quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

O ENTENDIMENTO COMO DEVIR

Problematizar aquilo que se coloca como evidente, como norma ao conhecimento, é buscar o outro sempre renovado do entendimento. Pois, enquanto esclarecimento de si, entendimento é a apreensão do devir. Sempre nos empurra para além do ponto no qual nos encontramos oferecendo uma possibilidade nova de significação, de subjetivação.

A transversalidade da apreensão de um sentido é a experiência que condiciona o encadeamento dos  enunciados. Que o reduz a um delicado artesanato, labirinto, onde nos perdemos na medida em que nos encontramos. Nunca existe um ponto final, um intinerário linear e teleológicamente dado.



INTERIORES URBANOS

Quero a cidade fechada
Dos caminhos labirínticos e dos interiores,
Aquela que foge da nudez dos espaços.
Que prefere a discrição da vida privada
Aos eventos públicos.

Quero justo esta cidade que só existe
Em meus roteiros afetivos.
Que não tem vida,
Nem mesmo um corpo definido.

Que é o quarto e a sala,
Toda forma de isolamento
E abrigo.

Quero sempre estar nesta cidade
Onde a própria cidade não existe.


SOBRE A CRÍTICA DO TEMPO PRESENTE



A reflexão sobre o tempo presente pressupõe a critica de nossas praticas mais corriqueiras e banais, o identificar do que somos através do contraste com o que não somos; com nossas recusas conscientes e resistências inconscientes. Esta é a única forma de saber o que estamos nos tornando: desmitificando quem pensamos ser.

A reflexão sobre o presente é também uma recusa do mesmo. Pois sabemos que o momento de agora não passa de um lugar de transição entre o passado e o futuro, exigindo sempre redefinições. Contrariando o senso comum, o presente não define onde estamos ou nossas ações, ele é onde já não estamos, mas ainda não é passado.



terça-feira, 9 de janeiro de 2018

SOBRE A VERDADE COMO JOGO

Na prática, a noção de verdadeiro e falso é um dispositivo de regulamentação social das relações humanas. É um jogo de poder, de  validação deste ou daquele saber sobre outros. Há algo de perigoso em afirmar uma verdade. Trata-se de um ato deliberado de parcialidade. Qualquer verdade é também a afirmação de determinados valores. Por isso muitas pessoas possuem necessidade da verdade para validar seu próprio mundo vivido, sua visão de mundo. em contrapartida desqualificam suas concorrentes no jogo por simples afirmação de identidade. Tomam a adesão a certos enunciados com pretensão a verdade como uma espécie de revelação redentora.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O SENSO COMUM COMO PROSA DO MUNDO

Em toda sociedade vigora uma prosa do mundo que se opõe a cultura erudita (livresca) e as suas polêmicas e disputas em torno da questão da verdade como norma de vida. De um modo geral as pessoas não tomam como referência a sofisticação acadêmica em seus engajamentos cognitivos e convenções de verdade. Buscam, ao contrário, o conforto e o sedentarismo do senso comum, onde as palavras funcionam apenas como uma convenção útil e necessária ao convívio humano, onde é possível viver de pequenas e cotidianas certezas verbais.

O senso comum é uma forma de representação coletiva do mundo orientada pelo razoável e por certo pragmatismo. Não exige grande lapidação intelectual e nem se coloca questionamentos muito profundos. Prima apenas pelo equilíbrio e pelo bom senso, mas, não raramente, confronta com a pretensão a verdade dos eruditos e suas novidades, dado que é necessariamente conformista e baseado em generalizações amplas.

Fugir ao senso comum é  habitar seu próprio discurso indiferente a prosa do mundo e as conformações de uma época. É inventar-se através do aprendizado de dizer a si mesmo. Mas isso também significa fugir aos lugares comuns da erudição e exige muta experimentação.


quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

MASSA E PODER: UMA ANTROPOLOGIA PATOLÓGICA

Não é possível em algumas poucas palavras registrar a contento o impacto da leitura de um clássico como Massa e Poder de Elias Canetti. Sua matéria prima, em sentido amplo, é nossa própria condição humana e o processo civilizatório. Mas a partir de um ângulo “selvagem”, ou seja, não domesticado pela sociologia ou pela ciência politica. Esta é a maior virtude de sua densa e bem fundamentada narrativa que pode ser considerada uma critica radical ao poder através de uma espécie de antropologia patológica.

O mito moderno do contrato social é aqui substituído por um  associativismo instintivo em uma trama narrativa  que esboça uma versão original sobe as origens do totalitarismo .

Significativamente, uma das imagens chaves deste livro é o arquetípico da luta pela sobrevivência. Questão que anima a história humana desde seus primórdios e compreende uma das motivações instintivas mais preeminentes. Afinal, foi ela quem inspirou ao home arcaico a superação do medo do desconhecido, do pavor de ser tocado, mesmo por seus semelhantes, permitindo, através do contato, o advento da malta e, posteriormente, da massa, como padrão elementar da associação humana.

A definição e tipificação de massa elaborada por Canetti, sua diferenciação e relação com a  malta, é questão que por sua complexidade não comporta aqui uma apresentação resumida e apressada. Cabe apenas apontar que Canetti revela um conhecimento singular das culturas arcaicas, mas é mediante o reconhecimento da permanência de alguns elementos deste arcaísmo em nosso comportamento contemporâneo mais cotidiano, que ele tece os contornos de uma psicologia da multidão que tem na expressão corporal/motora um de seus meios mais concretos de expressão cognitiva.

Assim, o ato de agarrar, de triturar, de morder, de permanecer ereto, subordina-se a constituição de uma economia simbólica da performance do poder e da potencia de existir. O próprio poder, neste contexto, entendido como um produto da própria luta pela sobrevivência, associada à distinção do herói civilizador, do grande líder, posteriormente ungido pela metafisica religiosa. O líder é legitimado pela multidão, glorificado como a personificação do sobrevivente por excelência.  

Com a decadência das religiões monoteístas da lamentação, fundamentadas no imperativo do uno e do universal, que legitimava e fundamentava o prestigio e autoridade do líder, o poder encontrou na malta, no conteúdo da malta da multiplicação, para usar uma categoria do autor, um novo e secular princípio para a manutenção do amalgama coletivo. Assim, não surpreende que hoje em dia todos os países estejam mais inclinados a proteger sua estrutura produtiva do que a vida de seus próprios membros. O líder, personificação ideal do sobrevivente, do todo que é apenas um, é aquele que realmente importa diante das multidões cujo destino tem nas mãos.
Sendo desta maneira, Canetti assim define a distinção entre o rico, o detentor do poder e o famoso no que diz respeito a gloria:

Para o rico o que importa é o dinheiro, não montes e rebanhos. Os homens não interessam; basta o fato de poder compra-los. Já o detentor do poder, coleciona homens. Os montes e rebanhos também não lhe interessam, a não ser como meio para adquirir homens. Já para o famoso, o que importa são os coros que gritam seu nome. Não importa se vivos, mortos ou não nascidos, o imperativo é multiplicar aqueles que gritam seu nome, independente dos montes e rebanhos. Assim, cada um a sua maneira exerce seu poder diante da massa anônima.

A terapêutica que o autor parece insinuar diante do patológico e arcaico fascínio do líder que personifica para todos o drama da sobrevivência, nutrindo uma relação irracional com as massas, potencializando sua tendência ao crescimento, ao expansionismo constante, na paradoxal afirmação do um que é todos, é a aceitação franca de nossa própria vulnerabilidade e limitações.   

A prosa densamente literária do denso estudo de Canetti esta longe de alguma forma ter sido aqui minimamente apresentada, muito menos resumida. Neste caso, nenhuma resenha possível nos prepara para a experiência da leitura e sentimento de perplexidade diante da fragilidades de todo humanismo quando confrontado com a concretude da condição humana.


A ÉTICA DO CUIDADO DE SI E DOS OUTROS

“em nossas sociedades, a partir de um certo momento – e é muito difícil saber quando isso aconteceu –, o cuidado de si se tornou alguma coisa um tanto suspeita. Ocupar-se de si foi, a partir de um certo momento, denunciado de boa vontade como uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo ou de interesse individual em contradição com o interesse que é necessário ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Tudo isso ocorreu durante o cristianismo, mas não diria que foi pura e simplesmente fruto do cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois no cristianismo buscar sua salvação é também uma maneira de cuidar de si. Mas a salvação no cristianismo é realizada através da renúncia a si mesmo. Há um paradoxo no cuidado de si no cristianismo...”
Michel Foucault in Ética, Sexualidade, Política. Org. e seleção de textos Manoel B. da Motta. Trad. Elisa Monteiro, Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. (Ditos & Escritos; V)


Porque pensamos como pensamos? Eis a pergunta mais elementar de uma hermenêutica de si mesmo, de um exame de nossos “jogos de verdade” e formatação do real que define os limites cotidianos de nossa linguagem.

É em torno daquilo sobre o que nos calamos que se esboça o provisório de qualquer resposta.

O exame de quem somos é a exploração das fronteiras de nossas certezas e valores, dos nossos condicionamentos mais insuspeitos, como construções perenes de sentido. Pois a única questão que permanece em nosso horizonte é aquela pertinente ao que podemos ainda ser além daquele ponto no qual nos encontramos.

Inspira-se tal horizonte ético naquele recuo a antiguidade do ultimo Foucault, que articula a questão da verdade, sujeito e poder a partir das técnicas do cuidado de si e dos outros nos primórdios da hermenêutica do sujeito na cultura ocidental. Busca-se tal referencia como ferramenta de estratégias contemporâneas de individuação, de redefinição da esfera pública como devir do eu e dos outros através de praticas discursivas que apontam para construção da existência como obra de arte.



terça-feira, 2 de janeiro de 2018

ABRIGO E SILÊNCIO

Inventei o abrigo de um discurso.
Afinal, o mundo apenas existe através do dizer das coisas,
Na linguagem em movimento,
Além do significante  e do significado,
Como uma presença abstrata
Entre a paisagem e o corpo.
Tudo é devir e  sentido
No incerto fato de existir.
Neste abrigo de discurso
É, entretanto, a palavra que me inventa

Como silêncio.

O LUGAR DA INDIVIDUALIDADE NO ACONTECER SOCIAL

Viver para si ou para o mundo? A realidade de nossas praticas coletivas procuram harmonizar estes dois impulsos difusos e opostos do exercício de nos mesmos enquanto seres viventes em estado de sociedade. Somos educados para perpetuação pragmática da ordem das coisas, conformados a um comportamento mimético  regido pela experiência de signos e símbolos verbais e não verbais. Através deles a dialética do eu e dos outros materializa o social como co- existência de todos em uma dada imagem de realidade e mundo. Mas a consciência de nossa individualidade é um silêncio e um desvio em relação a experiência do social. Habitamos este silêncio onde os signos e símbolos podem ser subvertidos, desfigurados ou reinventados através de recodificações inéditas e inesperadas. A individualidade é o lugar da criatividade, do incerto e efêmero. É onde a norma declina e as mudanças são gestadas revelando o social como devir.