Até os anos 80 do último século, a prática tabagista gozou de certo prestigio no imaginário coletivo, foi um símbolo de gramour, refinamento e estética. A partir da chamada “década perdida” e o advento da “geração saúde”, entretanto, isso começou a mudar, o status social deu gradativamente lugar ao estigma mediante uma massiva e apelativa propaganda anti-tabagista centrada nos malefícios do hábito de fumar.
Neste inicio de século, tal propaganda começou a fomentar, a nível global, políticas de saúde pública e uma legislação anti tabaco de caráter profundamente coercitivo que já atinge lugares de franca tradição liberal como os Estados Unidos, o Reino Unido e a França.
Mas diante de tal sombrio conjunto de leis, cujo objetivo último é a inibição e coerção daqueles indivíduos que teimosamente, apesar da cruzada anti-tabagista imperante, insistem na manutenção do seu hábito, é pertinente questionar até que ponto estamos falando apenas de políticas públicas de saúde.
Colocando em segundo plano os efeitos do tabaco sobre o organismo humano, o que me parece alarmante é o fato de ganhar legitimação legislações consagradas a impor controle social sob o direito de escolha e a liberdade dos indivíduos como se disso realmente dependesse o futuro de toda a civilização supostamente saudável.
Há por traz desse tenebroso fato uma tendência perigosa para desconstrução ou questionamento dos valores libertários estabelecidos pelos modernismos e pela contemporaneidade, ao longo do séc. XX, inicialmente através das vanguardas literárias, politicas e estéticas, por exemplo, passando pelo psicodelismo, o feminismo e o poder jovem dos anos 60, até chegar a nova liberdade sexual, identidária e étnica hoje em gestação .
Tudo que afirmo aqui é que, por traz das bem intencionados discursos de nossas autoridades de saúde, dos populares aconselhamentos sobre a necessidade de uma boa dieta alimentar, fazer exercícios físicos e tudo o mais ligado a caricatas versões de “vida saudável”, ganha terreno no mundo ocidental um novo “realismo”, uma volta as “convenções” e uma pseudo estética do belo humano que apenas revela um ideal de controle social ao qual, as cada vez mais frágeis estruturas de poder definidas pelos nossos carcumidos “estados nações”, mostram-se perigosamente permeáveis, diante de um mundo cada vez mais plural, global, diverso e complexo que lhes “foge ao controle”.
Hoje em dia, portanto, quando a própria idéia de que vivemos em uma sociedade é relativizada através da imagem de que existimos como indivíduos imersos em múltiplas sociabilidades (pessoais, impessoais, concretas e simbolicas) formando uma complexa rede de relacionamentos diretos e indiretos, aqueles que ainda deliram o ideal de uma boa sociedade, inventam suas caças a bruxas.
Evidentemente, estou aqui falando sobre tabagismo, quando poderia estar falando sobre muitas outras coisas... Mas a própria critica ao tabagismo constitui hoje uma perigosa metáfora. E, o fato é que metáforas, como já notou a feminista americana Susan Sontag, são bastante perigosas, quando consideramos as políticas de saúde ou controle público de nossas sociabilidades e rituais diários de vida e morte. A mais comum dentre elas é significativamente a da guerra, e sabemos pela História o quanto imagens e sentimentos de guerras santas e cruzadas revelam o que há de pior na condição humana...
“... A metáfora mais generalizada sobrevive nas campanhas de saúde pública, que rotineiramente apresentam a doença como algo que invade a sociedade, e as tentativas de reduzir a mortalidade causada por uma determinada doença são chamadas de lutas e guerras. As metáforas militares ganharam destaque no início do século, nas campanhas de esclarecimento a respeito da sífilis realizadas durante a Primeira Guerra Mundial, e nas campanhas contra a tuberculose do pós-guerra. Um exemplo, extraído da campanha italiana contra a tuberculose nos anos 20, é o cartaz intitulado Guerre alle Mosche ( Guerra às moscas ), que mostra os efeitos letais das doenças transmitidas pela mosca. Os insetos aparecem como aviões inimigos soltando bombas de morte sobre uma população inocente. As bombas trazem inscrições. Uma delas é rotulada Microbi, micróbios; a outra, Germi della tisi, germes da tuberculose; a outra, simplesmente Malattia, doença. Um esqueleto de capa e capuz negrosd aparece no primeiro avião, como passageiro ou piloto. Em outro cartaz, “ Com estas armas conquistaremos a tuberculose”, a figura da morte aparece presa à parede por espadas desembainhadas, cada uma das quais tem uma inscrição referente a uma medida contra a doença. Numa das lâminas lê-se “limpeza”, na outra “sol”, nas outras “ar”, “repouso”, “boa alimentação”, “higiene”. (Evidentemente, nenhuma dessas armas era realmente importante. O que conquista- ou seja, cura- a tuberciulose são os antibióticos, que só foram descobertos cerca de vinte anos depois, na década de 1940.)”
(Susan Sontag. AIDS e suas metáforas/ tradução de Paulo Henrique Britto. SP: Companhia das Letras, 1989, p. 14 e 15)