terça-feira, 25 de setembro de 2007

CRÔNICA RELÂMPAGO IX

O Tempo da permanência de objetos e lugares em nossas vidas tornou-se incerto e imprevisível, convertendo-se em uma perfeita alegoria para as emergentes sensibilidades do tempo presente. Se tempo e espaço são inequivocadamente categorias contingentes da percepção consciente, historicamente enraizadas e enraizadoras da cultura moderna, sua articulação em nosso referencial de mundo vem se tornando cada vez mais complexa na medida em que deixamos, por exemplo, de ter e viver aquilo que chamaria, um pouco impropriamente, de “culturas pessoais de memória”. Em outros termos, nossos descartáveis utensílios domesticos, fotografias e caseiros filmes digitais já não possuem hoje em dia uma aura viva, uma alma ou marca que lhes permita sinalizar significativamente nosso lugar no tempo e espaço de todos os dias, uma permanência ontológica relativa capaz de tornar o nosso mundo pessoal significativamente inteligível.
Uma visita a antiquários, o contato com a atmosfera e realidade mágica que a ontologia dos objetos antigos propiciam, como se quase dizendo a essência dos contextos e vidas a que pertenceram, é mais do que suficiente para a constatação de que algo mudou nas estratégias construtivas de nosso universo pessoal. Uma velha escrivaninha era como um monumento do existir biográfico do seu dono, algo que se incorporava ao seu próprio mundo vivido, como uma missiva escrita em cuidadosa caligrafia. Hoje em dia, nossos objetos são descartáveis como as próprias realidades estabelecidas pelos nossos contextos vividos. Não me cabe aqui dizer se isso é positivo ou negativo, mas apenas constatar que algo mudou e não apreendemos ainda todos os possíveis desdobramentos e significados disso...

LITERATURA INGLESA VIII

Conheço muito superficialmente a poesia materialista e, ao mesmo tempo, intimista e melancólica de Percy Byshe Shelley ( 1792-1822). Não tive ainda o prazer da leitura daquelas que podem ser consideradas suas maiores obras. Refiro-me ao poema filosófico Queen Mab ( Rainha Mab) ou Alastor or the Spirit of Solitude ( Alastor ou o Espírito da Solidão).
Arrisco-me, entretanto, a dizer, com base nos poucos versos seus que tive o prazer de ler e sentir, que em sua poesia emerge uma lírica singular, sensual e imaginativa, onde a natureza se faz experiência de mistério e, ao mesmo tempo, conhecimento, através do devaneio poético.
Ironicamente este singular poeta encontrou a morte nos braços da fúria da própria natureza morrendo afogado durante um naufrágio ocorrido em uma tempestade que se desencadeou sobre o golfo de Spezzia, na itália....
Reproduzo aqui um fragmento de um de seus poemas menores: A Uma Cotovia que muito bem ilustram sua prodigiosa inventibilidade.

“...Que coisas são fontes
Do teu canto em flor?
Que ondas, campos, montes?
Que céu, de que cor?
Que imenso amor dos teus, que ignorância da dor?

Ao teu claro gozo
Languidez não vem;
Tédio doloroso
não te assombra o bem:
Amas, sem ter sabido o tédio que o amor tem.

Dormindo ou desperta,
Devesa ter a morte
Uma luz mais certa
Que a da nossa sorte.
Senão teu canto não seria claro e forte.

Da saudade ao sonho
Aspiramos tanto!
Nosso ar mais risonho
É da dor o manto;
Nossas canções mais suaves são as de mais planto.

Mais que todo o ouro
Que um canto descerra,
Que todo o tesouro
Que em livros se encerra,
Teu canto ao poeta val, desdenhador da terra!

Soubesse eu o que goza
Tua alma, e tal fora
A minha harmoniosa
E lírica loucura,
Que o mundo escutaria como escuto agora.”

( Clássicos Jackson. Vol. XXXIX; POESIAS, 2º Vol. Seleção de Ary de Mesquita. RJ/ SP/ PA: W.M. Jackson Editores; s/d. p. 57 et seq.)

MARIA DE FRANCE E A MATÉRIA DA BRETANHA


Quase nada sabemos sobre Marie de France, a não ser que viveu no sec. XII. Na introdução que preparou para a tradução de suas famosas Lais, Antônio L. Furtado assim especula sobre essa curiosa personagem feminina:

“... Quanto a pessoa da autora, nada conhecemos de sua biografia e nem ao menos sabemos quem foi. Entre as hipóteses sugeridas pelos estudiosos figuram as quatro seguintes: Maria, abadesa de Shaftesbury, meia irmã do rei Henrique II da Inglaterra; Maria de Meulan ou de Beaumont, filha do conde inglês Waleram de Beaumont; Maria, abadessa de Reading, naquela época centro importante da atividade literária, e que estão mantinha a posse de manunscrito contendo os Lais e as Fables; Maria, condessa de Bolonha, filha do rei inglês Estêvão de Blois e de Matilde de Bolonha. Em qualquer caso, parece ter sido de origem normanda, em vista do dialeto de francês antigo que empregava. Supõe-se porem que tenha vivido por longo tempo na Inglaterra, citando-se neste sentido: o modo como tratou algumas narrativas localizadas em solo inglês; a intromissão em seus escritos de algumas palavras inglesas; e o fato de ter traduzido as Fábulas dessa língua. A permanência na Inglaterra faz crer que o “nobre rei”, objeto da dedicatória incluída no prólogo dos Lais, tenha sido precisamente Henrique II, homem de considerável cultura, que deu estímulo decisivo à emergência da tradição literária arturiana.”

( Lais de Maria de France/ Tradução, introdução e notas de Antônio L. Furtado; prefácio de Marina Colassanti. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001, p. 20.)

Especulações a parte, o fato é que Maria é uma das mais singelas e encantadoras vozes femininas da Idade Média. A atmosfera feérica, imaginativa e sensual de seus pequenos poemas narrativos personificam um aspecto mais leve da matéria da Bretanha, voltado exclusivamente para a celebração do amor cortes a margem da saga personificada pelo monumental ciclo arturiano.
O maravilhoso bretão encontra-se nas páginas dos seus Lais através da aventura e desventura de princesas e principes, animais fantásticos e encantamentos sem par, de modo tão sereno que podemos classificar seus Lais como contos de fada; mesmo considerando a época em que forma compostos. Afinal, eles não se destinam a outra coisa a não ser a evasão e a fantasia em seu sentido mais gratuito e leve.

O FRAGMENTO COMO MÉTODO

O Fragmento tornou-se a mais apropriada forma para o exercício da atividade reflexiva. Isso na medida em que a indeterminação, a pluralidade de possibilidades ou o deslocamento da problemática da verdade, fizeram-se visíveis no horizonte do pensamento contemporâneo.
O fragmento destina-se ao entrelaçar de sucessivas e plurais indagações que estabelecem variadas conexões onde o conjunto não é a mera soma das partes, onde o sentido último não é dado a não ser pelo artesanal e subjetivo preencher de vazios.
Quando nenhum sentido é sistematicamente dado, a intuição se torna a essência do exercício de pensar e a alma do uso metódico do fragmento.

O OUTRO DO TEMPO

Mando notícias
de algum rosto esquecido
no fundo da memória,
de alguma persona desconhecida
e presente em meu perder de realidades
idealizadas e possíveis
no quase perfeito do meu mundo vivido.
Ser apenas o cotidiano rosto de todos os dias
não me faz suficientemente real
no impreciso tempo do mundo
e descubro a persona oculta
como o mais profundo dizer
de mim mesmo
no pouco de cada dia vivido.

CRÔNICA RELÂMPAGO VIII


Normalmente concebemos as rotinas como um conjunto fechado de fatos e atos diariamente reproduzidos mecânicamente, um autêntico trabalho de Cicifo, ao qual somos obrigados pelos imperativos da sobrevivência imediata. Mas as rotinas possuem movimentos e nuanças internas que as tornam algo mais do que um repetitivo e enfadonho esforço.
O roteiro obrigatório de um dia não elimina, afinal, sua singularidade no vasto corpo dos anos, mesmo que ela nos escape, já que apenas eventualmente guardamos na memória a aventura banal de um dia qualquer. Independente disto, no acaso de cada dia, toda rotina parece manter uma sombra, um duplo de si mesma, a nos dizer a urgência de opções ou golpes inesperados de tempo que dão visibilidade ao que até então não percebíamos ou não participava diretamente da tediosa procissão de dias que definem a vida.
Acredito em linhas gerais que as rotinas mudam em sua permanência. De algum modo discreto elas cultivam descontinuidades em suas estruturas aparentemente rígidas. A inércia dos dias e de nós mesmos, afinal, não passa de uma conveniente ilusão...

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

GRA|NDE MÃE E ETERNO FEMININO

Quando aqui aludo a “Mãe”, reporto-me a uma imagem arquetípica e, portanto, a alguma coisa que não tem realidade no tempo e no espaço, mas atua dentro de nós concretamente como uma espécie de princípio, “força”, ou pré- disposição, que em nada depende da nossa vontade para existir ou agir em nossos afetos e imagens de realidade. Um arquétipo constelado cria um estado de comoção bio-psíquica ambivalente. No caso do arquétipo da “Grande Mãe” estamos lidando com a imagem mais próxima do “arquétipo primordial” cuja principal expressão é o círculo, o urobolos, onde nada se diferencia e tudo está contido. Trata-se da mais obscura e inconsciente realidade do “Grande Feminino” que gradativamente torna-se “Mãe”, isto é, um lugar de nascimento e proteção, assim como de transformação e morte, um recipiente mágico ou escuro que, em termos simbólicos, podemos associar a terra, a matéria, ao jardim, a flor, ao mar, a lua, a noite, a gruta, a vaca, a cobra, ao mundo subterrâneo dos mortos, e ainda, em outra dimensão, a pia batismal, o vaso, a Igreja, a casa, a cidade, o caldeirão, o forno, o abismo, a cruz, dentre muitos outros exemplos. Além disso, antropomorficamente a “Mãe” pode ser personificada tanto por figuras como a mãe natural, a avó, a professora, e a sogra, quanto por divindades femininas como as Nornas, Eva, Ísis, Deméter e Maria.

ERICH NEUMANN, partindo das formulações de JUNG, concebeu uma interessante distinção entre o caráter elementar e de transformação do Feminino. Em suas próprias palavras:

“Designamos por caráter elementar o aspecto do Feminino que, como o “Grande Círculo” e o 'Grande Continente', demonstra a tendência de conservar para si aquilo a que deu origem e a envolve-lo como uma substância eterna. Tudo o que dele nasceu lhe pertence, continua sujeito a ele e, mesmo quando o indivíduo se torna independente, o Grande Feminino relativiza essa autonomia, tornando-a uma variante secundária do seu existir, enquanto Grande Feminino.(NEUMANN Erich. A Grande Mãe. Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. SP: Cultrix,1996, p.36. )

Trata-se aqui da “inércia natural do âmago da psique”, da insuperável “gravitação do ego” em torno da psique objetiva ou daquilo que costumamos definir como “inconsciente” ou fundamento desconhecido da natureza. Por outro lado, há uma tendência oposta igualmente poderosa:“O caráter de transformação do Feminino, ao contrário do caráter elementar, é a expressão de uma outra constelação na psíquica fundamental. No caráter de transformação enfatiza-se o elemento dinâmico da psique, o que, ao contrário da tendência conservadora do caráter elementar, coloca em movimento algo já existente e leva a uma modificação , em suma a transformação. Durante o desenvolvimento psíquico, o caráter de transformação da psique que é projetado no Feminino, encontra-se primeiramente submetido ao “domínio anterior” do caráter elementar, e só aos poucos vai se desligando daquela supremacia para adquirir uma forma própria e independente.”( Ibidem. P.38.)

O caráter transformador do Grande Feminino se assemelha a um processo de integração e transformação interna da psique, através da matéria, da qual a consciência participa enquanto “criatura” e “sujeito”, enquanto aquele “particular criativo” envolvido por uma totalidade indefinida e inesgotável que o modifica na medida em que se faz em inúmeras variações de si mesmo. O caráter elementar do Feminino, advirto, pressupõe uma consciência informe e pouco diferenciada do inconsciente, enquanto o caráter transformador pressupõe uma consciência movida por um impulso de diferenciação progressiva do inconsciente que acaba por conduzir a uma consciência masculina ou racional de mundo.
A “Mãe” só pode ser definida como tal através do filho. Do mesmo modo, o filho só pode definir-se como tal em função da mãe. Estas duas imagens arquétipicas encontram-se relacionadas como dois opostos complementares. Assim sendo, é impossível compreender uma sem a outra. Do mesmo modo que uma semente de laranja jamais gerará uma mangueira, o inconsciente jamais originará algo inteiramente diverso de si mesmo. Falar sobre a componente feminina da fenomenologia da psique projetada na imagem da “Grande Mãe” é reconhecer exatamente esta unidade de opostos que desafia nossa tradicional visão de mundo, mergulhar na fantasia das mais elementares e primais realidades da natureza humana; regidas pelo princípio de Eros.
O embaixador J.O DE MEIRA PENNA, muito precisamente, assim define o arquétipo materno em sua dimensão impessoal / coletiva:

“O inconsciente é precisamente o domínio insondável dos arquétipos, “os reinos infinitos de todas as formas possíveis” onde “serpenteiam os fantasmas como um rio de névoas”... As Mães são as imagens primordiais- a expressão multiforme, englobante e dramática daquilo que é o arquétipo telúrico primordial: a Magna Mater, a Grande Mãe, a Terra Mãe, a Natureza.”( MEIRA PENNA, José Osvaldo de. Em Berço esplendido. Ensaios de Psicologia Coletiva Brasileira. RJ: Topbooks / Instituto Liberal, 1999, 2º Edição, p.54. )

Enquanto as imagens masculinas do inconsciente tendem a um relacionamento mais próximo da consciência e do mundo do ego, as imagens femininas mergulham nas obscuras paisagens telúricas do inconsciente, no mistério das origens irracionais da realidade humana e trans-humana, revelando os incompreensíveis hieróglifos da Magna Carta da alma e da própria vida.

Pode-se encontrar em uma fala de Mefistófeles, nas páginas do FAUSTO de GOETHE, uma definição singular do mistério arcaico do feminino personificado pela imagem arquétipica das deusas mães:

“Revelo-te, contrariado, um dos maiores mistérios. Há deusas poderosas que reinam na solidão. Em volta delas não existe sequer o lugar, menos ainda o tempo. Sentimo-nos comovidos só de falar nelas. São as MÃES.” ( GOETHE, J. W. Fausto. RJ: Otto Pierre Editores, 1980, p. 250.)

Talvez, o que antes de tudo diferencie a imagem arquétipica de Anima da imagem arquétipica da Grande Mãe seja justamente a ausência da criança, do filho. Anima é normalmente personificada pela mulher velada ou desconhecida, a irmã, a amiga, a amante ou a virgem. EMA JUNG em um original ensaio sobre a presença arquétipica aqui discutida, a identifica ainda, em seu plano mais elevado, com a própria Anima Mundi, com a representação de algo precioso e escondido no seio da matéria e do mundo. Assim sendo, em sua dimensão supra pessoal, que não pode ser integrada totalmente pela consciência, enquanto componente diferenciado da totalidade da personalidade, Anima seria uma espécie de Deusa da Natureza. Além de vestir a pele de alguns animais como a lebre, a gata, ou pássaros como a pomba e a águia, como é possível deduzir de imagens recorrentes nas narrativas folclóricas e religiosas, também podemos encontra-la nas imagens de fadas, sereias, fantasmas, ou ainda, deusas vinculadas a fertilidade e heroinas como Afrodite, Cibele, Helena, Atena, etc.

O ARQUETIPICO DA GRANDE MÃE E A EXPERIÊNCIA ARCAICA DA FÓRMULA VASO-CORPO

Em Psicologia analítica o arquétipo do grande feminino, da Grande Mãe, confunde-se em suas variadas manifestações com o simbolo central da própria representação do inconsciente...
Durante o sono o ego retora diariamente ao seio materno do inconsciente do qual se originou e não é difícil adivinhar sua permanência diurna em nossas íntimas nostalgias e fantasias de infância ou no fundo dos mais criativos e profundos devaneios e ansiedades que nos acompanham pela vida a fora.
Como introdução ao tema gostaria de sugerir aqui uma reflexão em torno do simbolo central do feminino, a equação arquetípica corpo-vaso, valendo-me de um fragmento da obra mais conhecida sobre o assunto, ou seja, A Grande Mãe: Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente de Erich Neuman.

“ O núcleo simbólico do Feminino é o vaso. Desde os primórdios da evolução até seus estágios mais recentes, encontramos esse símbolo arquétipo como a essência do feminino. A equação simbólica básica MULHER=CORPO=VASO corresponde, talvez, a experiência básica mais elementar da humanidade com relação ao Feminino, em que este além de vivenciar a si próprio, será vivenciado pelo Masculino.
Todas as funções vitais básicas, principalmente o “metabolismo”, ocorrem neste esquema corpo vaso, cujo o “interior” é desconhecido. Suas zonas de entrada e saída tem um significado muito especial, pois da mesma forma que o alimento e a comida são colocados para dentro desse vaso desconhecido, dele mesmo “nascerão” coisas de todas as funções criadoras, desde as excreções e o sêmen, até a respiração e a palavra.
Todos os orifícios corporais- olhos, ouvidos, nariz, boca, (umbigo), reto, área genital-, assim como a pele, enquanto considerados locais onde ocorrem as trocas entre o interior e o exterior, tinham um aspecto numinoso para o homem primitivo. Por esse motivo, eles também são destacados como áreas de “ornamentação” e proteção e, nas auto-representações artísticas, tem um papel especial enquanto ídolos.
A concretude física do corpo vaso, cujo interior permanece sempre obscuro e desconhecido é a realidade do indivíduo, o local onde vivencia todo o mundo instintivo do inconsciente. Tal processo se inicia com as experiências básicas do recém nascido de fome e sede, que o incomodam de dentro para fora- a partir da escuridão do corpo-vaso- como todo tipo de ânsia, dor e pulsão. Ao mesmo tempo, tanto o ego como a a consciência ocupam tipicamente os seus lugares na mente, onde serão apercebidas, por essas instâncias, reações estranhas, oriundas do interior do corpo-vaso.
A equação arquetípica corpo-vaso é de importância fundamental para a compreensão do mito e da simbologia e, além disso, para compreensão da imagem de mundo do homem primitivo.
(...)
O simbolismo do corpo como vaso ainda está vivo para o homem moderno, na medida em que acredita na existência de uma alma contida no corpo. Também falamos de nossa “interioridade” como o mundo interno, nossos valores mais íntimos etc., quando desejamos nos referir a conteúdos da alma ou do espírito, como se eles existissem “dentro” de nós, em nosso corpo vaso, e como se pudessem 'sair' dele.” (Erich Neumman. A Grande Mãe: Um estudo fenomenológico da constituição feminina do inconsciente. SP: Cultrix, 9º ed, 1999; p. 46)

QUASE EXISTÊNCIA

ACASO E VIDA

O acaso é mais sábio
que os significados
que escrevemos na vida
pelos caminhos do mundo.

Pois a vida
não tem sentidos
guardados em misteriosos propósitos
ingenuamente concebidos
pela ingenuidade d'alma.

A vida é apenas
o ser de todas as coisas
em movimento
dentro da gente
no brincar da sorte
e do acaso.

EGO E VENTO

Esqueço por um instante
o desarticulado conjunto biográfico
esculpido pelas inúteis rotinas
que me dão forma.
Pois vim ao mundo
para saber
a aventura de sucessivos acasos
e desencontrar futuros
no vento norte da vida.

MERLIM E CERNUNNUS

Na Vita Merlini (1135) cuja autoria é atribuida a Geoffroy de Monmouth, Merlim surge como o rei de Demetae ( Dyved-Pais de Gales) que enlouquece diante dos horrores da guerra refugiando-se na floresta da Caledônia ( Velyddon, no sul da Escócia).
Isolado torna-se vidente e profeta assistido por sua irmã Ganeda que lhe constroi um palácio de setenta portas e setenta janelas de onde pode dedicar-se a observação dos astros. O texto é perpassado por suas profecias sobre o futuro da Bretanha.
Este curioso “Merlim Silvestre” encontra-se mais próximo do imaginário pagão do que o “filho do diabo” de Robet de Boron, mas ambos compartilham símbolos comuns. Alguns dos mais significativos são a errância, a ocorrência em ambas narrativas do episódio de previsão de uma trípice morte onde o riso anuncia a vidência associando-se ritualisticamente a ela como um sinal irreverente.
Julgo inútil aqui especular sobre as possíveis fontes comuns utilizadas pelos dois autores; parece-me mais interessante apontar para a definição do mito a partir de certas imagens centrais e configuradoras que levou a tradição a associar a personagem de Merlim a enigmática figura do deus gálico conhecido como Cernunnus ( o cornudo) representado com galhos de cervídio, por exemplo, na bacia de Gundrestup, onde aparece rodeado por diversos animais e serenamente imóvel em posição búdica em uma cena fantástica cujo o pleno significado hoje nos escapa. Sobre Cernunnus, seguro dizer que era um deus da natureza e da floresta possivelmente associado ao Nemeton ( bosque sagrado) do imaginário druidico. Deus das metamorfoses e do renascimento, em alguns aspectos, aproxima-se do mercúrio alquímico e não é realmente difícil entender as razões especulativas que o fizeram ser associado a Merlim....