quarta-feira, 31 de outubro de 2018

O ABISMO DA NARRATIVA

A narrativa fugidia e incerta se reinventa em suas descontinuidades. Ela é incapaz de reter um sentido. Já não significa qualquer coisa. Não é feita para o entendimento, mas para o cultivo de derivas. Ela é a escrita despida de si mesma. Não oferece aos olhos famintos qualquer alimento. Ela é um aprendizado de silêncios contra todos os textos que já foram escritos. Ela não pretende nada dizer. Não há mais um autor, qualquer sombra de humanidade. Há apenas um arremedo de comunicação. A narrativa fica a morte, desenha desaparecimento no entrelaçamento de palavras que inventam o sem fim de um pedaço qualquer de página.

O PROBLEMA DA LINGUAGEM E DE SUA INDETERMINAÇÃO



Não quero recorrer à erudição filosófica para falar sobre a linguagem e sua experiência concreta. Afinal, seja em qualquer perspectiva possível, falar sobre linguagem através da linguagem, é no mínimo uma espécie de paradoxo cognitivo. Mas infelizmente não existe um plano exterior a seu exercício ou analise. O ser da linguagem nos escapa, pois não se identifica com o conteúdo de qualquer texto ou narrativa possível que lhe tome como objeto. Não é algo representável. Sua própria significação como experiência de letramento, como exercício normatizado do uso de signos e símbolos que se entrelaçam em significados, que se afastam dos ritos e recursos da fala, não pode ser satisfatoriamente definido conceitualmente.

O ser da linguagem antecede o texto, problemática exaustivamente explorada por Foucault ao longo dos anos 60 do século passado. Retomar o tema é constatar que a experiência da linguagem é a interiorização de exterioridades, é a desconstrução de qualquer noção de sujeito ou de interioridade. Desta forma, nos afastamos do segundo Wittigenstein e seus jogos de linguagem. Não é seu funcionamento que nos interessa, que nos esclarece qualquer coisa. Também recusamos a linguística e qualquer psicologia da linguagem. Ela escapa ao campo de qualquer saber e, ao mesmo tempo, perpassa todos.

Nada de conclusivo é possível dizer sobre o tema. Seu exercício é uma busca, um labirinto, que remete a questão da imaterialidade e indeterminação do sentido que encanta qualquer enunciado.

O que podemos afastar, é a ideia de que a linguagem destina-se a comunicação. Ela não é um meio utilitário ou um instrumento mecânico. 

terça-feira, 30 de outubro de 2018

INDETERMINAÇÃO E AMBIENTAÇÃO: UMA ESPECULAÇÃO FILOSÓFICA


A interseção entre inteligência e sensibilidade define a terceira parte da Ética de Espinosa e sua teoria dos afetos. É o que confere a sua filosofia o estatuto, já apontado por Deleuze, de uma filosofia prática fundada na experiência. Mas afeto não deve ser aqui entendido como um sinônimo de paixão, mas como uma relação de composição, como um agenciamento entre “corpos”. Tomando corpo como uma singularidade dinâmica e paradoxalmente incorpórea, expressão imanente de uma mesma substância infinita que podemos identificar como a própria natureza.

As afecções remetem ao aumento ou a diminuição da capacidade de agir. Os afetos são potências em variação que engendram modos de existência imanentes, formas de composição com o ambiente, de adicionar realidade a própria vida. Inteligência e sensibilidade não possuem qualquer caráter transcendente.

Derivo desta leitura de Espinosa, de forma muito livre, um conceito de ambientação onde não cabe qualquer dualismo corpo e mente, mas a ideia de uma geografia existencial onde o dentro e o fora compõem um modo de vida, uma forma de habitar a realidade, de reduzir-se a coordenadas como componente de um processo complexo e multifacetado. Vislumbro aqui uma cartografia de nós mesmos como interseção de multiplicidades onde mente, natureza, corpo, signos e símbolos, orgânico e inorgânico, compõem a experiência singularizada da impessoalidade diversa que articula o acontecer de um indivíduo. Individuo que não passa de um campo de afetações, de um afetar e ser afetado, e caracteriza-se como uma indeterminação.

Se somos através de diversas trocas definidos por uma ambientação a determinado meio, qualquer ideia de sujeito torna-se ilusória, tão virtual como o próprio ego que, em uma visão junguiana, não passaria de um complexo entre outros complexos, como a sombra, a persona, anima, animus, na estruturação de uma personalidade. Existe, assim, um paradoxo entre determinação e indeterminação. Ambos são diferentes perspectivas de uma mesma experiência do real que não pode ser reduzida a qualquer definição unívoca. Tudo  que há é uma espécie de ecossistema. Estamos sempre contidos em algo maior, contendo algo menor e esta lógica se reproduz ao infinito.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

DO DIZER A ESCUTA







O que é dito pode ser apenas silêncio onde os ouvidos são mudos. Eis o limite de toda expressão, de toda confissão de verdade. O que entre nos circula como signo e símbolo possui sempre múltiplos significados, pois transcende  o plano da representação. O maior  desafio é esclarecer como uma palavra nos afeta, como ela acontece como consciência... e não como um saber formal.


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

FOUCAULT À SOMBRA DE JUNG: UM RABISCO




Na entrevista "Lacan , o 'libertador' da psicanálise" concedida em 1981 a J.Nobecourt e reunida no primeiro volume da edição brasileira de Ditos & Escritos, há uma frase de Foucault sobre Lacan que é singularmente luminosa:

" A influência que exercemos não pode nunca ser um poder que impomos.".
Poderíamos recontextualizar esta frase e afirma-la como 

uma premissa para pratica de si e de uma ética do 

cuidado. Assim, ultrapassamos os dispositivos de 

poderque nos assujeitam, que nos acomodam a uma 

subjetividade estreita, condicionada a uma racionalidade

torta, que visa sempre a instrumentalização do outro, o 

ego como medida de todas as coisas e os complexos 

culturais como matriz de um comportamento de manada. 

É isso que produz singularidade, individuação, e nos 

irmana no cultivo de uma vida significativa ou simbólica. 

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A ÉTICA DA PRODUÇÃO DE SI MESMO


Produzir vida,
Ser o corpo,
O ato e o objeto,
Em um só afeto,
Movimento,
Sentimento e pensamento.

Ser é um acontecimento complexo,
Um acoplamento de corpos/coisas
Para produzir desejo, sentido e subjetividade.

Ser é algo mais do que existir....

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

ESCUTAR COM OS OLHOS, FALAR COM AS MÃOS


Algumas pessoas escutam com os olhos e falam com as mãos.  É uma questão de sensibilidade para as curvas e nuanças da comunicação, para o que há de  verbal e não verbal no ato de expressão. É sempre preciso estar atento para o que é dito em silencio e a margem das palavras. Raramente nos damos da múltipla dimensão do ato de comunicação que depende não apenas do tido, mas fundamentalmente da escuta. Ou mais precisamente, das diversas formas de escuta e apreensão de uma mensagem. De outra forma, comunicar-se não passa de um monologo.

Escutar com os olhos e falar com as mãos é aqui apenas um exemplo  do quanto podemos ser versáteis em nossa  forma de dizer e ouvir ampliando as estratégias de ser visto. Antes de tudo somos seres simbólicos, e a circulação de signos obedece a um fluxo de imagens que definem tudo aquilo que é visível em uma sociedade. Mas é surpreendente o quanto aquilo que contradiz as normativas de expressão nos excita. O que se convencionou no plano das artes como modernismo é juntamente a personificação deste exercício de experimentação.


quarta-feira, 17 de outubro de 2018

AS ESPIRAIS DO TEXTO



Dentro de um texto existem frases que constituem ilhas de sentido, que destoam da narrativa, e servem de porta para outros textos, para fugas da intencionalidade da totalidade do discurso. Assim se fazem interpretações, apropriações e reinvenções. O texto lido é sempre diverso daquele que foi escrito.

O excerto é sempre uma reduplicação mutante do original. Ele é o texto que estala, que se espalha e escapa ao autor e ao leitor como figuras comunicantes do ato de linguagem.  É fácil entender a incompreensão de um texto, o labirinto da hermenêutica que multiplica os interpretes, os leitores infiéis, os detratores e críticos literários que em longas resenhas vivem as custas das pseudo copias do original.  
  
Todo texto esta condenado a perder-se em interpretações e releituras infinitas, multiplicar-se, neutralizar-se.

SOBRE A IGNORÂNCIA METÓDICA



Só lida como o inesperado quem confia mais do que deveria nas próprias expectativas. Quando nos convencemos de alguma coisa é por que desconsideramos uma serie de outras possibilidades formuladas e não formuladas. Lidamos com uma estreita e pequena via em um grande labirinto de possibilidades. O melhor que pode nos acontecer é sermos surpreendidos pelo inesperado e ter que começar  tudo de novo. O conhecimento é um trabalho de Sísifo, um meio de administrar o caos através da linguagem. Não é seu objetivo a serenidade de qualquer resposta, mas a multiplicação das questões ao infinito.

A ignorância é a chave do conhecimento. Mesmo que isso pareça um clichê dos mais ordinários.

terça-feira, 16 de outubro de 2018

AFORISMOS SOBRE PERSPECTIVISMO


As evidências são ditadas pelo adestramento do olhar. Apenas enxergamos aquilo que estamos condicionados a enxergar.

O mundo tem sempre o tamanho do nosso conhecimento e a forma de nossas certezas. Tudo se resume a uma questão de perspectiva.

No fundo estamos sempre buscando solução para falsos problemas, pois as respostas sempre são dadas pela própria pergunta.

O mais importante é perceber o mundo sem tomar a si mesmo como medida de todas as coisas.

ECO SISTEMA



O ego é como uma bela e movimentada cidade circundada por densa vegetação e uma praia. A topografia existencial sempre pressupõe  natureza e cultura como opostos complementares. È assim que afetos semeiam os jardins da imanência. Mas o que há de mais interessante nesta paisagem viva são as vias abertas em todas as direções formando um confuso  labirinto através do qual  todos os cantos são interligados. É ele quem mantem pulsante o eco sistema.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

OLHAR ESTRANGEIRO


Há tantas versões de mim mesmo atravessando o tempo naquele que sou através da composição do olhar estrangeiro, que não arrisco qualquer autodefinição. Existo nesta miragem que se apresenta como representação, que nasce da alteridade, do encontro do eu e do outro, mas que não esgota ou define aquele que sou.

Sou apenas um viajante, um naufrago. Nunca importa onde estou, nem  guardo a meta de qualquer possível destino. Tudo é aleatório e provisório, como o próprio olhar do outro que me define.

O QUE É FOUCAULT?



Afinal, o que é Foucault? Penso que já não nos é possível falar de um individuo historicamente determinado, muito menos de uma obra, livros ou da persona de um determinado autor.

Como sugeriu Deleuze, Foucault se apresenta agora como uma caixa de ferramentas, uma multidão ou, simplesmente, utilizando um de seus conceitos, como um intercessor. Foucault é também um acontecimento e um devir. Ele é o intempestivo, uma provocação que nos atravessa no tempo presente como um relâmpago.

O que nos afeta e agencia é um “dispositivo Foucault”, algo que o ultrapassa como corpo sujeito e como teoria, estabelecendo disibilidades e visibilidades na produção de subjetividades.

Pensar e fazer Foucault, utiliza-lo como caixa de ferramentas, é evitar intimidades e fidelidades, é buscar técnicas de cuidado de si, a marginalidade de uma escrita delinquente e descontinua que sempre desafia os limites do tempo presente.

Mas é claro que o “dispositivo Foucault” possui também suas estratificações e homogeneidades totalizantes, suas lógicas de arquivo, suas especificidades ético políticas, mesmo que predomine suas configurações heterotópicas na produção de contra estratégias de saber poder a partir de uma ética do cuidado.

De modo geral Foucault é uma inquietação, um modo de não ser sempre o mesmo, buscando sempre a dobra do mundo, as vertigens de pensamento, a exterioridade da linguagem. É questionar-se sobre o que ainda pode ser a filosofia depois de Kant, sobre o que estamos nos tornando. Abrigar-se sob seus Ditos & Escritos é sempre pensar a vida como obra de arte.


domingo, 14 de outubro de 2018

SOBRE ESCREVER

Escrever para mim é um exercício delicado de subjetivação, é uma forma de cuidado, uma estratégia de individuação. 

Em tudo aquilo que escrevo, escuto um outro. Talvez  esta seja essencialmente a função da linguagem: inventar o não lugar de si mesmo, produzir um estranhamento, que transcende toda comunicação.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

IMANÊNCIA


Escolher como viver é um privilégio,
Um excesso,
Um quase transbordamento.

É encontrar as palavras que faltam
Para inventar um sentimento,
Para dar forma a um afeto,
Que atravessa a consciência.

Assim se define o corpo como lugar de ser,
Como processo ou movimento da múltipla composição de um querer.

O corpo afetado torna-se imagem e experiência de uma opção que nos escolhe.
Mas o que define quem somos é o ato de viver a deriva
Como composição de multiplicidades,
De interioridades e exterioriedades  famintas.
Tudo se encontra e se desencontra na imanência dos acontecimentos.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

SINGULARIDADE


Todos os dias o mesmo corpo,
O mesmo rosto,
E, ao mesmo tempo,
Sou sempre outro
Através dos outros.
A vida se produz através de relacionamentos.
Somos uns e outros,
Ninguém e todos.
Somos  em  singularidades
A metafisica de uma espécie.


quinta-feira, 4 de outubro de 2018

UM ACONTECIMENTO


Pode ser que aconteça amanhã.
Ou depois de amanhã.
Pode ser também que nunca aconteça.
Mas se foi desejado já, de alguma maneira,
Um acontecimento.
Algo que age, que existe,
Dentro de mim.

NOVOS HISTORIADORES


Segue a vida sem qualquer script.
Mas tudo se improvisa de modo pré estabelecido.
Nossos atos e pensamentos estão circunscritos ao previsível.
Nos limitamos ao sempre possível.
Como poderíamos conceber outra forma de existir?
O mundo é o que é desde quando assim nos ensinaram.
Ser e saber  é o que nos resta apenas onde tudo já está dado.
Somos os inventores do passado,

Os inovadores das tradições.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

INTUIÇÃO E DISTRAÇÃO: UM COMENTÁRIO SOBRE BERGSON




“(...) a inteligência e o instinto acham-se voltados em dois sentidos opostos, aquela para a matéria inerte, este para a vida. (...) a inteligência permanece o núvleo luminoso em torno do qual o instinto, mesmo alargado e depurado como intuição, constitui apenas uma vaga nebulosidade. Mas, na ausência do conhecimento propriamente dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá fazer-nos apreender aquilo para que os dados da inteligência são aqui insuficientes e deixar-nos entrever o meio de os completar.”
Henri Bergson

Para Bergson, a intuição é um caminho ou um método que nos permite apreender a mudança dentro da duração que é a própria vida. O passado engloba o presente e o futuro, é algo continuo como uma corrente fluida. A memória é essencialmente duração e a realidade movente só pode ser apreendida pela intuição em sua totalidade e gratuidade.

Desta forma, a metafisica não esta no âmbito da inteligência ou do conhecimento cientifico, pois não busca a construção platônica de objetos limitados pela analise, busca apreender a realidade como movimento e duração. Para tanto é preciso distrair-se das coisas. O real, afinal, é um dado imediato para o qual criamos conceitos. O conhecimento é um ato de criação, premissa que encontraremos também na obra de Deleuze. Distrair-se das coisas é lidar diretamente com a realidade.



terça-feira, 2 de outubro de 2018

O MUNDO AINDA EXISTE?


Acho que o que realmente perdemos foi à experiência de viver em um mundo comum, em um cosmos regido pelo sentido, como um ecossistema legível, como um grande texto vivo onde sabíamos exatamente a linha em que estávamos.

Foi justamente este sentimento de um entendimento que a todos perpassa e  associa em um único acontecimento mudo e intenso,  o que se perdeu para todos nós.  Agora vivemos do medo do outro, dos acidentes naturais e das incertezas do dia a dia mais rasteiro.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

SER É NÃO SER



O  essencial de cada um é invisível aos outros.
Quem sabe  meu mais profundo sentimento de mundo?
Quem conhece  onde eu  escapo a mim mesmo?
Sou aquele que foge,  que cala e interroga.
Não passo de um desconjuntado amontoado de memorias.
Tenho meu tempo, meus lugares e pessoas.
E isso é o mesmo que viver deserto.
O passado consuma o futuro.
O passado está sempre a diante.
Mas não sei dizer onde estou....