quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O MITO DE MERLIM SEGUNDO ROBERT DE BORON


A personagem de Merlim fez sua primeira aparição na literatura ocidental através da obra do clérigo galês GEOFFREY DE MONMOUTH (1100-1155). Por volta de 1135 surgem as PROPHETIA MERLINI, posteriormente incorporadas a HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE (1136). Em 1148 aparece a VIDA MERLINI cuja a autoria, embora discutível, também é atribuída a GEOFREY. Foi por intermédio de sua obra que Arthur, até então um folclórico chefe guerreiro que se destacara no combate aos invasores saxões durante o século VI, converteu-se em um poderoso monarca comparável a personalidades como Alexandre, o Grande, e Carlos Magno. Uma das fontes das quais GEOFREY se valeu para a composição de sua obra foi certamente a HISTÓRIA BRITTONUM de NENNIUS DE MÉRCIA, mas muito pouco se pode falar sobre as referências literárias e folclóricas que inspiraram o autor. Curiosamente, a preocupação relativa e poética com dados históricos ou seculares de suas obras contradiz uma característica dos continuadores da dita “matéria da Bretânha”, ou seja, a intemporalidade dos personagens e seu universo vívido. Essa peculiaridade lhe distancia das canções de gesta ou de outras composições medievais como a anônima CANÇÃO DOS NIBELUNGEN ou a CANÇÃO DE ROLAND.
A HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE é pouco depois do seu aparecimento na Inglaterra traduzida para o francês pelo normando WACE DE JERSEY sob o título de ROMANCE DE BRUTUS. A tradução apresenta alguns elementos inexistentes no original como, por exemplo, a primeira menção a mesa redonda de Arthur. Ao longo dos séculos XII e XIII, a partir da Inglaterra e especialmente da França, cria-se e divulga-se pelas cortes da Europa toda uma literatura que transforma e aperfeiçoa a crônica, recriando as lendas folclóricas da antiga Bretânha perpetuadas pela tradição oral.[1]
O mais significativo literato que, depois de GEOFREY DE MONMOUTH, ocupou-se da chamada “matéria da Bretânea” foi o francês CHRÉTIEN DE TROYES em cuja a obra, porém, a figura de Merlim aparece de modo velado na imagem de misteriosos eremitas que surgem significativamente no caminho dos cavaleiros de Arthur durante suas andanças e aventuras. A associação definitiva entre Merlim, a Távola Redonda e a lenda do Graal, pelo que se sabe até o momento, foi estabelecida por um outro francês chamado ROBERT DE BORON. Sua obra, ao contrário da de CHRÉTIEN, é de cunho claramente teológico, justapõe a imagem do profeta de origem misteriosa a imagem do santo Graal criando entre elas uma unidade enigmática. É justamente a partir do MERLIM de ROBERT DE BORON, escrito entre duas outras obras, JOSÉ DE ARIMATÉIA e PERCIVAL OU A QUESTÃO DO SANTO GRAAL , que pretendo tecer minhas considerações.
Em linhas gerais, estou inteiramente de acordo com a leitura de MARIE LOUISE VON FRANZ que vê na dualidade da origem de Merlim, filho do diabo e de uma virgem pura temente a Deus, a concidentia oppositorum que o faz portador do princípio da totalidade de modo muito similar ao mercúrio alquímico. Este fato torna-se mais compreensível quando associado ao drama do velho rei pescador. Na leitura da citada autora, o rei moribundo do Graal, representa a atitude cristã envelhecida. Sua ferida na coxa, na região genital, alude ao problema da natureza e da sexualidade não solucionado pelo cristianismo e ao estado de dissociação característico da consciência cristã frente a repressão dos conteúdos anímicos personificados pelo imaginário pagão. Merlim parece atuar no sentindo da superação da unilateralidade do ideal de espiritualide cristão mediante a imagem do Graal como personificação de uma nova totalidade que se insinua de modo contraditório e misterioso no imaginário medieval.
Na interpretação de EMMA JUNG [2], o obscuro profeta dos tempos de Arthur, é um ser luciferiano, semelhante a mefistófeles, um representante do “intelecto in statu nascendi”, uma personificação viva do logos e, simultaneamente, portador da numen naturae enquanto um deus de duas faces análogo a Hermes ou ao mercurius duplex da alquimia. O Merlim de ROBERT DE BORON realiza esta ambigüidade de modo realmente exemplar. Ele estabelece sobre o mito cristão uma interpretação distinta e complementar a dos evangelhos canônicos e da Igreja. Merlim usurpa assim, mesmo que veladamente, o lugar de cristo como mediador entre o homem e Deus. Coisa que ele mesmo confessa:
“...E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus”[3]

Além disso, como esclarece ao eremita Blaise, que “mete por escrito” a lenda do Graal:
“...Entretanto este livro não estará revestido de autoridade, porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor, ao passo que o senhor, o faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer, assim seu livro será cheio de segredos e poucos haverá que os desvendarão.”[4]

Este caráter obscuro e ambíguo de Merlim marca toda a narrativa. Filho de um incubo e de uma virgem, anunciado por um concílio de demônios, instrumento da vingança dos mesmos contra os profetas que anunciaram a vinda de Cristo, Merlim descarta, entretanto, a possibilidade de uma regressão ao paganismo e realiza, por intermédio da obra do Graal, um caminho alternativo de redenção que tem como centro a Távola Redonda. O segredo do Graal, nesta versão associado as palavras trocadas entre Jesus e José de Arimatéia, em momento algum é revelado.
[1]
[2] 2- Cf. JUNG, Emma. Anima e Animus. SP: Cultrix
[3] 3- BORON, Robert de. Merlim, p.70.
[4] 4- Ibidim,p.56.

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