quinta-feira, 20 de setembro de 2007

GRA|NDE MÃE E ETERNO FEMININO

Quando aqui aludo a “Mãe”, reporto-me a uma imagem arquetípica e, portanto, a alguma coisa que não tem realidade no tempo e no espaço, mas atua dentro de nós concretamente como uma espécie de princípio, “força”, ou pré- disposição, que em nada depende da nossa vontade para existir ou agir em nossos afetos e imagens de realidade. Um arquétipo constelado cria um estado de comoção bio-psíquica ambivalente. No caso do arquétipo da “Grande Mãe” estamos lidando com a imagem mais próxima do “arquétipo primordial” cuja principal expressão é o círculo, o urobolos, onde nada se diferencia e tudo está contido. Trata-se da mais obscura e inconsciente realidade do “Grande Feminino” que gradativamente torna-se “Mãe”, isto é, um lugar de nascimento e proteção, assim como de transformação e morte, um recipiente mágico ou escuro que, em termos simbólicos, podemos associar a terra, a matéria, ao jardim, a flor, ao mar, a lua, a noite, a gruta, a vaca, a cobra, ao mundo subterrâneo dos mortos, e ainda, em outra dimensão, a pia batismal, o vaso, a Igreja, a casa, a cidade, o caldeirão, o forno, o abismo, a cruz, dentre muitos outros exemplos. Além disso, antropomorficamente a “Mãe” pode ser personificada tanto por figuras como a mãe natural, a avó, a professora, e a sogra, quanto por divindades femininas como as Nornas, Eva, Ísis, Deméter e Maria.

ERICH NEUMANN, partindo das formulações de JUNG, concebeu uma interessante distinção entre o caráter elementar e de transformação do Feminino. Em suas próprias palavras:

“Designamos por caráter elementar o aspecto do Feminino que, como o “Grande Círculo” e o 'Grande Continente', demonstra a tendência de conservar para si aquilo a que deu origem e a envolve-lo como uma substância eterna. Tudo o que dele nasceu lhe pertence, continua sujeito a ele e, mesmo quando o indivíduo se torna independente, o Grande Feminino relativiza essa autonomia, tornando-a uma variante secundária do seu existir, enquanto Grande Feminino.(NEUMANN Erich. A Grande Mãe. Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. SP: Cultrix,1996, p.36. )

Trata-se aqui da “inércia natural do âmago da psique”, da insuperável “gravitação do ego” em torno da psique objetiva ou daquilo que costumamos definir como “inconsciente” ou fundamento desconhecido da natureza. Por outro lado, há uma tendência oposta igualmente poderosa:“O caráter de transformação do Feminino, ao contrário do caráter elementar, é a expressão de uma outra constelação na psíquica fundamental. No caráter de transformação enfatiza-se o elemento dinâmico da psique, o que, ao contrário da tendência conservadora do caráter elementar, coloca em movimento algo já existente e leva a uma modificação , em suma a transformação. Durante o desenvolvimento psíquico, o caráter de transformação da psique que é projetado no Feminino, encontra-se primeiramente submetido ao “domínio anterior” do caráter elementar, e só aos poucos vai se desligando daquela supremacia para adquirir uma forma própria e independente.”( Ibidem. P.38.)

O caráter transformador do Grande Feminino se assemelha a um processo de integração e transformação interna da psique, através da matéria, da qual a consciência participa enquanto “criatura” e “sujeito”, enquanto aquele “particular criativo” envolvido por uma totalidade indefinida e inesgotável que o modifica na medida em que se faz em inúmeras variações de si mesmo. O caráter elementar do Feminino, advirto, pressupõe uma consciência informe e pouco diferenciada do inconsciente, enquanto o caráter transformador pressupõe uma consciência movida por um impulso de diferenciação progressiva do inconsciente que acaba por conduzir a uma consciência masculina ou racional de mundo.
A “Mãe” só pode ser definida como tal através do filho. Do mesmo modo, o filho só pode definir-se como tal em função da mãe. Estas duas imagens arquétipicas encontram-se relacionadas como dois opostos complementares. Assim sendo, é impossível compreender uma sem a outra. Do mesmo modo que uma semente de laranja jamais gerará uma mangueira, o inconsciente jamais originará algo inteiramente diverso de si mesmo. Falar sobre a componente feminina da fenomenologia da psique projetada na imagem da “Grande Mãe” é reconhecer exatamente esta unidade de opostos que desafia nossa tradicional visão de mundo, mergulhar na fantasia das mais elementares e primais realidades da natureza humana; regidas pelo princípio de Eros.
O embaixador J.O DE MEIRA PENNA, muito precisamente, assim define o arquétipo materno em sua dimensão impessoal / coletiva:

“O inconsciente é precisamente o domínio insondável dos arquétipos, “os reinos infinitos de todas as formas possíveis” onde “serpenteiam os fantasmas como um rio de névoas”... As Mães são as imagens primordiais- a expressão multiforme, englobante e dramática daquilo que é o arquétipo telúrico primordial: a Magna Mater, a Grande Mãe, a Terra Mãe, a Natureza.”( MEIRA PENNA, José Osvaldo de. Em Berço esplendido. Ensaios de Psicologia Coletiva Brasileira. RJ: Topbooks / Instituto Liberal, 1999, 2º Edição, p.54. )

Enquanto as imagens masculinas do inconsciente tendem a um relacionamento mais próximo da consciência e do mundo do ego, as imagens femininas mergulham nas obscuras paisagens telúricas do inconsciente, no mistério das origens irracionais da realidade humana e trans-humana, revelando os incompreensíveis hieróglifos da Magna Carta da alma e da própria vida.

Pode-se encontrar em uma fala de Mefistófeles, nas páginas do FAUSTO de GOETHE, uma definição singular do mistério arcaico do feminino personificado pela imagem arquétipica das deusas mães:

“Revelo-te, contrariado, um dos maiores mistérios. Há deusas poderosas que reinam na solidão. Em volta delas não existe sequer o lugar, menos ainda o tempo. Sentimo-nos comovidos só de falar nelas. São as MÃES.” ( GOETHE, J. W. Fausto. RJ: Otto Pierre Editores, 1980, p. 250.)

Talvez, o que antes de tudo diferencie a imagem arquétipica de Anima da imagem arquétipica da Grande Mãe seja justamente a ausência da criança, do filho. Anima é normalmente personificada pela mulher velada ou desconhecida, a irmã, a amiga, a amante ou a virgem. EMA JUNG em um original ensaio sobre a presença arquétipica aqui discutida, a identifica ainda, em seu plano mais elevado, com a própria Anima Mundi, com a representação de algo precioso e escondido no seio da matéria e do mundo. Assim sendo, em sua dimensão supra pessoal, que não pode ser integrada totalmente pela consciência, enquanto componente diferenciado da totalidade da personalidade, Anima seria uma espécie de Deusa da Natureza. Além de vestir a pele de alguns animais como a lebre, a gata, ou pássaros como a pomba e a águia, como é possível deduzir de imagens recorrentes nas narrativas folclóricas e religiosas, também podemos encontra-la nas imagens de fadas, sereias, fantasmas, ou ainda, deusas vinculadas a fertilidade e heroinas como Afrodite, Cibele, Helena, Atena, etc.

Nenhum comentário: