Se pudéssemos definir os loucos anos 20 do último século através de um único nome, ele certamente seria o do escritor norte americano F S Fitzgerard. Sua obra e biografia ,afinal, personificam intensamente o espírito libertário e contestador daquele período.
Recentemente revisitei um de seus mais saborosos e surpreendente contos: O estranho caso de Benjamim Burtton. Ao contrário do que possa sugerir a idéia de uma vida vivida ao contrário, não se trata aqui simplesmente de um conto fantástico sobre a idéia de envelhecimento. Recheado de um humor tout court, o conto é na verdade uma sátira a própria idéia de “norma” e de “propósito”, questão que perpassa toda narrativa através das desventuras de Burtton para afirmar-se em uma sociedade onde definitivamente ele não tem lugar pelo simples fato de ser “diferente”. Já no inicio da narrativa a reação indignada do pai de Burtton com o estranho caso do filho revela claramente o caráter satírico do texto.
Mas o interessante é que a história é ambientada em 1860, quando
“era do bom nascer em casa. Atualmente os autos deuses da medicina decretaram que os primeiros vagidos do recém nascido devem ser lançados no ambiente anestésico de um hospital, de preferência de um hospital elegante. Assim o jovem casal Roger Button estava cinquenta anos à frente da moda quando resolveu, num dia de verão de 1860, que seu primeiro filho deveria nascer num hospital. Se tal anacronismo teve algo a ver com a surpreendente história que vou contar, é coisa que jamais se saberá.”
( F. Scott Fizgerald. O curioso caso de Benjamim Button e outras histórias da era do jazz. Tradução e ensaio introdutório Brenno Silveira, 8ª edição, RJ : Jose Olympio, 2009, p. 108.)
Mas apesar do humor o pequeno e despretensioso conto em questão não deixa de ter um lado sombrio. Digo isso pela sua melancólica conclusão. Afinal, ao contrario do sugerido pela nossa natural tendência para pensar a juventude como um estado ideal e o envelhecimento como um mal inevitável, O caso Burtton nos mostra que não faria a mínima diferença se em lugar de envelhecer ficássemos cada vez mais jovens. Afinal, não deixaríamos de ser mortais, perecíveis...
Segue seus últimos parágrafos:
“Não havia lembranças perturbadoras em seu sono infantil; não havia sinal algum de seus bravos dias na universidade, os cintilantes anos em que ele aturdira o coração de tantas jovens. Havia apenas as grades brancas, seguras, de seu berço, e Nana e um homem que, às vezes, ia vê-lo, e uma grande bola alaranjada para a qual Nana apontava, na hora vespertina em que ia para cama e dizia: “Sol.”Quando o sol se punha, seus olhos estavam adormecidos: não havia sonho algum que o persiguisse.
O passado- as violentas arremetidas, à frente de seus homens, monte San Juan acima; os primeiros anos de seu casamento, em que, nas noites de verão, trabalhava para a jovem Hildegarde, na cidade fervilhante, até muito depois do pôr do sol; os dias em que ele, antes dessa época, ficava a conversar e a fumar, noite adentro, em companhia do seu avô, na sombria e velha casa dos Button, em Monroe Street- tudo isso havia se dissipado de seu espírito como um sonho inconsistente, como se nunca houvesse acontecido.
Não se lembrava. Não se lembrava sequer, claramente, se o leite era quente ou frio em sua última refeição, ou de que modo os dias passavam. Havia apenas seu berço e a presença familiar de Nana. Depois, já não conseguia recordar coisa alguma. Quando sentia fome chorava- nada mais. Apenas respirava através dos dias e das noites e, sobre ele, havia suaves murmúrios e ruídos que mal ouvia, e odores levemente diferentes, e luz e treva.
Depois tudo se tornou escuro, e o berço branco, e os vagos rostos que se moviam em torno, e o cálice e doce aroma do leite se dissiparam de todo de sua mente.”
( idem, p. 137-8)