quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

MASSA E PODER: UMA ANTROPOLOGIA PATOLÓGICA

Não é possível em algumas poucas palavras registrar a contento o impacto da leitura de um clássico como Massa e Poder de Elias Canetti. Sua matéria prima, em sentido amplo, é nossa própria condição humana e o processo civilizatório. Mas a partir de um ângulo “selvagem”, ou seja, não domesticado pela sociologia ou pela ciência politica. Esta é a maior virtude de sua densa e bem fundamentada narrativa que pode ser considerada uma critica radical ao poder através de uma espécie de antropologia patológica.

O mito moderno do contrato social é aqui substituído por um  associativismo instintivo em uma trama narrativa  que esboça uma versão original sobe as origens do totalitarismo .

Significativamente, uma das imagens chaves deste livro é o arquetípico da luta pela sobrevivência. Questão que anima a história humana desde seus primórdios e compreende uma das motivações instintivas mais preeminentes. Afinal, foi ela quem inspirou ao home arcaico a superação do medo do desconhecido, do pavor de ser tocado, mesmo por seus semelhantes, permitindo, através do contato, o advento da malta e, posteriormente, da massa, como padrão elementar da associação humana.

A definição e tipificação de massa elaborada por Canetti, sua diferenciação e relação com a  malta, é questão que por sua complexidade não comporta aqui uma apresentação resumida e apressada. Cabe apenas apontar que Canetti revela um conhecimento singular das culturas arcaicas, mas é mediante o reconhecimento da permanência de alguns elementos deste arcaísmo em nosso comportamento contemporâneo mais cotidiano, que ele tece os contornos de uma psicologia da multidão que tem na expressão corporal/motora um de seus meios mais concretos de expressão cognitiva.

Assim, o ato de agarrar, de triturar, de morder, de permanecer ereto, subordina-se a constituição de uma economia simbólica da performance do poder e da potencia de existir. O próprio poder, neste contexto, entendido como um produto da própria luta pela sobrevivência, associada à distinção do herói civilizador, do grande líder, posteriormente ungido pela metafisica religiosa. O líder é legitimado pela multidão, glorificado como a personificação do sobrevivente por excelência.  

Com a decadência das religiões monoteístas da lamentação, fundamentadas no imperativo do uno e do universal, que legitimava e fundamentava o prestigio e autoridade do líder, o poder encontrou na malta, no conteúdo da malta da multiplicação, para usar uma categoria do autor, um novo e secular princípio para a manutenção do amalgama coletivo. Assim, não surpreende que hoje em dia todos os países estejam mais inclinados a proteger sua estrutura produtiva do que a vida de seus próprios membros. O líder, personificação ideal do sobrevivente, do todo que é apenas um, é aquele que realmente importa diante das multidões cujo destino tem nas mãos.
Sendo desta maneira, Canetti assim define a distinção entre o rico, o detentor do poder e o famoso no que diz respeito a gloria:

Para o rico o que importa é o dinheiro, não montes e rebanhos. Os homens não interessam; basta o fato de poder compra-los. Já o detentor do poder, coleciona homens. Os montes e rebanhos também não lhe interessam, a não ser como meio para adquirir homens. Já para o famoso, o que importa são os coros que gritam seu nome. Não importa se vivos, mortos ou não nascidos, o imperativo é multiplicar aqueles que gritam seu nome, independente dos montes e rebanhos. Assim, cada um a sua maneira exerce seu poder diante da massa anônima.

A terapêutica que o autor parece insinuar diante do patológico e arcaico fascínio do líder que personifica para todos o drama da sobrevivência, nutrindo uma relação irracional com as massas, potencializando sua tendência ao crescimento, ao expansionismo constante, na paradoxal afirmação do um que é todos, é a aceitação franca de nossa própria vulnerabilidade e limitações.   

A prosa densamente literária do denso estudo de Canetti esta longe de alguma forma ter sido aqui minimamente apresentada, muito menos resumida. Neste caso, nenhuma resenha possível nos prepara para a experiência da leitura e sentimento de perplexidade diante da fragilidades de todo humanismo quando confrontado com a concretude da condição humana.


A ÉTICA DO CUIDADO DE SI E DOS OUTROS

“em nossas sociedades, a partir de um certo momento – e é muito difícil saber quando isso aconteceu –, o cuidado de si se tornou alguma coisa um tanto suspeita. Ocupar-se de si foi, a partir de um certo momento, denunciado de boa vontade como uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo ou de interesse individual em contradição com o interesse que é necessário ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Tudo isso ocorreu durante o cristianismo, mas não diria que foi pura e simplesmente fruto do cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois no cristianismo buscar sua salvação é também uma maneira de cuidar de si. Mas a salvação no cristianismo é realizada através da renúncia a si mesmo. Há um paradoxo no cuidado de si no cristianismo...”
Michel Foucault in Ética, Sexualidade, Política. Org. e seleção de textos Manoel B. da Motta. Trad. Elisa Monteiro, Inês Autran D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. (Ditos & Escritos; V)


Porque pensamos como pensamos? Eis a pergunta mais elementar de uma hermenêutica de si mesmo, de um exame de nossos “jogos de verdade” e formatação do real que define os limites cotidianos de nossa linguagem.

É em torno daquilo sobre o que nos calamos que se esboça o provisório de qualquer resposta.

O exame de quem somos é a exploração das fronteiras de nossas certezas e valores, dos nossos condicionamentos mais insuspeitos, como construções perenes de sentido. Pois a única questão que permanece em nosso horizonte é aquela pertinente ao que podemos ainda ser além daquele ponto no qual nos encontramos.

Inspira-se tal horizonte ético naquele recuo a antiguidade do ultimo Foucault, que articula a questão da verdade, sujeito e poder a partir das técnicas do cuidado de si e dos outros nos primórdios da hermenêutica do sujeito na cultura ocidental. Busca-se tal referencia como ferramenta de estratégias contemporâneas de individuação, de redefinição da esfera pública como devir do eu e dos outros através de praticas discursivas que apontam para construção da existência como obra de arte.



terça-feira, 2 de janeiro de 2018

ABRIGO E SILÊNCIO

Inventei o abrigo de um discurso.
Afinal, o mundo apenas existe através do dizer das coisas,
Na linguagem em movimento,
Além do significante  e do significado,
Como uma presença abstrata
Entre a paisagem e o corpo.
Tudo é devir e  sentido
No incerto fato de existir.
Neste abrigo de discurso
É, entretanto, a palavra que me inventa

Como silêncio.

O LUGAR DA INDIVIDUALIDADE NO ACONTECER SOCIAL

Viver para si ou para o mundo? A realidade de nossas praticas coletivas procuram harmonizar estes dois impulsos difusos e opostos do exercício de nos mesmos enquanto seres viventes em estado de sociedade. Somos educados para perpetuação pragmática da ordem das coisas, conformados a um comportamento mimético  regido pela experiência de signos e símbolos verbais e não verbais. Através deles a dialética do eu e dos outros materializa o social como co- existência de todos em uma dada imagem de realidade e mundo. Mas a consciência de nossa individualidade é um silêncio e um desvio em relação a experiência do social. Habitamos este silêncio onde os signos e símbolos podem ser subvertidos, desfigurados ou reinventados através de recodificações inéditas e inesperadas. A individualidade é o lugar da criatividade, do incerto e efêmero. É onde a norma declina e as mudanças são gestadas revelando o social como devir.


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

LINGUAGEM E VIDA

A experiência da realidade é definida pelo exercício de práticas discursivas e pela replicação de um conjunto de enunciados consensuais que nos tornam participantes de uma mesma imagem de mundo. 

Assim, a experiência da realidade é definida pela nossa consciência enquanto codificação linguística que estabelece o que é verdadeiro e o que é falso, o que tem ou não valor, através de práticas discursivas. 

Linguagem e experiência são um mesmo acontecimento no devir de nossas interações simbólicas. Mas a linguagem tem a si mesma como objeto e é exterior a nossa condição humana cujo exercício é o acontecer do corpo como devir e finitude.

É através da linguagem, entretanto, que estabelecemos o humano como simulacro, como jogo infinito  entre significante e significado, como um algo a mais em relação a nossa condição de organismo biológico.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

DISCURSO E FICÇÃO

Toda prática discursiva possui algo de arbitrário ou ficcional, mesmo quando orientada pela pretensão a qualidade de verdade. Pois parte de um cenário interpretativo, de um referencial simbólico que previamente estabelece a possibilidade de sentido de um enunciado.

Verdadeiro e falso são categorias inerentes à significação discursiva, a ordem de um discurso normativo configurado por um arcabouço disciplinar.

O fato é que todo discurso inventa a realidade que lhe confere significação estabelecendo o que pode e o que não pode ser dito.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

O LUGAR DO EU E DO OUTRO

“Tudo se reduz ao diálogo, à contraposição enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida.” (Mikhail Bakhtin)

O outro é a medida da incerteza de mim mesmo. É a imprecisão que circunscreve o falante e o ouvinte através dos enunciados.
O outro é o próprio discurso que se apresenta a partir de sua  estrutura e significações. É o que nos reduz a personas, no ato do dialogo, em oposição e identidade com aquilo que é comunicado, compartilhado, formatado pela linguagem. O sujeito é uma função da própria prática discursiva que simultaneamente o faz um eu e um outro na alteridade discursiva, na ação dialógica que pressupõe o próprio exercício  da linguagem como pratica que nos define a todos. Se o discurso é quem estabelece sentido a um dialogo, ele também define o eu e o outro como um lugar dentro do dizer, como uma função inerente a construção do discurso. Somos inventados pelo e para o discurso, nos fazemos através dele aquilo que somos na presença um do outro, na incerteza daquele que fala como eu e também se percebe como um outro.





terça-feira, 19 de dezembro de 2017

NOTA SOBRE JUNG E A MODERNIDADE

Ao pensar todo o desenvolvimento da cultura ocidental a partir de sua configuração pelo mito cristão, Jung estabeleceu uma leitura original da modernidade. Para ele o tema central da época moderna era o deslocamento do homem, enquanto imagem arquetipa, para o centro da consciência. Assim, o homem sentiu sua autoconsciência e seu envolvimento com o mundo material como uma experiência mais forte do que sua dependência de uma divindade onipotente. Tal processo encontra-se representado pelo drama alquímico que, de muitas maneiras, abriu o caminho para  conversão do homem a demiurgo de seu próprio mundo social através de uma natureza sacralizada e, ao mesmo tempo, passível de sua intervenção. Confrontado com seu próprio deus,  o homem surpreende-se capaz de intervir na criação substituindo este mesmo deus transformando a natureza. Emerge, assim, gradativamente o Homo Faber como imagem de um domínio da natureza e antropomorfização do mundo.