quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

APOLOGIA A PALAVRA


Nada é definitivamente mais humano que a palavra. No além do signo, da concretude da letra, ela é viva expressão d’alma, de sentidos e significados que nos arrastam em tempestades, emoções e pensamentos.
A palavra, no mais que si mesmo da gente, é sentimento das coisas e pessoas que configuram o mundo e estruturam nosso universo particular, aquela mínima moralia ou dimensão de gentes, objetos e realidades aos quais nos irmanamos eletivamente em afinidade estranha e irracional de dia a dia da vida. Amar a palavra é amar o humano e o meta humano, fazer de cada coisa e ser um interlocutor em um ato de subjetividade no qual descobrimos, construímos, desconstruimos, o próprio humano em nós em paradoxos... O que podemos ser fora dos diálogos, das buscas, certezas, decepções e, acima de tudo, movimento que a vida ensina alem dos conceitos e na abstração delirante do brincar com as palavras enquanto jogos mágicos de linguagem e imagens? Nada há de mais mortal, mais criativo....
http://www.youtube.com/watch?v=kZjCGF57v4Q

VIRGINIA WOOLF:OS ANOS


O tema central dos escritos de Virginia Woolf é invariavelmente o tempo que passa em nossas vidas... No caso de Os Anos (1937), romance em 11 episódios em, torno do dia a dia da família Pargiter, nos deparamos com um verdadeiro ensaio literário sobre a experiência cotidiana, sobre a complexa relação entre individuo e cultura coletiva ou sociedade. Considero este, seu livro mais elaborado e intensamente humano, um mergulho profundo nos fatos, no fluxo abstrato de consciência e sentimento de mundo que nos define o movimento da própria vida.
A estrutura narrativa articula-se naturalmente em anos: 1880, 1891, 1907, 1908, 1910, 1911, 1913, 1914, 1917,1918 que desembocam no conclusivo “ O dia de hoje”. O acumulo dos anos nos conduz assim ao tempo presente e sua vitalidade perene e quase onírica diante da qual nos auto questionamos: E agora?...

“Era um crepúsculo de verão. O sol se punha. O céu ainda azul tingia-se de dourado, como se tudo se cobrisse de um fino véu de gaze. Aqui e ali, na amplidão ouro e azul, pairavam ilhas de arminho em suspenso. Nos campos as árvores se erguiam majestosas e ricamente ataviadas por suas inumeráveis folhas. Viam-se ovelhas e vacas, cor de pérola ou malhadas, jacentes as mais das vezes ou passando através da relva translúcida. Tudo estava orlado de luz. E o pó vermelho que subia das estradas como um rolo de fumaça tinha também um corte de ouro. Até as pequenas casas de tijolo vermelho aparente à margem das estradas eram porosas, incandescentes de claridade, e as flores nos jardins dos cottages, lilás e róseas como vestidos de algodão, brilhavam e tinham veios como que iluminados por dentro. E os rostos das pessoas paradas às soleiras das portas ou flanando pelas calçadas mostravam o mesmo rubro fulgor, como se encarassem de frente o sol que aos poucos desaparecia.”

( Virginia Woolf. Os Anos/tradução de Raul de Sá Barbosa. RJ: Nova Fronteira, 1982, p.335 )

A UMA JANELA...

Uma fantasia
Me puxou a pouco
Pelo braço
Convidando a um passeio,
A um devaneio,
Pela paisagem
Urbana e anônima.

Por algum tempo
Esqueci o dia,
As calçadas,
Semáforos, pessoas
E lojas.

Concentrei-me
No segredo de uma silenciosa janela,
Daquela pequena abertura
Ao outro mundo de um prédio perdido
No infinito do dia presente.

A janela, entretanto,
Oferecia – me apenas questões
E realidades entre abertas
Na desconstrução de respostas
e portas.

domingo, 4 de janeiro de 2009

SOBRE “ O ILUMINADO” DE STANLEY KUBRICK E O SOBRENATURAL


Adaptação de uma história de Stephen King, “O Iluminado” ( 1980) de Stanley. Kubrick, contrariando a obra original, é quase um tratado cinematográfico sobre o ceticismo e a ficção envolvendo o sobrenatural.
Afinal, o filme parece focado na pura e simples decadência de um homem fraco e problemático que, incapaz de conduzir a bom termo a oportunidade de reconstrução de sua própria vida, sucumbe a pressão e a loucura, mergulhando em, uma atmosfera insólita, imaginativa e alegórica mediante a qual desconstroi sua própria vida.
A presença do componente sobrenatural confunde-se assim, de modo ambíguo, com o aspecto psicológico induzindo a uma relativa recusa da premissa de uma causalidade metafísica na narrativa para sustentar o clima de terror e suspense que define a trama.
A originalidade desta heterodoxa adaptação para o cinema de uma história de terror encontra-se justamente nesse surpreendente realismo anti-metafísico que nos induz a pensar sobre a natureza de nossas crenças e superstições, seus “poderes” e “possibilidades” enquanto expressão de estados de consciência bastante peculiares. Afinal, como se define e até onde nos conduzem as imagens de realidade dentro das quais existimos? ...

YEAR AND FREEDOM


No ano que se inicia
Quero a mais plena
Existência,
A vida intensa em ventanias,
Saber o imprevisível
E impossível de cada momento
Na absoluta surpresa de mim mesmo.

No ano que se inicia
Meus caminhos serão
Sem esperanças e destinos
Em uma certeza de pedra
E imensidões;
Serei como um pássaro
Em espaços abertos
E corpo de movimento
De puro e livre pensamento
In a hurry,But carefully...

MULTICULTURALISMO

A vontade que vivo,
A necessidade
Que tenho,
É ir ao fundo
Do mais que profundo
Deste instante,
Percorrer o riso do tempo
Oculto em todas
As coisas que passam
Até desvelar em totalidade
As múltiplas possibilidades
Do meu pequeno rosto.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

QUENTIN TARANTINO: CINEMA, VIOLÊNCIA E PÓS-MODERNIDADE


Se é possível falar sobre a influencia ou construção de uma estética e sensibilidade pós-moderna no campo da sétima arte, alguém que poderíamos sem sombra de duvida indicar como um de seus mais talentosos representantes, seria o renomado diretor, roteirista e ator norte americano Quentin Tarantino ( 1963-...). Desde seu filme de estréia, Cães de Aluguel (1992), passando pelo brilhante e original Pulp Ficcion (1994) e os dois volumes de Kill Bill ( 2003-2004) Tarantino construiu uma linguagem e um estilo próprio combinando como ninguém violência e humor em uma descontraída leitura alegórica da realidade.
Para sustentar a “pós modernidade” de Tarantino, basta observar que o roteiro de todos os filmes aqui citados não são organizados em ordem cronológica, estão recheados de diálogos que contradizem ou extrapolam a trama, em meio a citações de outros filmes e, principalmente, de referências a cultura dos anos 70, criando normalmente uma charmosa atmosfera retro.
Quanto a pseudo questão do abuso e banalização da violência em seus filmes, argumento que a violência é elevada por ele a condição de linguagem estética e não se reduz a um instrumento ou recurso utilitário e apelativo de expressão destinado a atrair a atenção do público, diga-se de passagem, propenso a consagração de filmes violentos. A violência nos filmes de Tarantino é desconcertadamente pop e alegórica, não-realista ou impressionista.
Considero-o um diretor "META-alternativo", o caso único de um aficcionado por cinema que, de funcionário de uma locadora de vídeos em Los Angeles, tornou-se um criador de filmes ímpar justamente por jamais ter perdido a sensibilidade de um devorador ANÔNIMO de filmes.

INDIVIDUIALIDADE, PÓS - MODERNIDADE E EXPERIÊNCIA VIVIDA


O domínio da experiência imediata da própria individualidade pressupõe uma codificação provisória do mundo, uma organicidade e hierarquização dos desejos e das emoções moldada apenas pelas especificidades biográficas e aleatórias escolhas de cada um ao sabor dos momentos.
Isso é o mesmo que vincular a individualidade HOJE a uma espécie de estilhaçamento do mundo empírico e coletivo. Tal recusa relativa da objetividade do mundo e valorização de uma subjetividade aleatória é o que agora permite a cada individuo um esboço de autonomia e liberdade cada vez maior frente a vida coletiva e ao irracional vinculo natural de espécie inerente ao animal humano. Afinal, a individualidade tornou-se em todos os sentidos um não lugar dentro do mundo em lugar da afirmação inútil do próprio ego.
Surpreender-se como um individuo hoje é tão somente aceitar a própria fluidez e finitude ontológica como referencial de não ou virtual sentido no exercício de nossos cotidianos e pseudo-metafísicos apetites de auto-realização pueril.
Afinal, a individualidade transcende o pensamento e a lógica de qualquer conceituação positiva ou estável...

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

BEATLES E A FILOSOFIA: A ETICA FEMINISTA DO CUIDAR by Peggy J. Bowers.


Dentre os ensaios reunidos na coletânea Beatles e a Filosofia, ELA É UMA MULHER : OS BEATLES E A ETICA FEMINISTA DO CUIDAR de Peggy J. Bowers é singularmente impactante. Ao propor uma leitura dos Beatles a partir da psicologia social de Carol Gilligan e sua “Etica Feminista da Ética do Cuidar” a autora nos constrói possibilidades surpreendentes de interpretações da musicalidade e sensibilidade dos Beatles.
Em seus próprios termos:

“ Embora a principio pareça improvável pensar que a musica dos Beatles articule uma filosofia feminista sistemática, tanto Paul quanto John- após colaborarem mutuamente quase de forma exclusiva durante a carreira dos Beatles- acabaram por entrar em importantes relacionamentos colaborativos com suas companheiras: Linda, no caso de Paul; e Yoko, no caso de Lennon. Embora a musica da banda não seja feminista de forma explícita, uma analise ética do cuidar revela um poderoso subtexto de raciocínio moral que há muito foi associado ao estilo feminino na cultura ocidental. Esse traço da filosofia moral procura subverter a presunção de que os agentes abordam questões morais independentemente do contexto social e relacional. A ética feminista do cuidar surge como um desafio aos modelos masculinos de raciocínio em que os sujeitos emergem isolados das forças sociais que, na realidade, os moldaram. Em vez de desvalorizar os modos femininos de raciocínio, considerando-os inferiores, esse novo modelo procura usar o conceito da ética do cuidar como um meio de reconstruir nosa lógica moral de uma maneira que revele a ilusão do isolamento, tão central no sujeito modernista.
A musica que é tão ressonante na cultura popular, por um período de tempo tão longo, forma percepções, fluindo de contexto para contexto em que infiltra consciência de modos, às vezes, desconhecidos. Os temas abertamente relacionais encontrados na musica dos Beatles revelam uma contracultura moral enraizada na ética do cuidar. O que vem à tona é um drama em que a arte não apenas imita, mas constitui a vida.”

(Peggy J Bowers. Ela é uma mulher: Os Beatles e a ética feminista do cuidar. In Os Beatles e a Filosofia/ tradução de Marcos Malvezzi. SP: Madras, 2007, p.73)


Independentemente de concordar total ou parcialmente com a autora, o fato é que temas como o “amor romântico” nas letras dos Beatles, em suas diferentes fases e momentos, parece transcender muitas vezes o mero clichê, sugerindo de fato a intersubjetividade como interdependência ontológica, como expressão de autenticidade ou busca de modalidades subjetivas de percepção do mundo e realidade que transcendem as normas sociais e convenções através de uma sensibilidade estética bastante incomum. Acredito que a peculiaridade do psicodelismo dos Beatles em grande parte passe justamente por essa representação de vínculos harmônicos e simples entre indivíduos tão clara, por exemplo, na clássica “All You Need is Love”.
Em outras palavras, creio mesmo que existe no patrimônio estético/cultural que nos foi legado pelos Beatles um sentimento e reflexão em torno de uma realidade sócio cultural subjetiva e afetivamente insatisfatória que conduz a uma busca de recosntrução de si mesmo na mínima moraria de mundo privado psicologicamente reconstruido.
Voltando ao ensaio aqui comentado:

“As expressões de pura força emotiva na musica dos Beatles podem ser explosivas. Pense em canções como “Here Comes the Sun” e “Good Day Sunshine”, que retratam a alegria como uma experiência personificada que cria elos sociais. “Here Comes the sun”, em especial, convoca as sensações calorosas da vida quando George conclama seu outro significativo os observar: “litle darling, the smile’s retruing to their faces. Little darling, it seems like years since it’s been here. Here comes the sun. Here comes the sun. Here comes the sun and I say, it’s alright” ( querida, o sorriso esta voltando aos seus rostos. Querida, parece que faz anos desde que ele esteve aqui. Lá vem o sol. La vem o sol, e eu digo, esta tudo bem”). Observe que o elevado sentido da vida é experenciado não apenas pelos pensamentos e sentimentos individuais, mas vendo-os claros nos rostos de outras pessoas, fortalecendo seu senso compartilhado de pertencer.
George, tão famoso por sua guitarra chorosa, estava muito consciente do poder da musica para expressar emoções cruas. Em sua autobiografia ele declara que o que o atraia no sitar e na musica indiana era a habilidade deles em evocar fortes experiências emocionais em determinados espaço e tempo. O namoro dos Beatles com o misticismo oriental e a experimentação com drogas psicodélicas surgiram de um desejo de procurar modos alternativos para o entendimento da natureza do eu.”

(Peggy J Bowers. Ela é uma mulher: Os Beatles e a ética feminista do cuidar. In Os Beatles e a Filosofia/ tradução de Marcos Malvezzi. SP: Madras, 2007, p.75)