segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

O RELÓGIO E A ANTROPOLOGIZAÇÃO DO TEMPO


 

O controle do tempo é um modo de se apropriar do espaço. O binário tempo/ espaço é, portanto, uma premissa do uso do relógio (ou horológios), enquanto dispositivos naturais de medida de um dado intervalo cronológico, menor do que uma noite ou um dia, para disciplinar a realização de alguma atividade prática.

É razoável supor que na antiguidade ou em períodos mais arcaicos da vida humana, o espaço de um dia ou de uma noite era mais do que o suficiente para se orientar no mundo. A necessidade de dividir os dias e as noites, ir além da orientação pelo movimento do sol e da lua, representou a construção disso que aqui chamamos de “tempo menor”, que é o tempo das horas, dos meses e dos anos. Ou seja, um tempo socialmente condicionado, derivado da manipulação humana.

Calendários e relógios são dispositivos independentes e complementares. A divisão dos dias em 24 horas surgiu por volta de 5.000 a.C. na Babilônia tendo por referência a noção de meio dia, ou seja , o momento do dia em que, a estrela a pino no céu, não projeta sombra. O relógio do Sol baseava-se justamente na trajetória da sombra ao longo do dia. Pode-se dizer que toda medida ou controle do tempo é uma experiência espacial, como os relógios naturais expressam em seus usos.

Também se pode dizer que o tempo medido pelo relógio (ou horológios) é um “tempo menor” ( antropológico) dentro do ‘tempo maior” (natural) da longa duração dos anos e das épocas. Antes dos primeiros relógios ou horológios naturais (clepicida, ou relógio d’agua, e ampulheta, ou relógio de areia) , as estrelas e constelações serviam para medir o tempo das estações e dos ciclos da natureza. Dai, pode-se deduzir que o céu foi sempre o espelho do tempo. Desta forma, ao contrário , do que sugere o senso comum, tempo é extensão, movimento. Ele é expressão de uma relação com o espaço e não um fluir abstrato, impreciso e imaterial.

Embora no ocidente o Papa Silvestre II ( 905-1003) seja considerado por alguns o inventor do relógio mecâncio, há registros que contradizem tal hipótese. No caso do ocidente o relógio mecânico muito provavelmente originou-se entre as ordens religiosas para regular a rotina de orações e de culto. Eram máquinas movidas por pesos que tocavam periodicamente uma campainha. Assim surgiram os seguintes intervalos cronológicos para normalizar o tempo:

a “Hora Prima” (nascer do sol / 3 badaladas; 3) a “Hora Tertia” (meio da manhã / 2 badaladas); 4) a “Hora Sexta” ou “Meridies” (meio dia / 1 badalada); 5) a “Hora Nona” (meio da tarde / 2 badaladas); 6) as “Vésperas” (por do sol / 3 badaladas) e 7) as “Completas” (anoitecer / 4 badaladas) 

Até onde se sabe, o primeiro relógio mecânico teria sido fabricado em 1386 por Henry de Vicky sob encomenda do rei da França. Entretanto, ele foi instalado na Catedral de Salisbury, na Inglaterra. 

Após descobrir o isocronismo dos pêndulos, em torno de 1600, Galileu adaptou o pêndulo ao funcionamento dos relógios mecânicos, contribuindo, assim, para aumentar sua precisão.

 Seja como for, a invenção do relógio mecânico só impactaria sobre o modo como lidamos e controlamos o tempo depois das revoluções industriais e do maquinismo moderno. Mas a invenção do relógio mecânico, talvez no século XIII, iniciou uma significativa mudança nos métodos de medição de tempo, ao criar uma dinâmica baseada na repetição de processos oscilatórios, como o balanço de um pêndulo. Um relógio passa a ser, a partir de então, um conjunto de peças que operam juntas para realização de determinada tarefa. No caso, dividir o tempo, antropomorfiza-lo.

Na mitologia grega Cronos era a palavra atribuída ao tempo físico, linear e cronológico que consome todas as coisas. Mais novo entre os titãs, Chronos Era filho caçula de Gaia (terra) e de Urano (céu). Kairos, por sua vez, representa na mitologia grega um tempo que escapa ao de Cronos. Ele é o deus do tempo oportuno, do momento certo. Filho menor de Zeus e da deusa Oportunidade (Tyche). O tempo normalizado pelo relógio não é, evidentemente, nem o tempo de Cronos ou o de Kairos. Mas o tempo dos homens, que se faz sob o signo da finitude. Numa interpretação bastante pessoal, diria que existe, ainda, o tempo dos mortos, que é o tempo da memória ou da História. O “tempo menor” do relógio é o tempo do cotidiano, da sociedade e da atualização constante do tempo presente.



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