Em um breve ensaio sobre a situação da mulher na Europa, originalmente publicado na Alemanha em 1929, C. G.Jung tece certas considerações interessantes sobre o significado do tempo presente que ainda hoje se aplica aquilo que muito imprecisamente podemos conceituar como contemporaneidade, ou seja, o profundo e inédito “vazio” cultural ou desconstrução da tradição que define a dinâmica cultural de nossos dias. Assim sendo, vale a pena aqui reproduzir a seguinte passagem como mais um elemento, ou fragmento, sobre a a nova fenomenologia do contemporâneo já muitas vezes abordada neste espaço:
“... O que chamamos presente não passa de uma fina camada superficial que se cria nos grandes centros da humanidade. É muito fina, como na antiga Rússia, e assim é irrelevante ( como os acontecimentos mostraram). Mas quando atinge uma certa espessura e força, já podemos falar de cultura e progresso, surgindo então problemas característicos de uma época. É neste sentido que a Europa tem um presente, e há mulheres que vivem nele e estão sujeitas aos seus problemas. E só dessas mulheres podemos dizer alguma coisa. Aquelas que se sentem satisfeitas com os caminhos e possibilidades que a Idade Media lhes oferece não tem qualquer necessidade do presente e suas experiências. Mas o homem que é do presente- seja qual for a razão- já não pode retornar ao passado, sem sofrer uma irreparável perda. Não raro esse retorno se torna impossível, mesmo que se esteja disposto a sacrifícios. O homem do presente deve trabalhar para o futuro e deixar a outros a tarefa de conservar o passado. Por isso, alem de construtor, é também um destruidor. Ele e seu mundo tornaram-se ambíguos e questionáveis. Os caminhos que o passado lhe indica e as respostas que dá aos seus problemas são insuficientes às suas necessidades presentes. Os confortáveis caminhos do passado já foram obstruídos e novas trilhas foram abertas, com novos perigos, totalmente desconhecidos do passado. Segundo o provérbio, nada se aprende da história; também quanto aos problemas do tempo atual, via de regra nada dirá. O novo caminho deve ser traçado em terreno virgem, sem qualquer pressuposto e, infelizmente, muitas vezes sem dó nem piedade.”
(C G JUNG. A Mulher na Europa, in Obras Completas Volume X/3- Civilização em Transição. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 112)
É interessante como Jung , em sua inegável sensibilidade pensa sua história contemporânea como uma ruptura radical com a tradição e para o significativo detalhe de que a maior parte das pessoas no mundo vivem de modo a-histórico, não alcançam qualquer interpretação ou preocupação realmente significativa com as questões e dilemas definidoras do tempo presente. A historicidade enquanto uma modalidade de sentimento ou percepção das coisas é praticamente um privilégio reservado a uma parcela pequena da população mundial contraposta a grande massa ainda mergulhada de alguma forma em um mundo fantasmagórico definido pela tradição. Recorrendo a uma segunda passagem do mesmo ensaio:
“... Trata-se, afinal, de saber se queremos ser a-históricos e, assim, fazer a história ou não. Ninguém pode fazer história se não quiser arriscar a própria pele, levando até ao fim a experiência de sua própria vida, e deixar bem claro que sua vida não é uma continuação do passado, mas um novo começo. Continuar é uma tarefa que até os animais são capazes de fazer, mas começar, inovar é a única prerrogativa do homem que o coloca acima dos animais.”
( Idem p. 114)
Evidentemente seria uma lamentável miopia tomar essas palavras de Jung, arrancadas de seu contexto, em alguma espécie de discurso revolucionário estilo sécs. XIX e XX. O que aqui me parece ser problematizada é a tendência que temos na definição de nossas próprias vidas para seguir o confortável rumo dos valores impostos por esta ou aquela tradição cultural desconsiderando o inédito, o potencial criativo e inventivo que potencialmente existe em cada individualidade humana.
Nossa contemporaneidade é em certo sentido a percepção abstrata desta possibilidade inedita que afirmou-se para o homem ocidental através das revoluções comportamentais e verdadeira reviravolta de valores e certezas que teve lugar no último século. Somos hoje todos um pouco vazios de cultura/tradição, verdadeiros bárbaros contemporâneos entre os destroços do mundo da tradição.