A coletânea A SOCIEDADE DOS INDIVÍDUOS é um clássico da literatura sociológica cuja atualidade é cada vez mais evidente. Talvez nenhum autor mais do que ele abordou tão radicalmente o problema do “EU” e dos “NÓS” como essência do problema das sociabilidades humanas...
“... o homem singular depende agora muito mais de si próprio nas decisões sobre a realização das relações, a sua continuação ou o seu termino. No contexto duma permanência menor e de uma maior permutabilidade das relações, constituiu-se uma forma curiosa de hábito social. As estruturas das relações exige, das pessoas individuais, uma maior prudência, formas mais conscientes de auto-regulamentação, uma diminuição da expontaneidade no agir e no falar ao modelar as relações e lidar com elas.
Porém, esta determinação social das relações humanas não apagou a necessidade elementar, que cada um tem de calor irrefletido e de espontaneidade na relação com outras pessoas. Ela não fez desaparecer a necessidade de segurança e constância da afirmação afetiva da própria pessoa por outras pessoas,, nem o seu equivalente, o desejo de estar junto das pessoas de quem gostamos. A elevada diferenciação social que está acompanhada duma variabilidade da pessoa singular igualmente elevada, por uma individualização igualmente elevada, acarreta uma grande heterogeneidade e variabilidade das relações pessoais. Uma de suas variantes com que não é raro deparamos-nos é caracterizada pelo conflito base já mencionado do EU, sem referência ao Nós: uma necessidade de calor afetivo, de afirmação afetiva de e por outras pessoas, associada à incapacidade de dar calor espontâneo de todo em todo. O hábito da prudência e do cuidado na concretização de relações, não sufocou, nestes casos, o desejo de dar e de receber calor afetivo e estabilidade na relação com os outros, mas sufocou a possibilidade tanto de dar como a de receber. Nestes casos os homens não estão a altura das exigências que uma forte afirmação afetiva por uma outra pessoa implica. Eles procuram e desejam esta afirmação, mas perderam a capacidade de a retribuir com a mesma espontaneidade e o mesmo calor, quando se deparam com ela.
Revelou-se que o surto de individuação que podemos constatar, por exemplo nas transformações da associação de parentes, e assim também da família no sentido mais estreito da palavra, tem, em certos contextos, um caráter paradigmático, compreendemo-lo talvez melhor se nos lembrarmos que a associação familiar em fases anteriores constituía a unidade de sobrevivência principal e totalmente indispensável. Ainda não perdeu completamente esta função, nomeadamente no que se refere às crianças. Mas nos tempos modernos, o estado ( e, recentemente,assistência social) usurpou esta, como muitas outras funções da família. Primeiro sob a forma do principado absolutista, depois sob a forma do estado mono ou multipartidário, o nível de integração do estado tem assumido, cada vez para mais pessoas, o papel de unidade de sobrevivência principal, aparentemente indispensável e permanente.”
Nobert Elias. Transformação do Equilíbrio Nós e Eu ( 1987), in A SOCIEDADE DOS INDIVÍDUOS/ tradução Mario Matos. Portugal: Publicações Dom Quixote, 1993, pg. 1228-1229