sexta-feira, 14 de novembro de 2008

HANNAH ARENDT: ENTRE A DECADÊNCIA DO ESPAÇO PÚBLICO E INDIVIDUOS EM TEMPOS SOMBRIOS


Considero a coletânea de ensaios HOMENS E TEMPOS SOMBRIOS de Hannah Arendt um de seus livros mais curiosos por nos proporcionar uma valiosa reflexão sobre o lugar do individuo no contexto de decadência do espaço público que, dentre muitas outras coisas, caracteriza nossa contemporaneidade.
A própria autora, no prefacio que faz a obra, elucida o significado dos tempos sombrios a que se refere e que, evidentemente, associa-se a experiência dramática das duas Guerras Mundiais e do totalitarismo
.
“ ... Fui buscar a expressão ao famoso poema de Brecht “Aos que virão a nascer” , que fala da desordem e da fome, dos massacres e dos assassinos, da revolta contra a injustiça e do desespero “ quando só havia injustiça e não revolta”, do ódio legitimo que no entanto nos desfigura, da cólera justificada que nos enrouquece a voz Tudo isso era bem real, uma vez que se passava em público; não era nem segredo nem mistério. E todavia, nem por sombras estava ao alcance de todos os olhos, era difícil ter-se consciência da situação; pois até ao último momento, em que a catástrofe arrastou tudo e todos, ela foi sempre camuflada, não por realidades mas pelos muito eficientes discursos e pelo palavreado de quase todos os representantes oficiais que, ininterruptamente e com as mais engenhosas variantes, iam arranjando explicações para todos os fatos desagradáveis e para todas as preocupações justificadas. Quando pensamos nos tempos sombrios e nas pessoas que neles viveram e se movimentaram, temos que levar em linha de conta esta camuflagem, emanada do “poder estabelecido”- ou do “sistema”, como então se dizia- e por ele difundida. Se a função do domínio público é iluminar a vida dos homens, proporcionando um espaço de aparências onde eles podem mostrar, em palavras e actos, para o melhor e o pior, quem são e o que sabem fazer, então as trevas chegam quando esta luz se apagada pelas “faltas de credibilidade” e pelo “governo invisível”, pelo discurso que não revela aquilo que é, preferindo escondê-lo debaixo do tapete, pelas exortações, morais e outras,k que a pretexto de defender velhas verdades degradam toda a verdade, convertendo-a em uma trivialidade sem sentido.”

( Hannah Arendt. Homens em tempos sombrios. Tradução de Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’agua, 1991, p.8 )

Esta é a temática que entrelaça os 11 ensaios da coletânea sobre a biografia de indivíduos que viveram nesses tempos sombrios de séc. XX, com exceção de Lessing, e que são tão diferentes um do outro e, em alguns casos, realmente antagônicos. Afinal Arendt toma por objeto a vida de homens com,o Ângelo Guiseppe Roncalli, Isak Dinesen, Randall Jarrell, Karl Jaspers, Hermann Broch, Walter Benjamin, Bertolt Brechtn e Rosa Luxemburgo.

Uma passagem do ensaio sobre Lissing, que abre o livro, me parece particularmente interessante para apresentar as idéias que perpassam esta coletânea tão original:

“Nada em nosso tempo é mais duvidoso, penso eu, do que a nossa atitude para com o mundo, nada menos garantido do que o acordo, que uma distinção nos impõe e que a sua existência afirma, com aquilo que se manifesta em público. No nosso século até mesmo o gênio só se conseguiu desenvolver em conflito com o mundo e o domínio público, embora naturalmente encontre, como sempre fez, a sua forma própria de acordo com o seu público. Mas o mundo não é a mesma coisa que as pessoas que o habitam. O mundo está entre as pessoas, e este espaço-entre é hoje- muito mais do que os homens, ou mesmo o homem, ao contrário do que muitas vezes se pensa- o objeto das maiores preocupações e o domínio das convulsões mais evidentes em quase todos os paises do globo. Mesmo onde o mundo ainda se encontra numa relativa ordem, ou é mantido numa relativa ordem, o domínio público perdeu a capacidade de iluminação que originalmente fazia parte de sua natureza própria. São cada vez mais os habitantes dos paises do mundo ocidental, que desde o declínio do mundo antigo considerou a liberdade em relação à política como uma das suas liberdades fundamentais, a exercer esta liberdade, retirando-se do mundo e das suas obrigações para com ele. Este alheamento do mundo não prejudica necessariamente o indivíduo; até pode permitir-lhe cultivar grandes talentos, elevando-o ao grau de gênio, e por esse desvio o tornando uma vez mais útil ao mundo. Mas com cada um desses alheamentos verifica-se uma perda quase palpável para o mundo; o que se perde é o espaço- entre particular e geralmente insubstituível que deveria ter-se criado entre esse individuo e seus semelhantes.”

( Hannah Arendt. Homens em tempos sombrios. Tradução de Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’agua, 1991, p. 12-13 )

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

LIFE II

Vivo apenas
Do dia, da noite e do acaso
Nos labirintos da embriagues
De um céu negro e distante.

Vivo na violência do vento,
No corpo das tempestades
Que procuram madrugadas
Nos intervalos da vida.

Vivo da violência
De um encanto de existências
Cravadas no peito
Da própria e cotidiana
mera realidade.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

SOBRE A UTOPIA de T. MORE


Publicado originalmente em 1516, justamente um ano antes da eclosão da reforma luterana, A Utopia de More permanece ainda hoje um texto um tanto quanto enigmático. Responsável pela invenção da palavra Utopia, não raramente é vitima de leituras anacrônicas e “ideolocizantes” sobre seu significado enquanto “critica social e política” à Inglaterra dos Tudors através da idéia de uma sociedade ideal comunista.
A Utopia de More insere-se, entretanto, no panorama humanista e renascentista, constitui um esforço de conciliação entre a cultura clássica e medieval mediante a um reequacionamento entre o paganismo pagão da antiguidade com o cristianismo medieval, o que se expressa, por exemplo, na valorização do epicurismo presente na obra, mesmo que contraditoriamente diluído por certo estoicismo.
A republica de Utopia expressa o desejo do autor por uma reforma da vida social e política da Europa do séc XVI como uma resposta a então evidente crise da cristandade ocidental.
Para o historiador Carlo Ginzburg, em uma leitura realmente original construída através de sua micro- história, conforme sugerem alguns indícios pouco observados na obra, a Utopia de More insere-se em uma tradição literária satírica que remonta a Luciano de Samósata.
Em suas próprias palavras:

“Greenblatt decerto tem razão em sustentar que a maioria dos interpretes deixou escapar “ a sensação de perspectivas incompatíveis” que tem tamanha importância no livro de More. Mas esse elemento formal, por importante que seja, pode ser identificado como o núcleo do livro?
A abordagem que proponho ultrapassa esse dilema, uma vez que leva em conta as “perspectivas incompatíveis” que Greenblatt ressalta, como também o “complexo enquadramento” que os interpretes debateram longamente. No centro deste último debate está a tese de Hexter sobre o “parágrafo fora do lugar”, segundo a qual o parágrafo do livro primeiro da Utopia que promete uma descrição da ilha seria uma espécie de “remedo”, indício mal escondido de uma fase anterior do projeto de More, visto que a descrição só comparece no livro segundo. No entanto, quando se lê a Utopia no contexto da tradição luciânica, tão dada a contradições lógicas e textuais, a tese de Hexter parece muito frágil. “Mas contarei as minhas aventuras no outro continente no próximo livro”, lê-se no fim do segundo e último livro de Uma história verdadeira, de Luciano. “A maior mentira de todas”, comentou secamente um escriba grego, à margem da cópia.
Outro estudioso, G. M. Logan, declarou que a influência de um escritor satírico como Luciano seria incompatível com as passagens “absolutamente sérias da descrição de Utopia”. O livro de More, adverte Logan, “apesar de ser escrito de forma arguta e indireta, é uma contribuição séria à filosofia política. Mas os elementos sérios e cômicos da Utopia serão tão opostos assim? Ao rejeitar esse dilema, Thompson perguntou-se: “ Não poderíamos ficar com as duas alternativas?Cero, mas como? O que está em pauta é a relação entre as duas faces do livro. “Apesar de ser escrito de forma arguta e indireta”, escreveu Logan; eu não diria “apesar”, e sim “por ser escrito”. Como se sabe, More começou a escrever pelo que viria a ser o livro segundo, isto é, a descrição de Utopia; em seguida, acrescentouo livro primeiro, a descrição da Inglaterra. Tenho a impressão de que, neste caso, post hoc e popter hoc coincidem. Os paradoxos de Luciano devem ter descortinado a More um campo de possibilidades que modificou o seu projeto original. Hipóteses extravagantes e puramente imaginárias levaram-no a contemplar a realidade de um ponto de vista insólito, a fazer perguntas obliquas à realidade. O que aconteceria se ( como imaginou Luciano) as várias filosofias fossem a leilão? O que aconteceria se a propriedade privada fosse abolida? Antigos rituais de inversão como as saturnais levaram More a imaginar uma sociedade fictícia, na qual ouro e a prata eram usados para fabricar penicos e os embaixadores estrangeiros carregados de correntes de ouro, por engano, eram tidos por escravos. Os mesmos rituais de inversão, ajudaram-no a entrever pela primeira vez uma realidade paradoxalmente às avessas: uma ilha em que as cabras devoravam os homens.”

Carlo Ginzburg.O Velho e o Novo Mundo vistos de Utopia, in Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro Visões da literatura Inglesa/ tradução de Samuel Titan Jr. SP: Companhia das letras, 2004, p. 41-42

LITERATURA INGLESA XXXVIII


Alfred Edward Mason (1865-1948) no cenário da literatura britânica, é um nome relativamente pouco conhecido, embora tenha escrito cerca de trinta peças literárias. A mais conhecido dentre elas é o romance The Four Feathers ( As Quatro Penas Brancas) originalmente publicado em 1902 e, diga-se de passagem, imortalizado por cinco versões cinematográficas, dentre as quais a mais popular e bem sucedida foi a de 1939 dirigida por Zaitan Korda.

Este belo romance nos oferece um significativo panorama da paisagem cultural correspondente ao mundo da antiga aristocracia britânica e seu ethos militarista, rigidamente hierárquico e vinculado à afirmação do império colonial britânico.
Ao longo da narrativa articulam-se em torno da questão da honra uma serie de conflitos de valores que basicamente contrapõem o individuo aos crivos impostos pelo meio sócio-cultural. Associado ao tema da honra encontra-se, por exemplo, a questão da relação entre gêneros, com destaque para a problemática do amor entre homem e mulher e o próprio lugar da mulher na sociedade.

Resumindo o enredo, a personagem central, o jovem Harry Fevershun, ao deixar o regimento a que servia as vésperas de sua partida para atuar em um conflito no Sudão, é acusado por seus principais amigos de infâmia e covardia, recebendo no dia de seu noivado três penas brancas simbolizando sua desonra. A estas junta-se uma quarta oferecida por sua própria noiva. Com a desconstrução da sua opção por uma vida domestica e calma, Harry lança-se em segredo a uma perigosa e árdua aventura pela Irlanda, Sudão e Egito, para provar seu valor e recuperar sua honra.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

ENCANTO DE ACASOS

Eu amo o acaso,
Estrelas e fatos
No perde-se de um céu aberto
Em liberdade de atos
E loucuras de imaginações.

Eu amo o infinito e a particularidade desse ato,
Meu ser gente em pluralidades de tempos,
Existências e imaginações.

Eu amo o caótico acontecer
Da liberdade
Em todas as coisas do mundo
Sob um infinito aberto em vida, luz
E azul profundo
Ao sabor do vento.

CRÔNICA RELÂMPAGO XL

Em um determinada e incerta ocasião, ouvi da boca de um velinho uma melancólica argumentação sobre o fato de já ter perdido muitas coisas na vida, a confissão de que já tinha cometido muitos erros e não se importava de viver de ilusões, sonhos e crenças religiosas ou políticas, justamente por não ter mais em que pessoalmente realmente acreditar.
Respondi na ocasião que o que de fato faz diferença em nossas vidas é o modo como enfrentamos a realidade de todos os dias, como confrontamos nossos medos, desejos, frustrações e limites.
Hoje sei que as coisas não são tão simples assim, embora não decline de minha opinião de ocasião. Apenas acho que quanto mais certezas afirmamos para nós e para os outros, mais nos desfazemos em enganos. No presente caso, é fato que, em alguma medida, qualquer um se sente inseguro ou insatisfeito com a própria existência. Na melhor das hipóteses, angustia-se com o natural fato de que um dia ira desaparecer da face da terra como tudo aquilo relacionado a ele ou a seus entes queridos.
Mas é possível ir além desse sentimento. Há algo mais... Algo que diz respeito aquilo que poderíamos provisoriamente definir como “a estética da vida”, a construção subjetiva de significados através de nossa auto expressão mediante empreendimentos pessoais de coisas inúteis e sem importância para o mundo e os outros, mas que de alguma maneira realizam o que somos na medida em que a construímos em árduo processo de auto-expressão irracional e sentido. Pode- se compor uma musica, pintar um quadro, escrever um livro ou simplesmente... viver intensamente a própria vida até o limite de todo acontecimento convencional. O importante é dedicar-se de corpo e alma a alguma coisa que seja pessoalmente significativa, que faça tudo valer a pena.

A PRIMEIRA GRANDE GUERRA MUNDIAL: 90 ANOS DEPOIS...


11 de novembro de 2008 marca 90 anos do fim da Primeira Grande Guerra Mundial. Mas cabe dizer que em agosto de 1914 muitos europeus marcharam para os campos de batalha entre jubilosas manifestações e festas entoando ridículos cantos patrióticos.
As multidões nacionalistas que então agrediam, discriminavam e desconfiavam dos poucos pacifistas da época, não tinham a menor idéia de que nos anos que se seguiriam o ocidente seria palco de horrores nunca antes concebidos. A ciência da guerra unia-se triunfante as políticas nacionais sob o signo do sacrifício, da “Sagração da Primavera”.. .
Noventa anos depois é insólito constatarmos impotentes e perplexos o quanto a guerra e a violência tornaram-se atividades capazes de comprometer o futuro da própria espécie humana pela mera e subjetiva decisão política de Estados... De que outro modo podemos, por exemplo, pensar a ocupação norte americana do bizarro Iraque e as pretenções a conquista da bomba atômica no Irã, na India, Paquistão, etc. sob o fantasma de uma nova "querra fria" multilateral e escalada armamentista?

INDIVIDUALISMO, ALTERIDADE E POS MODERNIDADE

A aceitação do heterogêneo e do marginal, o reconhecimento e integração da diversidade, do hibrido e a conseqüente rejeição das totalidades e totalitarismos morais, dos meta discursos identidários, constituem um dos aspectos mais decisivos do tempo presente, diga-se de passagem, formatado por uma pauta que podemos tomar como “pós- moderna”.
O conseqüente relativismo axiológico, a perda de um parâmetro universal que estabeleça princípios comuns as performances das sociabilidades e intercâmbios humanos, a eleição da alteridade como referencial e premissa de uma Ética contemporânea, simboliza a recusa e contra-posição ao “neo conservadorismo” dos defensores do retorno a uma moral e valores tradicionais como desesperada busca de segurança e certeza frente uma realidade cada vez mais ilegível.
O mundo em que vivemos já não é mais o mesmo que o dos nossos pais ou avós, se quer podemos chamá-lo de “nosso” sem ariscar a autenticidade de uma pluralidade de possibilidades de mundos dentro de mundos. Afinal, a grande a maravilhosa mudança é que não é mais a sociedade que molda e condiciona o individuo, mas o individuo que molda e relativamente transcende a própria idéia de sociedade...

domingo, 9 de novembro de 2008

POEMA SENSUALISTA

O tempo não passa
De uma convincente ilusão
Na opaca fantasia
Do corpo e da alma
Entre as coisas...

Pois todos os acontecimentos
De uma vida inteira,
Não cabem em um único segundo
De pura eternidade.

Mas quantas eternidades valem
Um mero segundo de absoluto prazer?

Viver é mais importante que eternidades
Quando um único segundo
Dentro da gente
Nunca tem fim...

sábado, 8 de novembro de 2008

VIOLÊNCIA E CONTEMPORÂNEIDADE


Um dos mais curiosos fenômenos que caracterizam a contemporaneidade é o da liberdade da violência enquanto linguagem e modo de expressão de indivíduos, nações e bizarras organizações terroristas. Atualmente, a violência já não é um fenômeno instintivo condicionado a ritualista simbólica, como foi durante as guerras religiosas da Europa no inicio da modernidade, e muito menos uma prática de Estados através da guerra limitada por um rígido código ético como no séc. XIX.
A violência do nosso tempo tornou-se impessoal e incondicionada refletindo assim uma imagem de realidade onde a vida individual revela-se de muitas e ingratas formas um valor relativo frente aos interesses e práticas coletivos.
Quando grupos, sociedades, códigos morais falam mais forte do que o reconhecimento da diversidade e do outro, o uso ilimitado da força é um recurso legitimo tanto para um psicopata quanto um chefe de Estado.
Tudo isso significa que nossas representações da morte estão se modificando ou, para ser mais preciso, se laicizando de um modo que não considerávamos possível.
O celebre historiador britânico Eric Hobsbawn nos ajuda a pensar este espinhoso tema no fragmento abaixo:

“Gostaria de ilustrar a amplitude do abismo entre o período anterior a 1914 e o nosso. Não me apoiarei no fato de que nós, que passamos por desumanidade maior, tendemos hoje a ficar menos chocados com as moderadas injustiças que envergonharam o século XIX. Um erro isolado da justiça na França ( o caso Dreyfus), por exemplo, ou vinte manifestantes presos por uma noite pelo exercito alemão em uma cidade da Alsácia ( o incidente de Zabern em 1913). O que desejo lembrar a vocês são normas de conduta. Clausewitz, escrevendo após as Guerras Napoleônicas, pressupunha que as forças armadas dos Estados civilizados não executariam seus prisioneiros de guerra ou não devastariam países. As guerras mais recentes em que a Grã-Bretânha se envolveu, ou seja, a Guerra das Malvinas e a Guerra do Golfo, sugerem que isso não é mais pressuposto. Além disso, para citar a 11º edição da Enciclopédia Britânica, “a guerra civilizada, dizem-nos os manuais, confina-se, na medida do possível, à incapacitação das forças armadas do inimigo; caso contrário, a guerra continuaria até que uma das partes fosse exterminada. ‘É por um bom motivo”’- e aqui a Britânica cita Vattel, um advogado internacional do nobre Iluminismo do século XVIII- “‘que essa prática passou a ser um costume nas nações da Europa’”. Não é mais um costume das nações da Europa ou de nenhum outro lugar. Antes de 1914, a concepção de que a guerra devia se dar contra combatentes e não contra não-combatentes era uma concepção comum a rebeldes e revolucionários. O programa do Narodnaya Volya, o grupo russo que assassinou o czar Alexandre II, afirmava explicitamente que “indivíduos e grupos alheios a sua luta contra o governo seriam tratados como neutros, sendo suas pessoas e propriedades invioláveis”. Aproximadamente na mesma época, Frederick Engels condenava os fenianos irlandeses ( com quem estavam todas as suas simpatias) por colocarem uma bomba em Westminster Hall, arriscando assim as vidas de inocentes ali presentes. Como um velho revolucionário com experiência em conflito armado, ele achava que a guerra deveria ser movida contra combatentes e não contra civis. Hoje, esse limite não é mais reconhecido por revolucionários e terroristas, como também não o é pelos governos que promovem guerras.
Sugiro então uma breve cronologia dessa escorregada pelo declive de barbarização. São quatro os seus estágios principais: a primeira Guerra Mundial, o período da crise mundial desde o colapso de 1917-20 até o de 1944-7, as quatro décadas da era da Guerra Fria e, por ultimo, o colapso geral da civilização conforme conhecemos sobre sobre extensas áreas do mundo a partir dos anos 80. Há uma óbvia continuidade entre os três primeiros estágios. Em cada uma das lições anteriores de desumanidade do homem para com o homem foram aprendidas e se tornaram a base de novos avanços de barbárie. A mesma conexão linear não existe entre o terceiro e quarto estágios. O colapso dos anos 80 e 90 não se deu graças as ações de agentes humanos de decisão que poderiam ser reconhecidas como bárbaras, como o os projetos de Hitler e o terror de Stalin, lunáticas, como os argumentos justificando a corrida rumo a guerra nuclear, ou ambas, como a Revolução Cultural de Mão. O colapso ocorreu porque os agentes de decisão não sabem mais o que fazer quanto a um mundo qu escapa ao seu ou ao nosso controle, e porque a transformação explosiva da sociedade e da economia a partir de 1950 produziu um colapso e ruptura sem precedentes nas regras que governam o comportamento em sociedades humanas. O terceiro e quarto estágios, portanto, superpõe-se e interagem. Hoje as sociedades humanas estão falindo, mas sob condições em que o padrão de conduta pública permanecem ao nível a que foram reduzidos nos períodos anteriores de barbarização. Até agora não deram nenhum indício significativo de estarem novamente se elevando.”

(Eric Hobsbawn. Sobre História/ tradução de Cid Knipel. Companhia das letras, 1998, p. 270)