terça-feira, 29 de dezembro de 2020

ALÉM DO BIOS E DA POLÍTICA

Quando meu eu se perder no múltiplo do corpo,
Não serei mais um ensaio infinito
De ser gente e bicho.
Serei na arte de viver o nada,
Incontido em qualquer resposta humana que defina o mundo
E a gentalha.
Me farei  animal e corpo,
Afeto e vazio,
Através do encontro incerto
Entre o eu e o mundo.
Serei outra coisa,
No meio da criança e da morte,
Através da miragem de mim mesmo,
Na invenção da pós liberdade
Contra a pólis.

O DIZER COMO PRISÃO

Toda verdade afirma uma moral.
Qualquer afirmação é uma prisão.
Dizer sim é também um ato de negação.
Não há como fugir disso.
Estamos condenados a enunciados,
Aos limites do uso da voz.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

CONSCIÊNCIA E VERDADE

 

A consciência cria a verdade

como expressão da vontade,

de uma certeza de mundo

que não cabe na vida,

mas apenas na imaginação humana.

 

No comercio das palavras e dos gestos.

criamos verdades que nos inventam

escravos da ilusão das convicções e vontades

que tornam possível a vida.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O RELÓGIO E A ANTROPOLOGIZAÇÃO DO TEMPO II

 

Tempo disso, tempo daquilo,

falta o tempo de nada!”

Carlos Drummond de Andrade


Com a segunda revolução industrial europeia do seculo XIX, sociedades como a da alemanha, Inglaterra e França, tornaram-se definitivamente urbanizadas e formatadas pelo tempo das fábricas ou do relógio mecânico. As relações sociais no Ocidente, desde então, passaram a ser reguladas pelos artifícios tecnológicos, tanto no âmbito publico quanto privado do viver coletivo.

O relógio mecânico, neste contexto, tornou-se um poderoso dispositivo de controle e normalização da vida, algo sem paralelos na história das sociedades humanas. O tempo antropologizado encarna o dia de 24 horas regrado pelas atividades produtivas e comerciais .O tempo do relógio é o tempo do trabalho, da alimentação e do descanso, como ethos formatador de novos saberes e relações de assujeitamento e poder biopolitico no controle da população e dos corpos nos recém estabelecidos territórios nacionais.

Mas o tempo do relógio e da domesticação através das horas é também o tempo do cansaço e do esgotamento universal. Afinal, contra o tempo do relógio, o corpo, como todo organismo vivo, possui um ciclo circadiano ( processo biológico de 24 horas que dita o rítmo de nossa existência biológica.). Toda forma de vida dependente da luz solar possui algum tipo de ciclo circadiano que lhe permite aproveitar o máximo a luz e a escuridão. É isso que popularmente é chamado de relógio biológico, no caso humano, localizado no hipotálamo. Mas todas as células do nosso corpo e órgãos corporais possuem seu próprio relógio biológico que são sincronizados pelo relógio principal localizado no cérebro. A falta de sintonia entre eles imposta racionalidade disciplinar do tempo do relógio nos adoece.

Em outras palavras, contra todas as ilusões de nosso cotidiano pós industrial, não é o tempo social do relógio que regula nossas vidas, mas o tempo natural definido pelo movimento da terra em torno de si e do sol.



segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O RELÓGIO E A ANTROPOLOGIZAÇÃO DO TEMPO


 

O controle do tempo é um modo de se apropriar do espaço. O binário tempo/ espaço é, portanto, uma premissa do uso do relógio (ou horológios), enquanto dispositivos naturais de medida de um dado intervalo cronológico, menor do que uma noite ou um dia, para disciplinar a realização de alguma atividade prática.

É razoável supor que na antiguidade ou em períodos mais arcaicos da vida humana, o espaço de um dia ou de uma noite era mais do que o suficiente para se orientar no mundo. A necessidade de dividir os dias e as noites, ir além da orientação pelo movimento do sol e da lua, representou a construção disso que aqui chamamos de “tempo menor”, que é o tempo das horas, dos meses e dos anos. Ou seja, um tempo socialmente condicionado, derivado da manipulação humana.

Calendários e relógios são dispositivos independentes e complementares. A divisão dos dias em 24 horas surgiu por volta de 5.000 a.C. na Babilônia tendo por referência a noção de meio dia, ou seja , o momento do dia em que, a estrela a pino no céu, não projeta sombra. O relógio do Sol baseava-se justamente na trajetória da sombra ao longo do dia. Pode-se dizer que toda medida ou controle do tempo é uma experiência espacial, como os relógios naturais expressam em seus usos.

Também se pode dizer que o tempo medido pelo relógio (ou horológios) é um “tempo menor” ( antropológico) dentro do ‘tempo maior” (natural) da longa duração dos anos e das épocas. Antes dos primeiros relógios ou horológios naturais (clepicida, ou relógio d’agua, e ampulheta, ou relógio de areia) , as estrelas e constelações serviam para medir o tempo das estações e dos ciclos da natureza. Dai, pode-se deduzir que o céu foi sempre o espelho do tempo. Desta forma, ao contrário , do que sugere o senso comum, tempo é extensão, movimento. Ele é expressão de uma relação com o espaço e não um fluir abstrato, impreciso e imaterial.

Embora no ocidente o Papa Silvestre II ( 905-1003) seja considerado por alguns o inventor do relógio mecâncio, há registros que contradizem tal hipótese. No caso do ocidente o relógio mecânico muito provavelmente originou-se entre as ordens religiosas para regular a rotina de orações e de culto. Eram máquinas movidas por pesos que tocavam periodicamente uma campainha. Assim surgiram os seguintes intervalos cronológicos para normalizar o tempo:

a “Hora Prima” (nascer do sol / 3 badaladas; 3) a “Hora Tertia” (meio da manhã / 2 badaladas); 4) a “Hora Sexta” ou “Meridies” (meio dia / 1 badalada); 5) a “Hora Nona” (meio da tarde / 2 badaladas); 6) as “Vésperas” (por do sol / 3 badaladas) e 7) as “Completas” (anoitecer / 4 badaladas) 

Até onde se sabe, o primeiro relógio mecânico teria sido fabricado em 1386 por Henry de Vicky sob encomenda do rei da França. Entretanto, ele foi instalado na Catedral de Salisbury, na Inglaterra. 

Após descobrir o isocronismo dos pêndulos, em torno de 1600, Galileu adaptou o pêndulo ao funcionamento dos relógios mecânicos, contribuindo, assim, para aumentar sua precisão.

 Seja como for, a invenção do relógio mecânico só impactaria sobre o modo como lidamos e controlamos o tempo depois das revoluções industriais e do maquinismo moderno. Mas a invenção do relógio mecânico, talvez no século XIII, iniciou uma significativa mudança nos métodos de medição de tempo, ao criar uma dinâmica baseada na repetição de processos oscilatórios, como o balanço de um pêndulo. Um relógio passa a ser, a partir de então, um conjunto de peças que operam juntas para realização de determinada tarefa. No caso, dividir o tempo, antropomorfiza-lo.

Na mitologia grega Cronos era a palavra atribuída ao tempo físico, linear e cronológico que consome todas as coisas. Mais novo entre os titãs, Chronos Era filho caçula de Gaia (terra) e de Urano (céu). Kairos, por sua vez, representa na mitologia grega um tempo que escapa ao de Cronos. Ele é o deus do tempo oportuno, do momento certo. Filho menor de Zeus e da deusa Oportunidade (Tyche). O tempo normalizado pelo relógio não é, evidentemente, nem o tempo de Cronos ou o de Kairos. Mas o tempo dos homens, que se faz sob o signo da finitude. Numa interpretação bastante pessoal, diria que existe, ainda, o tempo dos mortos, que é o tempo da memória ou da História. O “tempo menor” do relógio é o tempo do cotidiano, da sociedade e da atualização constante do tempo presente.



domingo, 13 de dezembro de 2020

NIETZSCHE: ALÉM DO BEM E DO MAL


 
 
Considero Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma filosofia do futuro, o mais anti moderno de todos os livros de Nietzsche e também a mais completa expressão de sua maturidade filosófica. No labirinto de seus aforismos há críticas ferrenhas ao igualitarismo democrático, a ciência, ao historicismo, e a moral do progresso duvidoso do humano, do valor da verdade , da religião e do platonismo  dominante( no sentido mais amplo do termo) através das lentes do aristocracismo radical de um espírito livre e terrestre.Neste livro, Nietzsche surge incômodo e intempestivo para nós que ainda estamos presos a qualquer presente, pesados de um longo passado inventado pela moral dominante do antropocentrismo iluminista.Filhos do nosso próprio tempo somos incapazes de alcançar a embriaguez lúcida da posteridade e do por vir do além do humano.Não somos em qualquer sentido Nitzschianos, mas somos incapazes de pensar sem nietzsche. Pois ele nos ensina o inesgotável exercício da crítica de tudo que existe e nos faz ser. Em outros termos, Nietzsche nos ensina a desaprender o que somos e o que sabemos, nos inspirando a devir, a filosofar com o martelo, contra todos os ídolos.Seu prólogo de 1885 tem início com uma provocação ardilosa e risonha que bem vale interpretar a luz do anacronismo de nosso tempo:" supondo que a verdade seja uma mulher- não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres?"

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

NÃO IDENTIDADE

 

Minha identidade é não estar preso a qualquer definição,

é não ser no rosto,

no provisório dos enunciados

e, muito menos, nas volúveis vontades inúteis

que me rasgam o peito em segredo.


Minha identidade é recusar rótulos,

tribos e princípios.


Não me conheço o suficiente

para dizer a mim mesmo

Em toda minha multiplicidade.

O ASSOMBRO DA EXISTÊNCIA

 

Estar vivo me assombra.

Nenhum entendimento

é suficiente para explicar

a experiência da existência.


Viver é um grande susto,

um desatino.

Sou um corpo,

um perceber o mundo,

que não se esgota nisso.


Tudo que sou,

acontece sempre

fora de mim.



terça-feira, 8 de dezembro de 2020

REINVENTANDO ESPINOSA

 

 


 

O sentir é tão racional quanto o pensamento e se contrapõe a emoção. Sentir, enquanto uma das quatro funções da consciência, para lembrar Jung, é aquela que produz valor, eleição. O sentir é um modo de escolha ou a premissa de todo agenciamento.

Pensamento e sentimento compostos fazem do conhecimento o mais potente dos afetos, para reinventar Espinosa.

Mas nada disso responde a mais elementar das curiosidades: Porque pensamos?...


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

DO SOM À MUSICA

 


Saber o som

nas diferentes instensidades,

velocidades,

texturas e tonalidades,

que definem sua potência,

nada nos diz sobre a música.


Mas a materialidade,

a imagética das ondas sonoras,

dentro dos meus olhos e ouvidos,

percorrendo o tempo e o espaço,

através do  instrumento e do  corpo,

Isto sim diz a musica.

 

Os sons não sabem dá musica

que nos embriaga os sentidos.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

CORPOREIDADE

 


Meu pensamento é sentimento de corpo.

Pensar é corpo.

Em nenhum momento existe em mim

qualquer coisa que não seja corpo,

Lugar e movimento de ser.


Sou corporeidade,

extensão,

inventando modos

de habitar 

o mundo Através dos afetos

E da imaginação,

Da arte de ser sempre um outro.


segunda-feira, 30 de novembro de 2020

ATIVISMO NIILISTA

 


"Minha existência começava a me espantar seriamente. Não seria eu uma simples aparência?"

F. Nietzsche

 

 Seguindo os passos de Nietzsche, libertar o niilismo de suas formas passivas ou negativas, significa recusar o ressentimento contra o mundo, abdicar da recusa a realidade ordinária, da afirmação de qualquer plano ideal e irreal da existência que nos supere a vida como ela é, ou simplesmente, se apresenta como sendo, antes de tudo, uma questão de sobrevivência, de presença física e corpórea que se degrada progressivamente.

O niilismo ativo é uma filosofia da potência na medida em que é um dizer da terra e do corpo como realidade das coisas humanas e inumanas, como ato de criação, de formas de vida e estratégias de subjetivação e imanência.

Libertar o niilismo de suas formas passivas ou negativas, nos passos de Nietzsche, significa recusar o ressentimento contra o mundo, abdicar de sua recusa, da afirmação de qualquer plano ideal e irreal da existência que nos supere a vida como ela é, ou simplesmente, se apresenta como sendo, antes de tudo, uma questão de sobrevivência, de presença física e corpórea que se degrada progressivamente.

O niilismo ativo é uma filosofia da potência na medida em que é um dizer da terra e do corpo como realidade das coisas humanas e inumanas, como ato de criação, de formas de vida e estratégias de subjetivação e imanência.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

PELA URGÊNCIA DE UMA POESIA INSURGENTE



Imitação e catarse não  dizem a poesia.
Ela também escapa a verdade
No transbordar da palavra
Contra toda retórica  e pompa.

A poesia só  é  poesia
Quando alucina,
Quando nos suja de terra,
Sangue e excremento.

Só há poesia onde o verbo 
Desdiz o mundo,
Onde se mata o poeta,
Onde se afirma uma vida
Ainda futura e incerta.

Carlos Pereira Júnior


terça-feira, 24 de novembro de 2020

SOBRE OS LIMITES DA IDÉIA DE HUMANIDADE

 

Já não introjetamos como verdade os valores e certezas dominantes. As convenções vigentes de mundo comum inspiradas por valores ditos universais nos parecem pálidas invenções de um século ingenuamente crente nos poderes da deusa razão. Duvidamos da eficácia das codificações de mundo inspiradas por metas narrativas totalizantes. Afinal, contra atrocidades não desmentiram ao longo da história recente da civilização ocidental não pois em xeque suas nobres auto representações inspiradas pela fé sem sentido na positividade do “progresso”?

São tantas as “humanidades” que povoam o mundo, tantas possibilidades e estratégias de existência e sobrevivência, que é totalmente descabido falar da humanidade como um todo homogêneo. Seria, aliais, até mesmo, pertinente questionar quais características imutáveis da condição humana ao longo das épocas e lugares nos permite usar um conceito tão abrangente.


DO ANTROPOMORFISMO AO RETORNO DA NATUREZA

 

Para Cassirrer em sua obra tardia Ensaio sobre o Homem, o homem é, em sua melhor definição, um animal "symbolicum" que transcende seu condicionante zoologico. É através de tal característica que nos apresentamos ao longo dos séculos como um animal orientado para um perpétuo vir a ser. Poderíamos dizer, portanto, que a condição humana não é um estado, mas um inventar-se constante e, como tal, também um perder-se, uma incerteza.

A cultura é o eixo existencial da construção da subjetividade e diversidade de nossa espécie. Criar-se através da produção de signos e símbolos a singularidade do faktum cultural como tipicidade do fazer-se humano. Mas o homem como medida de todas as coisas, como denuncia Foucault em As Palavras e as Coisas, é uma verdade recente e ameaçada por um desaparecimento iminente.

Hoje, em uma sociedade cada vez mais definida pelos artifícios tecnológicos e pela cultura imaterial do virtual, a diimensão inumana do humano é uma sombra que cresce sobre nossa narcisista consciência de si como medida de todas as coisas.

A natureza, o não humano, o limite de nosso desenvolvimento civilizacional pós industrial, reinventam nossa cultura simbólica contra o antropormofismo e logocentrismo dos últimos séculos pondo em questão os valores pós iluministas baseados em um humanismo ingênuo e prepotente que nos coloca em uma posição de domínio sobre o mundo natural como expressão de nossa pretensa humanidade .


terça-feira, 17 de novembro de 2020

ENTRE O DENTRO E O FORA DE SI MESMO

 


 

 

O lado de fora de nós

é o profundo dentro das coisas,

a embriaguez dos sentidos,

que encanta o mundo

através do corpo.


Há em tudo um infinito,

um sem tempo,

onde nada é.

Eis o segredo de todo acontecimento:

As coisas são na pele

de quem sente e vê.


Existir é estar do lado de fora

de si

em intenso estado de desabrigo

e desapego.


segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A SOMBRA DO DIA SEGUINTE

 

 



 

Tenho medo do dia seguinte,

da sociedade e do presente

como prisão da existência,

como opressão que formata

todos os afetos,

todo ser na natureza

que nos falta.


Vivemos em uma sociedade

onde o tempo consome a vida

contra a possibilidade de um viver

que realize o tempo.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O TEMPO

 


 

 

Incerto e inconstante,

o tempo não dura,

nem funda eternidades.

Ele apenas afirma a insustentabilidade do instante,

 a fragilidade da existência e do mundo,

na concretude do espaço e da matéria em câmbio. 

O tempo acontece inexistindo

no desaparecimento da gente

Na combinação  e descriminação das coisas microfisicas...



quinta-feira, 12 de novembro de 2020

IDENTIDADE E MEMÓRIA

 


Habito em um punhado de lembranças.

Elas constituem minha identidade,

a casa da minha consciência.


Entretanto, apesar de todo seu valor afetivo,

elas não passam de sombras opacas

de momentos mortos, vagos e perdidos.

Não importa nada daquilo que foi vivido.

O tempo é um eremita e um andarilho.

Ele nunca repousa e segue sempre vazio

Através  do corpo que nasce, cresce e definha sempre.

MUDANÇA

 


Ainda que nada mude

é sempre momento de mudança.

Ainda que nada aconteça

o futuro será outro mundo

além das fronteiras do tempo presente.


Nada que nos sustenta tem mais consistência

do que o ar.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

TERRITOREIDADE E GEOFILOSOFIA

 


By Carlos Pereira Júnior

Em resumo, a filosofia se retirretorializa três vezes, uma vez no passado, sob os gregos, uma vez no presente sob o Estado democrático, uma vez no porvir, sobre o novo povo e a nova terra. Os gregos e os democratas se deformam singularmente neste espelho do futuro.”

Gilles Deleuze e Felix Guattari in O que é a Filosofia?


  1. Sobre o conceito de território e seus fluxos

O presente ensaio tem por objetivo discutir o conceito de território a partir da filosofia ( ou geo filosofia) construída por Gilles Deleuze e Felix Guattari. Tal filosofia busca estabelecer uma interseção entre o pensamento e a terra, que permite captar a inconstância e dinamismo da realidade territorial que define o devir humano em sua inserção na espacialidade da natureza através de sua materialidade sócio cultural. Trata-se antes de tudo de uma filosofia da imanência.

Negando a definição tradicional fornecida pela geografia, território, tal como aqui entendido, não é uma realidade material estática naturalmente dada, mas uma topografia dinâmica, múltipla, viva, cheia de vínculos, ramificações, intercâmbios, entre um componente humano, animal e outro natural que se transformam mutuamente em um arranjo sempre provisório e instável. O território relaciona-se, portanto, tanto com um espaço vivido quanto com um sistema percebido de subjetivação.

Em uma perspectiva rizomática, o conceito de território apresenta múltiplos sentidos e se desenvolve a partir da interseção de diversas disciplinas e saberes, como a geografia, biologia, antropologia, sociologia, história e filosofia. Assim, o conceito de território comporta múltiplas logicas e estratégias de sentido e significação. Pode-se mesmo dizer que territoriedade é uma categoria relacional, um vir-a-ser constante, uma multiplicidade dinâmica, um produzir de planos e camadas geológicas definidas por zonas, vizinhanças, linhas. É um estar no meio das coisas em movimentos de terriroriarizaçãos, desterritoriarizações e reterritoriarizações.

Para melhor definir este eco sistema que é um território é muito oportuno o uso de um conceito que Deleuze e Guattari consideram fundamental a sua geo filosofia. Refiro-me ao conceito de Ritorneloi. Ritornelo é a experiência de improvisação no jazz. Em termos musicais ele é um ritmo que demarca território, é um refrão, um estribilho, uma cadência. Em termos filosóficos o ritornelo é um espaço entro o eu e o mundo, entre interior e exerior. Ele possui três componentes: um componente direcional (que remete a um ponto dentro do caos), um componente de dimensional ( busca de consolidação de um território) e um componente de passagem ou de fuga ( um território esta sempre em variação). Estes três componentes definem uma espécie de “lógica de existência”, esclarecem três formas de habitar um território: a territoriarização, a desterritoriarização e a reterritoriarização. Estar sempre de partida, em transito, ou movimento. Território é sempre passagem, transitoriedade e imanência. Desta forma, o ritornelo é um agenciamento territorial. Em um sentido geral, risorneto é “todo um conjunto de materiais de expressão que traçam um território e que se desenvolvem em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc.)

Neste ponto é necessário esclarecer que para a devida compreensão dos conceitos deleuzianos é preciso descartar um regime de signos definidos por uma acepção restritiva dentro da teoria da representaçãoii. Ou seja, não se deve conectar palavras e coisas em um jogo de correspondências. Lembrando uma passagem de Foucault citada por Deleuze em Mil Platôs, “Não adianta dizer o que se vê, o que se vê não habita jamais o que se diz”. A expressão não é um fenômeno que se reduz a um dizer das coisas, ela define um conjunto de enunciados que compõem na cartografia social u “multiplicidades discursivas” de expressões e “multiplicidades não discursivas de conteúdo, isto é, como forma de conteúdo e como forma de expressão que que originam maquinações abstratas. Em outros termos, os conceitos filosóficos são também maneiras de habitar e agir em um território. A palavra, o dizer, de um modo geral, cria agenciamentos coletivos de enunciação através de um discurso indireto que produz territoriarizações e desterritoriarizações ou, simplesmente, estratégias de subjetivação. O próprio conceito de território e de risorneto são bons exemplos disso. Se a expressão terra natal já era usual no século XVII, o uso do termo território só é encontra morada em nossas praticas discursivas a partir do sec. XVIII, quando começou a ser utilizado em uma significação politica através das obras de autores hoje clássicos como Montesquieu e Rouseau.

Por outro lado, como afirma Deleuze em Diálogos, os movimentos comparados de territoriarização e desterritoriarização formam fluxos cujo estudo de intensidade, os continuums se tornam evidentes em campos sociais concretos,

...Tomamos como exemplo, em torno do século XI: o movimento de fuga das massas monetárias; a grande desterritorialização das massas camponesas, sob a pressão das ultimas invasões, e das crescentes exigências dos senhores; as desterritoriarização das massas mobiliárias , que toma formas tão diversas quanto a cruzada, a instalação nas cidades, os novos tipos de exploração da terra ( arrendamento ou assalariado); as novas figuras das cidades, cujos os equipamentos são cada vez menos territoriais; a desterritoriarização da Igreja, com sua privação de bens terrenos, sua’paz de Deus’, sua organização de cruzadas; a desterritoriarização da mulher com o amor cavalheiresco, depois o amor cortês. As cruzadas,(inclusive a cruzada das crianças) podem aparecer como um limiar de conjugação de todos esses movimentos. De certa maneira, pode-se dizer que em uma sociedade o que é primeiro são as linhas, os movimentos de fuga. Pois estes, longe de serem uma fuga fora do social, longe de serem utópicos ou até mesmo ideológicos, são constitutivos do campo do social, cujo declive e fronteiras, todo o devir, eles traçam.

(...)

Nós dizemos, antes, que, em uma sociedade, tudo foge, e que uma sociedade se define por suas linhas de fuga que afetam massas de toda natureza (mais uma vez, ‘massa’ é uma noção molecular). Uma sociedade, mas também um agenciamento coletivo, se definem, antes de tudo, por suas pontas de desterritorialização, seus fluxos de desterritoriarização.”iii

Em poucas palavras, tomando como referência o contexto mediterrâneo do sec. XI Deleuze exemplifica o quanto um território é definido por suas linhas de fuga, pelos seus múltiplos fluxos de desterritoriarização que, ao mesmo tempo, engendram fluxos de reteriorização, que são, por sua vez, formas de se conformar a um código de enunciados que se tornam dominantes. Um estado de coisas ou uma cartografia nova se estabelece através das conjugações, orientações, convergências e divergências das linhas de fuga. Vale dizer que o desejo também se confunde com as linhas de fuga. Aquilo que Deleuze e Gatarri chamam de corpo sem órgãos esta ligado ao plano de imanência do desejo em contra partida ao sistema que Foucault chama de bio poder que, operaria, para estes dois autores, através de reterritoriarizações do corpo.

  1. Maquina de Guerra e Aparelho de Estado

Um território é composto por multiplicidades, por um emaranhado de linhas, de segmentos duros e molares, onde o Estado não é um ponto que funciona apenas como centro ou campo onde se estabelecem relações de poder, ele funciona como uma caixa de ressonância em um horizonte de segmentações onde se criam relações de força, tensões e linhas de fuga. Linhas de fuga que são agenciamentos do desejo no campo social, que é também um campo de imanência. As relações de poder, por outro lado, não são localizáveis na topografia do Estado ( transcendência), não se confundem com seus modelos e mecanismos institucionais. O Estado é antes de tudo um grande agenciador de desejos e é como tal que se sedentariza e segmentariza no território, através de modalidades instrumentais que buscam sedentalizações, inibir linhas de fuga. Assim sendo, quando Deleuze e Guattari falam em macro e micro política, não estabelecem propriamente um antagonismo entre Estado e Sociedade. Macro é a política do plano de linhas de território que tornam a paisagem reconhecível através de oposições binárias, de segmentações duras e uma subjetividade processual. O micro, por sua vez, compreende uma segmentação flexível, molecular e relacional. Trata-se aqui de dois modos distintos e complementares de habitar um território perpassado por diversos agenciamentos. A máquina de Estado pressupõe estratégias de captura, onde os agenciamentos são complexos de linhas. Não falamos aqui de estado como o resultado de um processo civilizatório, mas como uma figura.

Não estamos falando aqui também, propriamente, de definições no sentido clássico do termo, mas de modos de ser e de se produzir a existência. Coloca-se, assim, diante de nós, a questão chave de O que é a Filosofia?, última obra escrita conjuntamente por Deleuze e Guattari: “Qual a relação do pensamento com a terra?” A resposta passa, obviamente, pelo modo como os autores na referida obra “explicam” a origem da filosofia na Grécia clássica, negando a clássica versão de uma causalidade histórica, para afirmar em seu lugar uma contingência geográfica. O que, segundo estes autores, propiciou o advento da filosofia foi uma combinação de devir, meio e ambiente. Neste sentido, embora Atenas e as demais cidades da antiga Grécia não tinham sido as primeiras cidades comerciantes, foram as primeiras a ser ao mesmo tempo bastante próximas e bastante distantes dos impérios arcaicos orientais, a ponto de formar um meio de imanência onde os artesões e os mercadores encontraram uma mobilidade, um verdadeiro “mercado internacional” que os impérios lhe recusavam. O mesmo aconteceu com a filosofia, os primeiros filósofos eram estrangeiros desprateados, que encontraram entre os gregos uma sociabilidade nova, um espaço de imanência onde impera um gosto pela opinião e pela troca de opiniões. Parafraseando Deleuze e Guattari, pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra, ( ou antes adsorve) em uma desterritoriarização que se converte em reterritoriarização, em “uma nova terra”. Os gregos inventaram um plano de imanência absoluto que nos é contemporâneo como devir.

Voltando a questão da dualidade entre Estado e maquina de guerra, tomemos aqui como referência, o capítulo 12, ou o Platô 1227 de Mil Platôs, intitulado Tratado de Nomadologia: A Máquina de Guerra. Este Platô disserta sob o paradigma guerreiro dos antigos Aqueus, que representa “um lado de fora” em relação à “interioridade” sedentária do Estado. Para tanto, os autores tomam como ponto de partida as analise de Pierre Clastres sobre as sociedades ditas primitivas, combinadas com as pesquisas de Georges Dumézil sobre a mitologia indo europeia.

As maquinas de guerra nômade se inserem entre o rei mágico e o sacerdote jurista, que são as duas polaridades da soberania estatal indo europeia estabelecendo uma configuração tripartida. Mas, para inicio de conversa, cabe relacionar Mil Platôs e O Anti Edipo, dizendo que maquina de guerra e aparelho de Estado estabelecem uma aparente dicotomia entre uma maquina desejante e um aparelho de repressão edipiano, cuja dualidade impõem um jogo entre imanência e transcendência, ou, dito de outra forma, definem uma superfície terrestre lisa (sem estrias ou ramificações) ou estreada ( codificada, normatizada), dependendo do modo (nômade ou sedentário) de ocupação do território.

A máquina de guerra (imanência) é exterior ao Estado (transcendência) porque é irredutível a ele em sua “multiplicidade pura e sem medida”. Em outras palavras, enquanto modos cognitivos de se relacionar com um território, enquanto formas de estar nele, maquina de guerra e aparelho de Estado constituem não apenas estratégias distintas de se separar ou ligar a terra, mas também modalidades diversas de pensamento.

A captura da maquina de guerra nômade pelo aparelho do Estado estabelece uma relação complexa entre imanência e transcendência. Pode-se dizer que o Estado no Ocidente foi capaz de incorporar os espaços lisos (nômades), moldar territórios em função de suas exigências maquínicas e transcendentes, afinal,

Uma das tarefas fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual reina, ou utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço estriado. Para qualquer Estado, não só é vital vencer o nomadismo, mas controlar as migrações e, mais geralmente, fazer valer uma zona de direitos sobre todo um ‘exterior’, sobre o conjunto de fluxos que atravessam o ecúmeno. Com efeito, sempre que possível o Estado empreende um processo de captura sobre fluxos de toda sorte, de populações, de mercadorias ou de comércio, de dinheiro ou de capitais, etc.iv


Em contra partida as maquinas de guerra representam uma tendência para fragmentação do espaço em multiplicidades, para a inibição dos poderes estáveis da unidade (imanência). Nomadizar é justamente traçar linhas de fuga contra o processo de captura estatal.

  1. Maquinas de Guerra e Corpo sem Órgãos ( CSO)

O corpo sem órgãos (CSO) está diretamente associado à produção da maquina de guerra nômade e sua resistência à captura pelo Estado, ele é produzido através da superação da tensão estabelecida entre as polaridades que definem um território, o transcendente/sedentário e o Imanente/nômade. Enquanto linha de fuga da transcendência normativa, o CSO remete a uma pratica ou conjunto de práticas nômades, a um devir, a uma experimentação e não a uma interpretação, ou seja, ele não produz sentido pela interpretação, ele é povoado por intensidades. O que ele expressa é a construção de um campo de imanência do desejo, uma desconstrução do sujeito como síntese do corpo enquanto organismo e sua conversão a uma “maquina desejante”. Desta forma, o CSO é uma desterritoriarização, uma fuga dos agenciamentos sociais, ele substitui o orgânico pelo sutil e revela uma potência que nos povoa enquanto intensidades. O CSO se define justamente por suas zonas de intensidades, por limiares, gradientes e fluxos. Ele é mesmo a pura intensidade de um corpo devir guerreiro, de um corpo que devém, que se volta para a intensidade da vida seja no estrato geológico, biológico e antropomórfico. Mas o CSO, tal como proposto por Deleuze e Guattari, não tem como marco teórico apenas a famosa conferência radiofônica Para acabar com o juízo de Deus, proferida por Artaud em 1947 onde, este declara “guerra aos órgãos”. O livro referencia para o CSO é a Ética de Espinoza. Neste sentido, O CSO remete antes de tudo a produção de singularidade como fim e meio de uma nova forma de habitar o mundo, como expressão de uma nova ética. Como afirma Deleuze em Nietzsche a Filosofia:

Espinosa abriu um caminho novo para as ciências e a filosofia. Nem mesmo sabemos o que pode um corpo, dizia ele; falamos da consciência e do espírito, tagarelamos sobre tudo isso, mas não sabemos de que é capaz um corpo, quais são suas forças nem o que elas preparam.”v

O que pode um corpo? Talvez, um novo modo de existência imanente. Mas a pergunta é uma incógnita. Não pode ser respondida. Ela acontece como um agenciamento. Em O que é Filosofia? São os conceitos de afectos, que apontam para a experiência de um devir não humano no homem, e de percetos, que apontam a paisagem não humana da natureza, insinuando dentro desta nova ética e territoriedade uma estética, um ir além de uma visão antropomórfica do mundovi, o que permite novas estratégias de subjetivação onde a vida converte-se em obra de arte libertando-se da normatividade edipiana ou transcendente. O CSO é uma forma de habitar a terra em intensidades.

  1. Plano de imanência e o sentido de uma nova terra

A desterritoriarização da terra é sua antropoformalização como territoriedade em um plano abstrato, sua conversão à totalidade normativa através do princípio da transcendência tal como realizado pela História da Filosofia. É preciso buscar uma nova terra, nômade e imanente. Localiza-se na filosofia de Nietzsche a inspiração para a geo filosofia anunciada em Mil Platôs e confirmada em O que é a Filosofia? . Esta emblemática passagem do Prologo de Assim Falou Zaratustra é um significativo exemplo:

O além-do-homem é o sentido da Terra. Que vosso querer diga: seja o além-do-homem o sentido da Terra! Eu vos conjuro, meus irmãos, à Terra sede fiéis (...) Outrora a blasfêmia a Deus foi a maior blasfêmia, mas Deus morreu, e com ele morreram também esses blasfemadores. Blasfemar a Terra é agora o mais terrível, e estimar mais elevadas as entranhas do insondável que o sentido da Terra!”

É este sentido da terra, que se confunde com o além do homem, que inspira a geo filosofia de Deleuze e Guattari. Se pensar se faz através da relação do território com a terra, é porque o pensamento destina-se a estabelecer através dos conceitos um plano de imanência, evoca uma terra e um povo por vir, uma terra em devir, que se despe da transcendência e de todo ideal moral. O sentido não nasce mais de uma lógica do predicado, mas como acontecimento imanente. Ele precisa ser experimentado. Tal perspectiva é inspirada na Genealogia da Moral e na transvaloração dos valores propostas por Nietzsche. Novas formas de valoração assentam um “novo homem” ou um “além do homem” em uma nova terra livre da transcendência, o que também é proposto na perspectiva geo filosófica apresentada em O que é a Filosofia?.

É interessante observar como nesta obra, o conceito de corpo sem órgãos, tão decisivo nas paginas de Anti Édipo e Mil Platôs, é substituído pelo conceito de plano de imanência no esforço construtivista de um pensamento que pressupõe um fora de si e se faz experimentação. É neste sentido que o plano de imanência é como um corte no caos e age como um crivo. Nele a própria imanência é uma outra coisa além de si, é multiplicidade, é o que sustenta o acontecer dos conceitos acontecem. Além disso, existe um plano de imanência para cada conceito. Um plano de imanência é, ao mesmo tempo, o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado. Como já foi dito, ele precisa ser experimentado. O pensamento traça o plano que é povoado pelos conceitos.vii O pensar é um criar que, por sua vez, é uma forma de habitar. Por isso, na perspectiva de Deleuze e Guattari, como já havia sido sugerido por Nietzsche, é possível falar de uma filosofia alemã, francesa, etc. Parafraseando estes autores em O que é a filosofia?, pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro.viii

4-Habito e habitação: entre o cuidado de si, o uso de si e heterotopias

Extrapolando a pauta de Deleuze e Guatari em Mil Platôs e O que é a Filosofia?, e dialogando com o último Foucault, diria que a geo filosofia implica na construção de uma ética, de um ábito como um modo de existência, como uma forma de habitar a terra ( reterritoriarização) e, portanto, um ethos impessoal.

O filosofo italiano Giorgio Agamben, em O Uso dos Corpos, nos oferece, neste sentido, uma reflexão interessante:

Deleuze, no final de O que é a Filosofia? Define a vida em sua imediatez como ‘contemplação sem conhecimento’. Dessa ‘criação passiva’ que, ‘é, mas não age’, ele dá como exemplo a sensação e o hábito. No mesmo sentido, Maine de Biran, em seu Mémorie sur décomposition de la pensée, busca incansavelmente captar, para além do eu da vontade, um ‘modo de existência’, por assim dizer, impessoal’, que ele denomina ‘afetibilidade’ e define como a simples capacidade orgânica de sermos afetados sem consciência nem personalidade, capacidade que, assim como a estátua de Condillac, se torna todas as suas modificações e todas as suas sensações e, no entanto, constitui ‘uma maneira de existir positiva e completa em seu gênero’.”ix

Aganben usa este exemplo para nos lembrar, contra o prestigio do conhecimento em nossa cultura moderna, e remetendo a doutrina medieval do habitus, inspirada em Aristóteles, que a contemplação e o ábito, como o uso de si, articulam uma zona de não conhecimento que corresponde a um lugar habitual no qual o ser vivo se sente bem antes de qualquer subjetivação. Segundo ele, fazer uso de si significa manter relação com uma zona de não conhecimento. Tal perspectiva me parece, em alguma medida, coerente com o devir, com as linhas de percepção, blocos de intensidade e percursos de experimentação que definem a construção de conceitos e os planos de imanência, dentro da perspectiva de Deleuze e Guattari.

Mas é também aqui interessante, lembrar como contra ponto, o Foucault das heterotipias, destes “lugares outros” que transbordam os limites entre o real e o virtual no espaço social,x

Segundo Foucault as Heterotopias se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com o seu tempo tradicional.

Em suas palavras próprias palavras,

Enfim, o último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante, uma função. Esta se desenvolve entre dois polos extremos. Ou bem elas têm o papel de criar um espaço de ilusão, que denuncia como mais ilusório ainda todo o espaço real, todas as alocações no interior das quais a vida humana é compartimentada (talvez seja esse o papel que, por muito tempo, tiveram os famosos bordéis, dos quais estamos agora privados). Ou então, ao contrário, o papel das heterotopias é criar um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arranjado quanto o nosso é desordenado, mal disposto e bagunçado. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação, e eu me pergunto se não é um pouco dessa maneira que algumas colônias funcionaram.” xi

Até onde se sabe, o conceito de Heterotopia foi utilizado pela primeira vez por Foucault no prefácio de As Palavras e as Coisas, referindo-se a um texto de Borges e ao desconcertante estratégia narrativa utilizada por ele ao estabelecer na narrativa uma “desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito”,

Tal como proposta por Foucault, as heterotopias funcionam como “contra espaços”, como “utopias realizadas”, ou, ainda, como um conceito limite que evoca uma nova terra através da transfiguração do uso dos espaços.

Foucault inicia sua conferencia proferida em março de 1967, para uma prateia de arquitetos, com um significativo diagnóstico: Se o século XIX foi o século da História, nossa época seria, antes de tudo, uma época do espaço.

Para ele, embora tenha ocorrido uma dessacralização teórica do espaço a partir de Gallileu, ainda hoje não atingimos uma dessacralização plena do espaço. Codificações binárias como público e privado, social e familiar, etc., ainda tão naturalizadas entre nós, demonstram o quanto experimentamos coletivamente um espaço qualitativo, preenchido por símbolos e normatizações. Tal fato foi magistralmente explorado de forma singular por Barchelard através de sua fenomenologia de uma imaginação espacial ou poética do Espaço.

Mas não é o espaço interior de nossas subjetivações que interessa a Foucault, e sim o espaço “do fora” de nossas experimentações cotidianas da funcionalidade dos lugares. O espaço das heterotopias, que podem ser de diversos tipos, é um espaço de fuga normativa, estabelecem um conjunto de relações e um campo de tensões que demarcam um sitio. Sejam lugares de movimento ou de repouso, como um trem ou um quarto. Trata-se de lugares que de alguma forma estão fora de todos os lugares, mesmo quando localizáveis. Existem, por exemplo, heterotopias de ilusão e de compensação, como exemplificam as colônias puritanas inglesas na américa do século XVII e os bordeis do século XIX.

Impossível não criar vizinhanças entre as heterotopias de Foucault e as linhas de fuga e maquinas de guerra de Deleuze e Guattari, suas velocidades, suas alternâncias entre espaços lisos e estreados, em um movimento constante de desterritoriarização e reterritoriarização. Há algo de nômade nas heterotopias que urge ser explorado.

Podemos concluir que o esforço de trazer o pensamento para terra, em uma perversão do platonismo e de toda a História da Filosofia, caminho aberto por Nietzsche e perpetuado por Deleuze, é ainda hoje um campo insurgente e fecundo contra o sedentarismo do pensamento vigente.

i Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para mim, o ritornelo é esse ponto comum. Em outros termos, para mim, o ritornelo está totalmente ligado ao problema do território, da saída ou entrada no território, ou seja, ao problema da desterritorialização. Volto para o meu território, que eu conheço, ou então me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território? (Deleuze, 1997).


ii No primeiro capítulo de O que é a Filosofia? Deleuze e Guattari esclarecem que para eles “ O conceito é um incorporal, embora se encarne ou se efetue nos corpos. Mas, justamente, não se confunde o estado de coisas na qual se efetua.” P. 33


iii Deleuze, Guilles. Diálogos/ Gilles Deleuze/ Patrícia Parnet. SP: Editora Escuta, 1998, p. 157-158


iv Deleuze Guilles. Mil Platos: Capitalismo e Esquizofrenia. vol. 5- Guilles Deleuze/ Felix Guattari. SP: Ed. 34, 1997, p. 59.

v Deleuze Guilles. Nietzsche e a Filosofia, p.32


vi Perceptos (que não são percepções) e afectos (que não são efeitos), existem na ausência do homem. Eles existem em si excedento o próprio vivido. O próprio homem é um conjunto de peceptos e afectos.


vii O conceito não revela o sentido da coisa, apenas anuncia parcialmente o acontecimento que ocorre no plano. Parafraseando Eric Alliez em A Assinatura do Mundo, a imanência é imanente a uma consciência pura. O plano de imanência é como um fora dentro do conceito.


viii A enunciação filosófica é imanente ao conceito. Diferente das enunciações científicas que apenas que apenas recorrem as proposições que possuem como objeto um estado de coisas referente. Lidamos aqui com um devir ecosófico da filosofia que contraria n qualquer lógica objetal, pois se confunde com a razão e seus devires. Neste sentido, a filosofia não contempla o Eterno, nem refrete o histórico, mas se ocupa do diagnóstico dos devires atuais.


ix Aganben, Giorgio. O Uso dos Corpos ( Homo Sacer,IV,2). SP: Boi tempo, 2017, p.86


x O texto da conferência de 1967 foi publicado em 1984 e reproduzido com o título Des espaces autres na coletânea Dits et écrits . É uma versão do texto em tradução livre, que nos serve como referência: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285


xi Foucault, Michel. Espaços outros. Revista Estudos Avançados v.27 nº 39. SP: USP, 2013. p.120



sábado, 7 de novembro de 2020

CULTURA ANCESTRAL

Dentro de desencanto do nosso precário existir contemporâneo, 
Inventa-se o encanto de um re-existir ancestral,
Anti colonial,
Que reinventa o passado,
Nos une em novos afetos
A natureza contra o progresso.
Trata-se de um modo de ser outro
E extemporâneo,
De um modo de vida
Como exercício de arte
E temporalidade.


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

O ECLIPSE DO INDIVÍDUO

 

 


 

Ser um indivíduo é não ser ninguém.

É seguir tendências,

reproduzir a banalidade comum

do dizer das coisas.

É ser uma copia de si mesmo,

uma miniatura de todos.


Ser um indivíduo é ser descartável,

escravo das configurações do instante,

viver de todo mundo

sem ser alguém.


Ser um indivíduo é corresponder as expectativas

dos algorítimos,

se desfazer na replicação de um sentimento

e opinião qualquer.


BANCO DE DADOS

 


 

Curtir,

Consumir,
Produzir opiniões. 

A realidade da tela,
Das redes sociais,
Não cabe no mundo real.

Mas acontece em nós 
Além do do domínio da representação, 
Através  da digitalização  dos afetos,
Do determinismo dos algoritimos,
No deserto de um massificado individualismo.

A vida virou um banco de dados 
Onde nos isolamos juntos,
Onde não somos nada
E tudo que existe é  a hiper realidade do mercado,
Da administração e gestão 
De um existir danificado.





terça-feira, 3 de novembro de 2020

VIDA DIGITAL

A vida está se tornando burra.
Previsível, programável, 
Normativa e banal,
Reduzindo o pensar e o sentir
A um fluxo de informações  inúteis.

A vida se faz  consumo,
Desempenho,  Likes , 
Sobrevivência e urgência 
Sem fundamento existencial.

A vida não  vive mais 
Em nossos hábitos,
Modos de existir
E fazer o mundo.

A vida agora
É  uma morte agendada
Nos olhos cegos dentro do espetáculo de uma onipotente tela
Onde ninguém importa
E os dados definem os atos
Contra a alma das coisas.

Sabemos , finalmente,
Toda potencial miséria 
De nossa fantasia de humanidade.





domingo, 1 de novembro de 2020

A ANCESTRALIDADE CONTRA A FAMÍLIA

Ancestralidade é oposto de família. Família é  um conceito que nos comunica um estatuto jurídico originário da antiga cultura do clã,  voltada para perpetuação  da herança  e patrimônio, para garantia da continuidade de falsas tradições.
Já ancestralidade, é  um conceito que nos diz vínculos orgânico e abstratos, que enlaçam indivíduos diversos no contar de uma história coletiva que faz o tempo dentro de muitos tempos, que inventa uma trama,na duração  da vida biológica, do impertinente dos corpos e da genética. 
A ancestralidade e aquilo que nos desconstrói e justifica como indivíduos através do vento da soma das épocas,  da glória e ruína das gerações que se sucedem em um drama quase eterno.