terça-feira, 23 de janeiro de 2024

MEU MODO DE SER NO MUNDO

Eu sou o que vejo
e o mundo é como eu sou.
Mesmo que eu seja ninguém
e o mundo seja sempre muitos,
apesar de único.

Sei que  mudo o tempo todo
e o mundo é sempre um  outro
inventando o futuro.

Talvez um dia eu me torne alguém,
antes que o nada me arranque de tudo.

Mas, bem lá  no fundo,
onde eu não vejo
e não sou o mundo,
há um rosto mudo
esperando por mim,
ou por alguém,
que nunca chega,
e sempre está por vir,
ou esperando que o dia amanheça.

Na vida,
tudo que há é transição ,
indeterminação e incerteza.

Sou como me vejo no mundo
e não como o mundo me enxerga.





CONTRA A PSICANÁLISE


Sou louco.
Com toda lucidez do mundo.
Admito que sou 
um fiel devoto da minha falta de juízo.

Jamais me farão procurar uma cura
ou adaptar-me a realidade.
Sou avesso a normas
e a toda moralidade.

Sou louco
e isso me basta.
Não me queiram submisso
ao tédio das psicanálises.
Gosto do colo das tempestades.

Minha singularidade, 
minha desracionalidade,
não cabe na máscara de Édipo,
no jogo tolo de Papai e Mamãe,
e não se resolve com o velho truque da confissão.
Meu sonho é livre de interpretações.














domingo, 21 de janeiro de 2024

O PASSADO COMO PARADOXO


O passado é o eterno retorno
da expectativa de um passo
que já foi dado.

É um futuro que já aconteceu,
é alguém que já nasceu,
que morreu.

É o movimento,
a inconstância e incerteza,
do que já foi consumado.

O passado é quem não está mais ao meu lado.
É sempre a presença de uma ausência.
É o que nunca aconteceu.




SUPREMO SILÊNCIO


Em tudo que há 
existe um grande silêncio.
Ele impregna todas as coisas vivas e inanimadas,
confundindo-se com a escuridão do  universo.

Assim, o mundo, a natureza,
toda matéria,
acontece dentro do corpo,
quase infinito, deste silêncio.

Ele  envolve,
 consome, cala,
e reduz a nada todo complexo edifício de palavras
que dedicamos a vida.

Trata-se de um silêncio absoluto, onipotente, onipresente,
e indiferente ao sopro, ao som, 
e ao verbo.

Um silêncio que se  estende do  início  ao fim de tudo.

Um atemporal, 
insuperável,
 e quase insuportável silêncio,
que não será ultrapassado
pela soma de tudo que já foi e será dito ou escrito
ao longo da soma de todos os séculos.

Este silêncio é, simplesmente,
a morte.









sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O FORASTEIRO ERRANTE

Não serei analisado,
interpretado,
enquadrado,
classificado, rotulado, 
e, por fim, julgado e condenado 
pelos seus pares ou  adversários.

Ando por aqui
de passagem,
sem lei, governo ou identidade.
Não tentem me impor um rosto.

Não cabem em mim
sobrenomes,
verdades ou vaidades.
Sou isso , aquilo,
e muito pelo contrário.

Também não esperem
que eu seja o mesmo
de algum outro dia.
Justo eu, 
que nem os conheço
e prefiro fingir
que não os vejo
quando nos esbarramos na esquina.

Não esperem, portanto, de mim
Nem mesmo  um educado bom dia.
Não quero deixar lembrança
ou saudade.
Nenhuma pista de onde vou
ou de onde venho.

Sigo fugindo dos outros
e também da minha própria sombra.
Sigo errante, incerto e inconstante.
E, assim, seguirei a diante,
sem deixar vestígios.
Escapando sempre a toda vigilância
de sua nefasta política de segurança.

Contra vocês e suas leis, serei sempre livre.






O ENIGMA DA LIBERDADE

Afinal, a quem pertence
meu tempo livre,
Minha liberdade de pensamento,
se tudo que faço e penso
é expressão de tendências,
estatísticas e algoritmos?

Se ser eu é ser como muitos,
e minha vida inteira é muito menos do que um segundo do acontecimento 
de nossa espécie,
ou, ainda,  de toda vida que habita este planeta,
 é inteiramente nula minha existência,
minha consciência.
Nunca me bastará
de algum modo Ser.
Pois, que assim seja!

Liberdade é estar aquém de Ser,
de saber  disso tudo
que constitui o mundo.
é criar onde não se pode ser livre,
É nunca desistir de mudar,
é inventar a própria morte,
cultivar fora e dentro de si
um nada, um devir e um sonhar.













domingo, 14 de janeiro de 2024

PALAVRA VIVA

A palavra que nos acontece
não se deixa prender pela escrita.
É transmitida pela memória coletiva,
passando de uma boca a outra,
através dos anos que nos devoram,
como qualquer coisa viva .

Ela circula por todos os ouvidos,
por gerações, imaginações e vidas
que a morte não cala,
pois sempre são revividas,
re-acontecidas como lembrança
e, assim, jamais esquecidas ou perdidas
entre as sempre renovadas ruínas
do aqui e agora.

É uma palavra que não tem dono,
autoridade ou hierarquia,
que corre entre todos,
contando e encantando coisas
que nunca foram notícias.

Tal palavra não cabe na brevidade do século,
na vaidade do livro.
É uma palavra viva
na respiração e na língua.
É uma palavra corpo
que nunca termina de acontecer,
de dizer e ser, além de toda comunicação.












quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

O PASSADO COMO DOENÇA


Há um passado
que não para de crescer
contra o tempo presente
em nome do avanço de uma antiga catástrofe civilizacional.

Ele vem do norte
como uma grande avalanche
que nos carrega em sua queda.

Este passado se chama Razão
e cresce com nossa ilustração*,
com nossa fome de Estado,
de controle e de progresso,
como um  processo tecnológico,
quase tétrico teológico,
de absoluto narcismo.

Nosso triste sonho de vaidade 
é a apoteose do delírio
de uma história universal
inspirada pela acumulação de riquezas e bens
da qual toda forma de vida 
se tornou refém.

O poder é o passado personificado
como espírito nacional,
como projeto colonial,
desigual, racial, racional
e como solução final
para todos os dilemas da humanidade.

O poder é  o passado como exploração
do outro e da natureza,
como ambição pessoal,
como destruição do que pode e poderia ser.

Logo, 
 ninguém existirá 
para abrigar lembranças,
não haverá futuros ou tempo presente,
mas apenas o devir vazio
de uma eternidade morta e enterrada
sob o passado de nossa humanidade indecente,
devorada por suas guerras,
teologias e verdades supremas, 
por sua ambição desmedida
na contramão de toda natureza.

Tudo em nome do Estado e do progresso universal
que só será  pleno com nossa aniquilação,
com o triunfo do nosso passado.



* Aufklãrung














domingo, 7 de janeiro de 2024

A INVENÇÃO DO PASSADO

Inventamos um passado
para nos abrigar do tempo,
para lidar com as perdas,
mudanças e mortes
que definem a vida.

Inventamos a doce prisão
de nossa nostalgia,
de nossa ilusão de uma origem tranquila,
de uma juventude idílica,
ou de uma duvidosa inocência irremediávelmente perdida.

Inventamos identidades,
padrões e origens paradisíacas,
porque não suportamos o efêmero
e todo a insignificância que desde sempre nos define.

Contra o próprio tempo
inventamos passados
e nos tornamos trágicos,
demasiadamente humanos
e assustados.

Fugimos do esquecimento
produzindo memórias,
histórias e mitos,
contra tudo que nos preenche
como um grande e inumano vazio.

Inventamos em nós árvores e pedras
para permanecer sobre a terra
enraizados e duros,
quase felizes.

sábado, 6 de janeiro de 2024

ALÉM DA ESCRITA E DO TÉDIO

A escrita não é mais do que a realidade de uma ilusão.
Ela é a topografia da imaginação
que nos encanta e domina.

A escrita é a palavra cativa
ao verbo e a norma 
que foge a vida que revela o efêmero da voz.

A escrita  é rabisco e tinta sem brilho
diante das letras bandidas e errantes
que abominam a prisão das estantes
e a gramática dos letrados.

Há letras livres passeando sujas
pelas ruas e becos onde circulam
bocas e ouvidos analfabetos.
Seus corpos falam mais
do que o vago significado
de qualquer palavra.

Existe vida para ser vivida
além da escrita e do tédio
que tentam nos seduzir através das telas
como se fossem contra nossa melancolia
um eficiente remédio.