmo ponderado deixar a outros o cuidado de a completar:
“ Babel
Refazer última frase:
...e esta centelha que aos 80 anos se lançou para ir ter
ao seu próprio foco talvez, o haja falhado por um nadinha.

E em nota, se eu morrer antes da publicação:
P.Z. Morreu no dia...1995.”
(Paul Zunthor. Babel ou o Inacamento: Reflexões sobre o mito de Babel. Tradução de Germiniano Cascais Franco; Lisboa: Editora Bizâncio, 1998; p. 10 et seq. )

O último parágrafo do livro complementa este ultimo fragmento:

“Escrevo isto de todos nós. Num outro teclado, escrevo-o de mim. Eis-me, no momento em que componho estas linhas, chegando aos oitenta anos; a idade, como sói dizer-se, de balanço. Como havia de o fazer? A vida foi demasiadamente longa e demasiado breve; nada ainda me anuncia o fim dela com urgência. E porquê, céus! O “fim”? A cada quebra de ímpeto, voltamos a arrancar; e reanima-se o desejo de ser; de saltar o muro, de correr ao encontro de...quê? É assim que se existe, e que nada jamais de acaba; a própria morte não será decerto outra coisa senão a queda derradeira dessa centelha que, agora, volta de vez ao seu foco.”
(Ibidem; p. 227 et seq. )

A cidade e a torre de Babel servem de alegoria ao malogro do esforço civilizacional, expressam nossa angustia diante do inútil esforço de viver contra o tempo que a tudo devora e diante do qual sucumbimos sempre e de novo no esboço permanente do humano.. 

terça-feira, 4 de setembro de 2007

ROTINA E POESIA


LADO ESQUERDO
Ao lado esquerdo
de mim mesmo
há noites e luas
a procura de estrelas
Há sonos de infância
e cansaços de mundo
no perder e ganhar destinos
em cada ato diurno.

Ao lado esquerdo
de mim mesmo
sofrem alegrias
no riso de madrugadas,
vive um encanto
de outras e possíveis
existências
que de mim se perderam
na ofuscação dos dias.

SEXTA FEIRA

A sexta feira decora as paredes de casa
e se deixa em cada coisa
como um perfume de diversão e ócio,
talvez como minimo tempo de mim mesmo...
ou avesso de corpo
no mais profundo do físico
sentimento de todas as coisas
em um vento de pensamento...
Quem sabe ainda
apenas paz de certeza nervosa
de VIDA...
A sexta feira quase não existe...

O TEMPO E O DIA....


INTUIÇÃO DE TEMPOS EM VENTOS

Um arbitrário
e desordenado ensaio
de atos e fatos
compõe uma fantasia
de tempos idos,
imaginação sem sentido
de um mais perfeito
mundo de todos os dias.

Visita-me o infantil desejo
de amanhãs em cores vivas
e todas as ausências transmutam-se
em um suspiro inútil
que refaz o fatigado da tarde
em que me perco em pensamentos.

MANHÃ ABERTA

As vezes o céu nos diz bom dia
na sua ilegível presença
em paisagens de mundo.

As vezes a manhã nos afaga
no gratuito das coisas e gestos
do ser e estar em cotidiano.

Saboreamos limitados
a mera existência em corpo
alem de todo pensamento
sabendo o gosto profundo
de cada acontecimento.

MUNDO, TEMPO E INFINITO...



TEMPO ENIGMA
Enigmático é o tempo
em que me perco e percebo,
onde só me esclareço
no grito que grita
e me grita
no aprendizado do caos
que faz tudo ser e não ser...

O MUNDO NOS OLHOS...
O mundo se diz nos olhos,
é imagem viva do sonho
de mim mesmo,
ou a quase realidade
de um vento de pensamento
que me conduz a qualquer lembrança
de um instante distante
de paz de infância.

O mundo se diz nos olhos
mas não cabe em qualquer ângulo
do meu olhar,
escapa-me em cada paisagem
como um onipresente segredo
oculto em natureza e acaso
na alma de cada coisa .

C.G.JUNG: FRAGMENTOS/SOBRE MITOLOGIA CRISTÃ



“... Necessariamente a resposta é esta; metafisicamente não existe mal algum; ele só existe no mundo dos homens, e ele procede do ser humano. Contudo, esta afirmação contradiz o fato de que o paraíso não foi criado pelo homem. Ele entrou nele por último, e não foi ele que criou a serpente. Se até Lúcifer, o anjo mais belo de Deus, tinha tão grande desejo de tornar-se corrupto, sua natureza dever mostrar uma considerável falta de qualidade morais- como Javé que insiste ciosamente na moral, mas ele mesmo é injusto. Não admira, portanto, que sua criação esteja marcada pelo mal.
Será que a doutrina da Igreja admite os defeitos morais de Javé? Se sim, então Lúcifer simplesmente retrata o seu criador; se não, o que dizer do Salmo 84, etc.? O comportamento imoral de Javé baseia-se em fatos bíblicos. Não só se pode esperar de um criador moralmente dúbio que crie um mundo perfeitamente bom, nem anjos perfeitamente bons.
Sei que os teólogos sempre dizem: Não devemos subestimar a grandeza, a majestade e a bondade do Senhor, e nem se deve fazer qualquer pergunta. Não subestimo a terrível grandeza de Deus, mas eu me consideraria um covarde amoral se me deixasse amedrontar para fazer perguntas.”

Carta a Victor Wthte- Oxford- 30-04-1952; in Cartas de C.G Jung ( Volume II- 1946-1955); tradução de Edgard Orth; Petrópolis, RJ:Vozes 2002; p. 235.)

NISE DA SILVEIRA: CARTAS A ESPINOSA




Toda palavra, todo discurso ou imagem é, como gosto de repetir, essencialmente fantasia em que nos fazemos e somos... Talvez por isso eu tenha tanto carinho pelas CARTAS A SPINOSA da Drª Nise da Silveira. Texto em que a imaginação e a teoria se confundem com o devaneio e a construção de significados e sentidos que nos faz humanos...

“ Agora, aqui em segredo, ouso supor que você tenha descoberto os poderes do imaginário e de suas possibilidades de organização, admirando, contemplando longamente as pinturas de seu contemporâneo Rembrandt. De certo não lhe escapou que Rembrant não se prendia à realidade objetiva, segundo preferiam grandes mestres da pintura holandesa de sua época. Não estaria ele buscando no claro escuro do imaginário segredos muito íntimos, aspirações inefáveis?
Se numa tela célebre Rafael representou Platão com o indicador voltado para o alto e Aristóteles com o indicador voltado para terra, Remblandt exprimiu talvez coisas mais distantes, pintando Aristóteles com a mão respeitosamente pousada sobre a cabeça de um busto de Homero cego.
Ainda ontem a noite, pensei muito em você, mergulhado na contemplação do Doutor Faustus, ou imóvel, diante do Filósofo com o livro aberto, olhos perdidos, muito além das letras impressas, tranquilo, sentado ao lado de uma escada que se alonga em movimento espiralado não se sabe para onde.
Perdoe tanta ousadia. A sua menor discípula,
Nise”

( Nise da Silveira. Cartas a Spinosa. RJ: Francisco Alves, 2º ed., 1999, p. 97 et seq.)

LITERATURA INGLESA V


David Herbert Lawrence (1885-1930) é normalmente lembrado pelos romances Mulheres Apaixonadas (1916) e O Amante de Lady Chatterley (1928). Mas a obra que me interessa comentar aqui é menos conhecida, embora nem por isso despida de grande brilho ou inspiração. Refiro-me a pequena novela intitulada “O Homem que Morreu”, releitura singularmente heterodoxa do mito cristão. Nesta narrativa , identificado apenas pelo epiteto “o homem que morreu” , Cristo apresenta-se como um homem que, após experimentar o sagrado em sua própria humanidade e realizar seus desígnios, redescobre o mundo em toda sua sensualidade e concretude antes de finalmente desaparecer.
Nesta, como em outras obras do autor, chama atenção a sensualidade, a valorização dos sentidos e da matéria, em um jogo mágico narrativo entre percepção, linguagem e desejo. Cabe aqui reproduzir um pequeno fragmento da obra em questão, mesmo que por si só ele não seja suficiente para traduzir toda a sua riqueza:

“O Homem que morrera seguia em frente, e era um dia de sol. Olhava a sua volta enquanto caminhava, e ficou a ver uma récua passar em direção a cidade. E disse a si próprio:
'Como é estranho o mundo dos fenômenos, sujo e limpo ao mesmo tempo! Eu também sou assim. No entanto, não me confundo com ele! E a vida borbulha de modos diversos. E porque motivo queria eu que tudo borbulhasse uniformemente? Que pena, ter eu pregado para eles! Um sermão é bem mais fácil de endurecer como lama, e fechar as fontes, do que um salmo ou uma canção. Cometi um erro. Compreendo que me executaram por ter eu pregado para eles. No entanto, terminaram não conseguindo me executar, pois eis que ressurgi para minha própria solitude, e herdei a terra, posto que nada reclamo do que há nela. Permanecerei só em meio ao borbulhar de todas as coisas, acima de tudo, e para sempre, serei só. Porem devo lançar esse galo no meio do torvelinho dos fenômenos; ele precisa ser impelido por esta onda. Como ele ferve de vida! Em breve, em algum lugar, vou deixa-lo entre as galinhas. Talvez numa tarde qualquer eu conheça uma mulher capaz de cativar meu corpo renascido, mas sem violar minha solitude. Pois o corpo do meu desejo morreu, e não tenho contato com nada. Sei, contudo, e como eu sei! Ao menos, tudo é vida. E esse galo reluz de solitude radiante, embora seja cativado pela atração das galinhas. Vou apressar-me em direção aquela cidade no alto da colina a minha frente; já me sinto fraco e cansado e desejo fechar os olhos a tudo' ”.

(D.H. Lawrence. Apocalípse, seguido de O Homem que Morreu, tradução de Paulo Henrique Britto. SP: Companhia das Letras, 1990,p.144)

A GRANDE RAINHA BRANCA


Uma das mais emblemáticas personagens da história do sec. XIX foi sem dúvida a Rainha Vitória. Pode-se dizer que sua ascensão ao trono em 1837 marcou o início do sec. XIX e o fim do sec XVIII e sua morte em 1901, inaugurou o sec. XX. Como toda periodização ela é arbitrária e subjetiva, mas nem por isso falsa. Em linhas gerais, aquilo que consideramos como a era vitoriana é a personificação de um ethos, uma representação ideal da sociedade européia oitocentista construída pela geração posterior incapaz de lidar com sua complexidade e contradições. Seja como for, a riqueza cultural que define o período vivido por Vitória é fascinante. Basta lembrar que ela foi contemporânea de homens de letras como George Eliot, Charles Dickens, Sir Arthur Conan Dyle, Oscar Wilde, Walter Scolt, Lews Carrol, Thomas Hardey e Jonh Stuard Mill, apenas para citar alguns exemplos.
Mas a longevitude de Vitória e do seu reinado não serviram apenas para identifica-la com toda uma época. Pode-se dizer que com ela a monarquia, que até então mantivera-se na Grã Bretanha por mero imperativo institucional, passou a justificar-se pelas qualidades pessoais do seu soberano. Em outras palavras, como afirma Anka Muhlstein em sua competente biografia sobre Vitória, ou a grande rainha branca, sua personalidade e seu caráter contribuíram para transformar e reforçar o significado da monarquia britânica.
Nas palavras da autora:

“... Foi depois de 1870, mais precisamente depois da cura inesperada do príncipe de de Gales, que, como o pai, quase morreu de uma crise de tifóide, que se sentiu no país o nascimento de um sentimento mais pessoal pela rainha e por sua família. Um novo tipo de autoridade real desenvolveu-se então, não mais baseado em prerrogativas constitucionais ou em uma atividade política, mas na ascendência moral e em uma necessidade psicológica das multidões, que tinham prazer em aplaudir o símbolo vivo de sua grandeza. Os presentes anônimos que se derramaram sobre o palácio de Buckingham por ocasião dos jubileus são um indício desse fervor popular. Em seu casamento, a rainha não recebera um único presente do povo. Talvez involuntariamente, a gorda pequena dama enlutada tornara-se “the Great White Queen”, a grande rainha branca.”

(Anka Mushlstein. Vitória: Retrato da rainha como moça triste, esposa satisfeita, soberana triunfante, mãe castradora, viúva lastimosa, velha dama misantropa e avó da Europa. SP: Companhia das Letras, 1999; p. 138 et seq.)

Este novo tipo de autoridade real foi curiosamente perpetuado no sec. XX pelo também longo reinado de Elisabeth II. Por mais dúvidas que tenhamos hoje em dia sobre o destino da monarquia britânica o fato é que ela sobrevive e afirma sua contemporâneidade na peculiaridade de seus personagens cada vez mais humanos e menos divinos...


FANTASIA E MUNDO

Milhas e milhas de sombras
me separam de mim mesmo...
Como se eu fosse meu próprio outro,
ou um espectro misterioso e estranho
a sonhar o mundo
e inventar a própria vida
em exercícios
e adivinhações de mim mesmo...

INFANCIAS
Existem várias infâncias:
Aquela que vivemos,
a que lembramos,
a que sonhamos
e aquela que reencontramos
inacabada
no fundo da alma adulta..

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

CRÔNICA RELÂMPAGO V

Não sei o futuro de minhas expectativas de amanhã, a solidez de minhas auto- imagens e leituras do mundo. Talvez tudo se transforme repentinamente em alguma reinvenção provisória de todas as coisas na aurora de algum dia seguinte de mim mesmo.
Talvez... Impossível qualquer afirmação contundente nas paisagens incertas da contemporâneidade. Só me resta aprender a seguir em frente sendo minimamente este pequeno eu que carrego anônimo e indiferente pelas ruas ... Até o triunfo de um silêncio qualquer .