O bem e o mal na Psicologia Analítica é o titulo de um pequeno ensaio publicado no décimo volume das obras completas de C G Jung. Originalmente ele foi apresentado em um encontro de fim de semana do grupo de trabalho “ Arzt und Seelsorges” de Stuttgart no outono de 1958.
Como alerta o próprio autor, sua posição sobre o assunto não se enquadra em qualquer especulação moral apriorística ou teórica. Seu ponto de vista é essencialmente empírico e ancora-se em sua experiência como psico-terapeuta. Nesta perspectiva, a problemática do bem e do mal nos conduz a cisão e conflito entre opostos que configuram a milênios a consciência e cultura ocidental. Em termos de psicologia analítica, dentre outras coisas, trata-se do delicado problema de conscientização e assimilação da sombra, imagem arquétipo que corresponde à experiência psicológica de nosso intimo outro, daquelas faces de nós mesmos que por uma série de razões normalmente ignoramos. Cabe ainda considerar a os limites de todo código comportamental inspirado pela moral tradicional.
Segue um fragmento deste instigante texto:
“... Também na questão do bem e do mal nós, terapeutas, só podemos confiar estarmos vendo as coisas de modo certo, mas não se pode ter certeza absoluta. Enquanto terapeuta, não posso abordar, em casos concretos, o problema do bem e do mal de modo teológico ou filosófico, mas apenas de modo empírico. Sendo minha atitude empírica, isto não quer dizer que relativizo em si o bem e o mal. Sei muito bem: isto é mau, mas o paradoxo é que nesta pessoa, nesta situação concreta, neste determinado grau de seu amadurecimento isto pode ser bom. Por outro lado, também vale: o bom no momento errado e no lugar impróprio se torna o pior. Se assim não fosse, tudo seria muito simples demais. Se não fizer um juízo a priori mas escutar os fatos concretos, não sei de antemão o que é bom ou mau para o paciente. Muitas coisas se nos apresentam mas não conseguimos desvendar seu significado.”
“...A realidade do bem e do mal consiste em coisas, situações que acontecem, que ultrapassam nosso pensamento, em que a gente está, por assim dizer, diante da vida e da morte. O que me sobrevém nesta força e intensidade eu experimento como algo numinoso, não importa se o designo como divino, demoníaco ou causado pelo destino. Esta atuando algo mais forte, insuperável com o qual me confronto. A dificuldade esta em que estamos acostumados a pensar estes problemas a ponto ficarem claros “como dois mais dois são quatro” . Mas na prática isto não funciona; não chegamos a uma solução, em principio, de como devemos proceder. Querer isto é errado. È como nas leis da natureza que a gente acha que são validas em toda parte. A moral tradicional é exatamente como a física clássica: uma verdade e sabedoria estatísticas. O físico de hoje sabe que a causalidade é uma verdade estatística. Mas no caso prático sempre procurará saber qual a lei aplicável a este caso. O mesmo se da no campo da moralidade. Não podemos supor que tenhamos dito algo de validade absoluta quando opinamos num caso concreto: isto é bom, isto é mau. É certo que muitas vezes devemos pronunciar um julgamento, não da para fugir. E pode acontecer que digamos inclusive a verdade, que acertemos na mosca. Mas considerar nosso julgamento simplesmente como valido seria disparate, seria querer ser como Deus. Mesmo que na prática uma ação moral nem sempre estuda sua qualidade moral mais profunda, a soma dos motivos conscientes e inconscientes que a fundamentam. E muito menos quem julga a ação de outro, que só a percebe de fora, em sua aparência e não em seu ser mais profundo. Kant diz com razão que o indivíduo e a sociedade deveriam passar de uma “ética da ação” para uma “ética da convicção”. Mas só Deus pode perscrutar a última e mais profunda convicção que está por trás da ação. Por isso, nosso julgamento sobre o que é bom ou mau concretamente deve ser muito prudente e hipotético. Jamais apodítico como se pudéssemos ver claramente todos os fundamentos últimos. As concepções morais são muitas vezes tão divergentes quanto diverge nosso paladar do dos esquimós no tocante a guloseimas.”
( C G Jung. O Bem e o Mal na Psicologia Analítica, in Obras Completas. Vol. X/3. Civilização em Transição. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 185 et seq.)