O racionalismo metafisico e
secular que caracteriza a tradição filosófica ocidental, impôs, da idade media até o século XX, um arraigado preconceito em
relação ao mito e a seu suposto “arcaísmo cognitivo”, considerados como
sinônimos de fabulações arbitrarias ou enunciados fantasiosos, em sentido
pejorativo, contraposto ao pensamento logico dedutivo. Foi apenas nas primeiras
décadas do século XX que autores como Carl Gustav Jung, Mircea Eliade, Ernest
Cassirer, Gilbert Durant e Bachelard levaram a cabo uma reabilitação da mitologia
e do símbolo como forma de linguagem e
expressão do mais elementar de nossa condição humana.
Tomando aqui como referencia
Gilbert Durant, confesso herdeiro intelectual de Bachelard e da sua Psicanalise
do Fogo, creio muito interessante a seguinte passagem de As Estruturas antropológicas do imaginário
para esclarecer a relação entre arquetípico e mito:
“ No prolongamento dos esquemas arquetípicos, e simples símbolos
podemos considerar o mito. Não tomaremos este termo na concepção restrita que
lhe dão os etnólogos, que fazem dele apenas
o reverso representativo de um ato ritual. Entenderemos por mito um
sistema dinâmico de símbolos, arquetípicos e esquemas, sistema dinâmico que,
sob o impulso de um esquema tende a compor-se em narrativa. O mito é já um
esboço de racionalização, dado que utiliza o fio do discurso, no qual os
símbolos se resolvem em palavras e os arquetípicos em ideias. O mito explica um
esquema ou um grupo de esquemas. Do mesmo modo que o arquétipo promovia a ideia
e que o símbolo engendrava o nome,
podemos dizer que o mito promove a doutrina religiosa, o sistema filosófico,
ou, como bem viu Bréhier, a narrativa histórica e lendária. É o que ensina de
maneira brilhante a obra de Platão,na qual o pensamento racional parece
constantemente emergir de um sonho mítico e algumas vezes ter saudade
dele.Verificamos, de resto, que a organização dinâmica do mito, corresponde muitas vezes à organização
estática a que chamamos ‘constelação de imagens’ O método da convergência evidencia
o mesmo isomorfismo na constelação e no mito.”
(Gilbert Durand. As estruturas
antropológicas do imaginário-4ª ed. SP:Editora WMF-Martins Fontes, 2012, p.
62-63)
O mito não se relaciona, portanto, a um ato
ritual, muito menos é incompatível com o pensamento racional. Mas personifica
uma linguagem imagética que perpassa varias dimensões das codificações
culturais da realidade coletivamente vivida. É até mesmo possível reivindicar
sua contemporaneidade no cinema, na politica e literatura, mesmo que a partir
de configurações psicológicas inteiramente seculares. A experiência das imagens
é um modo não verbal de codificar a realidade.
Arquetípicos e símbolos dão forma
as representações coletivas, estabelecem não apenas padrões, mas
topologias que atuam de forma dinâmica
na definição do próprio pensamento e organizações humanas. Por isso. o mito é
uma experiência viva ainda hoje. Pois a existência de um imaginário é premissa
estrutural e normativa para qualquer forma de representação social e
configuração cultural.
O mito é basicamente uma
gramática.