Não é possível em algumas poucas
palavras registrar a contento o impacto da leitura de um clássico como Massa
e Poder de Elias Canetti.
Sua matéria prima, em sentido amplo, é nossa própria condição humana e o
processo civilizatório. Mas a partir de um ângulo “selvagem”, ou seja, não
domesticado pela sociologia ou pela ciência politica. Esta é a maior virtude de
sua densa e bem fundamentada narrativa que pode ser considerada uma critica
radical ao poder através de uma espécie de antropologia patológica.
O mito moderno do contrato social é aqui substituído por um associativismo instintivo em uma trama narrativa que esboça uma versão original sobe as origens do totalitarismo .
Significativamente, uma das
imagens chaves deste livro é o arquetípico da luta pela sobrevivência. Questão
que anima a história humana desde seus primórdios e compreende uma das
motivações instintivas mais preeminentes. Afinal, foi ela quem inspirou ao home
arcaico a superação do medo do desconhecido, do pavor de ser tocado, mesmo por
seus semelhantes, permitindo, através do contato, o advento da malta e,
posteriormente, da massa, como padrão elementar da associação humana.
A definição e tipificação de
massa elaborada por Canetti, sua diferenciação e relação com a malta, é questão que por sua complexidade não
comporta aqui uma apresentação resumida e apressada. Cabe apenas apontar que Canetti
revela um conhecimento singular das culturas arcaicas, mas é mediante o
reconhecimento da permanência de alguns elementos deste arcaísmo em nosso
comportamento contemporâneo mais cotidiano, que ele tece os contornos de uma
psicologia da multidão que tem na expressão corporal/motora um de seus meios
mais concretos de expressão cognitiva.
Assim, o ato de agarrar, de
triturar, de morder, de permanecer ereto, subordina-se a constituição de uma
economia simbólica da performance do poder e da potencia de existir. O próprio
poder, neste contexto, entendido como um produto da própria luta pela
sobrevivência, associada à distinção do herói civilizador, do grande líder,
posteriormente ungido pela metafisica religiosa. O líder é legitimado pela
multidão, glorificado como a personificação do sobrevivente por excelência.
Com a decadência das religiões
monoteístas da lamentação, fundamentadas no imperativo do uno e do universal,
que legitimava e fundamentava o prestigio e autoridade do líder, o poder
encontrou na malta, no conteúdo da malta da multiplicação,
para usar uma categoria do autor, um novo e secular princípio para a manutenção
do amalgama coletivo. Assim, não surpreende que hoje em dia todos os países
estejam mais inclinados a proteger sua estrutura produtiva do que a vida de
seus próprios membros. O líder, personificação ideal do sobrevivente, do todo
que é apenas um, é aquele que realmente importa diante das multidões cujo
destino tem nas mãos.
Sendo desta maneira, Canetti
assim define a distinção entre o rico, o detentor do poder e o famoso no que
diz respeito a gloria:
Para o rico o que importa é o dinheiro,
não montes e rebanhos. Os homens não interessam; basta o fato de poder
compra-los. Já o detentor do poder, coleciona homens. Os montes e rebanhos também
não lhe interessam, a não ser como meio para adquirir homens. Já para o famoso,
o que importa são os coros que gritam seu nome. Não importa se vivos, mortos ou
não nascidos, o imperativo é multiplicar aqueles que gritam seu nome,
independente dos montes e rebanhos. Assim, cada um a sua maneira exerce seu
poder diante da massa anônima.
A terapêutica que o autor parece
insinuar diante do patológico e arcaico fascínio do líder que personifica para
todos o drama da sobrevivência, nutrindo uma relação irracional com as massas,
potencializando sua tendência ao crescimento, ao expansionismo constante, na
paradoxal afirmação do um que é todos, é a aceitação franca de nossa própria
vulnerabilidade e limitações.
A prosa densamente literária do
denso estudo de Canetti esta longe de alguma forma ter sido aqui minimamente
apresentada, muito menos resumida. Neste caso, nenhuma resenha possível nos
prepara para a experiência da leitura e sentimento de perplexidade diante da
fragilidades de todo humanismo quando confrontado com a concretude da condição
humana.
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