sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

O FORASTEIRO ERRANTE

Não serei analisado,
interpretado,
enquadrado,
classificado, rotulado, 
e, por fim, julgado e condenado 
pelos seus pares ou  adversários.

Ando por aqui
de passagem,
sem lei, governo ou identidade.
Não tentem me impor um rosto.

Não cabem em mim
sobrenomes,
verdades ou vaidades.
Sou isso , aquilo,
e muito pelo contrário.

Também não esperem
que eu seja o mesmo
de algum outro dia.
Justo eu, 
que nem os conheço
e prefiro fingir
que não os vejo
quando nos esbarramos na esquina.

Não esperem, portanto, de mim
Nem mesmo  um educado bom dia.
Não quero deixar lembrança
ou saudade.
Nenhuma pista de onde vou
ou de onde venho.

Sigo fugindo dos outros
e também da minha própria sombra.
Sigo errante, incerto e inconstante.
E, assim, seguirei a diante,
sem deixar vestígios.
Escapando sempre a toda vigilância
de sua nefasta política de segurança.

Contra vocês e suas leis, serei sempre livre.






O ENIGMA DA LIBERDADE

Afinal, a quem pertence
meu tempo livre,
Minha liberdade de pensamento,
se tudo que faço e penso
é expressão de tendências,
estatísticas e algoritmos?

Se ser eu é ser como muitos,
e minha vida inteira é muito menos do que um segundo do acontecimento 
de nossa espécie,
ou, ainda,  de toda vida que habita este planeta,
 é inteiramente nula minha existência,
minha consciência.
Nunca me bastará
de algum modo Ser.
Pois, que assim seja!

Liberdade é estar aquém de Ser,
de saber  disso tudo
que constitui o mundo.
é criar onde não se pode ser livre,
É nunca desistir de mudar,
é inventar a própria morte,
cultivar fora e dentro de si
um nada, um devir e um sonhar.













domingo, 14 de janeiro de 2024

PALAVRA VIVA

A palavra que nos acontece
não se deixa prender pela escrita.
É transmitida pela memória coletiva,
passando de uma boca a outra,
através dos anos que nos devoram,
como qualquer coisa viva .

Ela circula por todos os ouvidos,
por gerações, imaginações e vidas
que a morte não cala,
pois sempre são revividas,
re-acontecidas como lembrança
e, assim, jamais esquecidas ou perdidas
entre as sempre renovadas ruínas
do aqui e agora.

É uma palavra que não tem dono,
autoridade ou hierarquia,
que corre entre todos,
contando e encantando coisas
que nunca foram notícias.

Tal palavra não cabe na brevidade do século,
na vaidade do livro.
É uma palavra viva
na respiração e na língua.
É uma palavra corpo
que nunca termina de acontecer,
de dizer e ser, além de toda comunicação.












quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

O PASSADO COMO DOENÇA


Há um passado
que não para de crescer
contra o tempo presente
em nome do avanço de uma antiga catástrofe civilizacional.

Ele vem do norte
como uma grande avalanche
que nos carrega em sua queda.

Este passado se chama Razão
e cresce com nossa ilustração*,
com nossa fome de Estado,
de controle e de progresso,
como um  processo tecnológico,
quase tétrico teológico,
de absoluto narcismo.

Nosso triste sonho de vaidade 
é a apoteose do delírio
de uma história universal
inspirada pela acumulação de riquezas e bens
da qual toda forma de vida 
se tornou refém.

O poder é o passado personificado
como espírito nacional,
como projeto colonial,
desigual, racial, racional
e como solução final
para todos os dilemas da humanidade.

O poder é  o passado como exploração
do outro e da natureza,
como ambição pessoal,
como destruição do que pode e poderia ser.

Logo, 
 ninguém existirá 
para abrigar lembranças,
não haverá futuros ou tempo presente,
mas apenas o devir vazio
de uma eternidade morta e enterrada
sob o passado de nossa humanidade indecente,
devorada por suas guerras,
teologias e verdades supremas, 
por sua ambição desmedida
na contramão de toda natureza.

Tudo em nome do Estado e do progresso universal
que só será  pleno com nossa aniquilação,
com o triunfo do nosso passado.



* Aufklãrung














domingo, 7 de janeiro de 2024

A INVENÇÃO DO PASSADO

Inventamos um passado
para nos abrigar do tempo,
para lidar com as perdas,
mudanças e mortes
que definem a vida.

Inventamos a doce prisão
de nossa nostalgia,
de nossa ilusão de uma origem tranquila,
de uma juventude idílica,
ou de uma duvidosa inocência irremediávelmente perdida.

Inventamos identidades,
padrões e origens paradisíacas,
porque não suportamos o efêmero
e todo a insignificância que desde sempre nos define.

Contra o próprio tempo
inventamos passados
e nos tornamos trágicos,
demasiadamente humanos
e assustados.

Fugimos do esquecimento
produzindo memórias,
histórias e mitos,
contra tudo que nos preenche
como um grande e inumano vazio.

Inventamos em nós árvores e pedras
para permanecer sobre a terra
enraizados e duros,
quase felizes.

sábado, 6 de janeiro de 2024

ALÉM DA ESCRITA E DO TÉDIO

A escrita não é mais do que a realidade de uma ilusão.
Ela é a topografia da imaginação
que nos encanta e domina.

A escrita é a palavra cativa
ao verbo e a norma 
que foge a vida que revela o efêmero da voz.

A escrita  é rabisco e tinta sem brilho
diante das letras bandidas e errantes
que abominam a prisão das estantes
e a gramática dos letrados.

Há letras livres passeando sujas
pelas ruas e becos onde circulam
bocas e ouvidos analfabetos.
Seus corpos falam mais
do que o vago significado
de qualquer palavra.

Existe vida para ser vivida
além da escrita e do tédio
que tentam nos seduzir através das telas
como se fossem contra nossa melancolia
um eficiente remédio.




segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

ANONIMATO E EVIDÊNCIA

Sou os outros que me cercam,
que me perseguem, esquecem
ou nem me percebem
ali parado esperando um ônibus.

Sou um corpo, uma consciência,
um alguém entre os outros,
conectado a todos por uma rede de acasos e coincidências.

Sou, também, simplesmente, ninguém
ou apenas mais um alguém
perdido no anonimato de um ponto de ônibus.

Sou coisa, matéria, elemento,
e, como todo mundo, único
e irrelevante ser em movimento.

Sou nada , espera
sem esperança,
dentro do mundo
e fora da história.
Sou tempo, 
efêmero momento.
Sou nada.
Já disse,
sou nada.
Apenas alguém que passa.

Discretamente, aguardo minha morte,
e que todos me esqueçam
depois que minha ausência
me desfaça de vez
 nos outros ,
que como eu, 
seguirão perambulando sem rosto
até o último e inútil suspiro,
até o último momento,
até que só fiquem os outros.




domingo, 31 de dezembro de 2023

FUTURISMO, ISMOS E PÓS MODERNISMO

Enquanto o mundo moderno
envelhece e morre
 embriago-me de passado, 
vinho, 
arcaismos e pós modernismos.

Nada mais de razão, racismo, iluminismo,
escravidão ou indústrialismos.
Estes malditos ismos, pilares de nossa duvidosa civilização ocidental,
serão todos extintos.
Darão lugar ao vinho, a Pã e Dionísio
no mais perfeito triunfo do arcaismo pagão e ameríndio.

É tarde para o futuro
para o urbano, o contemporâneo,
e para o progresso da nação
em tempos de aquecimento global.

É tarde para o humanismo,
cientificismos , fanatismos,
que fascinam a multidão
e nos conduziram a guerras,
 ao abismo de mil conflitos,
e ao esgotamento das forças produtivas.

Estamos fartos de reducionismos, economicismos,
e outros filhos bastardos do idealismo alemão.

O mundo moderno é branco, 
europeu, violento,
elitista, letrado , decadente
e, principalmente, racista.

Mas logo será um novo mundo
em qualquer parte do globo.
Cada um há de poderá ser,
a seu próprio modo,
um outro,
contemporâneo de si mesmo
sobre os cacos da história,
do trabalho , da Razão e suas disciplinas.

Seremos todos estrangeiros,
nômades e descolonizados,
libertos de tudo que foi trágico e moderno.
Seremos indolentes,
amantes do prazer, da preguiça,
e do efêmero
 que definirá a existência
depois do fim do merecido fim do mundo moderno.











quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

POESIA & REBELDIA

A poesia é inimiga dos palácios das letras,
das autoridades e hierarquias da bela escrita,
da erudição pedante da crítica.

Ela é avessa ao arcaismo,
Ao romantismo, ao simbolismo,
parnasianismo e todas as fases do mordenismo.

A poesia abomina toda história da literatura.
Ela não está no verso, na prosa,
na forma ou no lirismo.

Ela é o que escapa a palavra,
ao significante e ao significado.
Ela é o intraduzível sublime da raiva e do espanto de estar vivo
que não encontra abrigo
em nenhuma língua.

A poesia é o que foge a escrita,
a negação, a revolta, o susto,
o uivo.

Ela é a morte, o nada,
e a resignificação radical da vida,
como paradoxo e despropósito,
na recusa absoluta da escrita.



domingo, 24 de dezembro de 2023

O MUNDO NÃO MAIS EXISTE

O mundo já não existe
dentro ou fora de nós
em um jogo vazio
entre objetividade e subjetividade.
Ele se quer sobrevive
na ordem da linguagem.

Mesmo assim, precariamente persiste
em nossa imaginação,
em nossos atos e condicionamentos,
despido de objetivos,
carente de uma solução ou de um pouco de razão.


O mundo é a miséria, a guerra e a exploração.
O mundo é nossa impotência.
É a morte que nos espera.
Nossa extinção.

O mundo já não existe
e não sabemos mais
o que somos
através dele
ou dentro de nós.
Tudo existe como simulacro,
quase ilusão.