terça-feira, 30 de dezembro de 2008

BEATLES E A FILOSOFIA: A ETICA FEMINISTA DO CUIDAR by Peggy J. Bowers.


Dentre os ensaios reunidos na coletânea Beatles e a Filosofia, ELA É UMA MULHER : OS BEATLES E A ETICA FEMINISTA DO CUIDAR de Peggy J. Bowers é singularmente impactante. Ao propor uma leitura dos Beatles a partir da psicologia social de Carol Gilligan e sua “Etica Feminista da Ética do Cuidar” a autora nos constrói possibilidades surpreendentes de interpretações da musicalidade e sensibilidade dos Beatles.
Em seus próprios termos:

“ Embora a principio pareça improvável pensar que a musica dos Beatles articule uma filosofia feminista sistemática, tanto Paul quanto John- após colaborarem mutuamente quase de forma exclusiva durante a carreira dos Beatles- acabaram por entrar em importantes relacionamentos colaborativos com suas companheiras: Linda, no caso de Paul; e Yoko, no caso de Lennon. Embora a musica da banda não seja feminista de forma explícita, uma analise ética do cuidar revela um poderoso subtexto de raciocínio moral que há muito foi associado ao estilo feminino na cultura ocidental. Esse traço da filosofia moral procura subverter a presunção de que os agentes abordam questões morais independentemente do contexto social e relacional. A ética feminista do cuidar surge como um desafio aos modelos masculinos de raciocínio em que os sujeitos emergem isolados das forças sociais que, na realidade, os moldaram. Em vez de desvalorizar os modos femininos de raciocínio, considerando-os inferiores, esse novo modelo procura usar o conceito da ética do cuidar como um meio de reconstruir nosa lógica moral de uma maneira que revele a ilusão do isolamento, tão central no sujeito modernista.
A musica que é tão ressonante na cultura popular, por um período de tempo tão longo, forma percepções, fluindo de contexto para contexto em que infiltra consciência de modos, às vezes, desconhecidos. Os temas abertamente relacionais encontrados na musica dos Beatles revelam uma contracultura moral enraizada na ética do cuidar. O que vem à tona é um drama em que a arte não apenas imita, mas constitui a vida.”

(Peggy J Bowers. Ela é uma mulher: Os Beatles e a ética feminista do cuidar. In Os Beatles e a Filosofia/ tradução de Marcos Malvezzi. SP: Madras, 2007, p.73)


Independentemente de concordar total ou parcialmente com a autora, o fato é que temas como o “amor romântico” nas letras dos Beatles, em suas diferentes fases e momentos, parece transcender muitas vezes o mero clichê, sugerindo de fato a intersubjetividade como interdependência ontológica, como expressão de autenticidade ou busca de modalidades subjetivas de percepção do mundo e realidade que transcendem as normas sociais e convenções através de uma sensibilidade estética bastante incomum. Acredito que a peculiaridade do psicodelismo dos Beatles em grande parte passe justamente por essa representação de vínculos harmônicos e simples entre indivíduos tão clara, por exemplo, na clássica “All You Need is Love”.
Em outras palavras, creio mesmo que existe no patrimônio estético/cultural que nos foi legado pelos Beatles um sentimento e reflexão em torno de uma realidade sócio cultural subjetiva e afetivamente insatisfatória que conduz a uma busca de recosntrução de si mesmo na mínima moraria de mundo privado psicologicamente reconstruido.
Voltando ao ensaio aqui comentado:

“As expressões de pura força emotiva na musica dos Beatles podem ser explosivas. Pense em canções como “Here Comes the Sun” e “Good Day Sunshine”, que retratam a alegria como uma experiência personificada que cria elos sociais. “Here Comes the sun”, em especial, convoca as sensações calorosas da vida quando George conclama seu outro significativo os observar: “litle darling, the smile’s retruing to their faces. Little darling, it seems like years since it’s been here. Here comes the sun. Here comes the sun. Here comes the sun and I say, it’s alright” ( querida, o sorriso esta voltando aos seus rostos. Querida, parece que faz anos desde que ele esteve aqui. Lá vem o sol. La vem o sol, e eu digo, esta tudo bem”). Observe que o elevado sentido da vida é experenciado não apenas pelos pensamentos e sentimentos individuais, mas vendo-os claros nos rostos de outras pessoas, fortalecendo seu senso compartilhado de pertencer.
George, tão famoso por sua guitarra chorosa, estava muito consciente do poder da musica para expressar emoções cruas. Em sua autobiografia ele declara que o que o atraia no sitar e na musica indiana era a habilidade deles em evocar fortes experiências emocionais em determinados espaço e tempo. O namoro dos Beatles com o misticismo oriental e a experimentação com drogas psicodélicas surgiram de um desejo de procurar modos alternativos para o entendimento da natureza do eu.”

(Peggy J Bowers. Ela é uma mulher: Os Beatles e a ética feminista do cuidar. In Os Beatles e a Filosofia/ tradução de Marcos Malvezzi. SP: Madras, 2007, p.75)

NIGHT AND DAY (NOITE E DIA) BY VIRGINIA WOOLF


Noite e Dia, segundo livro de Virginia Woolf, originalmente editado em 1919, ainda não possui as inovadoras características de suas obras de maturidade que a afirmariam, ao lado de Joyce e Pound, como uma das mais fascinantes e revolucionárias escritoras do século XX , ou ainda, uma das principais protagonistas da reconstrução ou redefinição da arte de narrar mediante a superação positiva da concepção tradicional de enredo, de linearidade da ação narrativa e caracterização das personagens.
Mas já encontramos nas páginas dessa saborosa brochura o predomínio da analise psicológica e uma atenção essencial ao fluxo de experiências subjetivas desarticuladas dos indivíduos como própria essência da construção da narrativa.
Através do envolvimento e contraste entre suas duas personagens centrais; a aristocrática Katharine Hilbery e o intelectual liberal Ralfh Lenthalm, penetramos na verdade no cotidiano da sociedade inglesa de inicio do século XX, segundo a autora; marcada pela tensão entre os fantasmas e frustrações da severa era vitoriana oitocentista e a transmutação culturais e de sensibilidades de novo e inquietante inicio de século, definidas, mesmo que parcialmente, pelo movimento feminista, maior autonomia do indivíduo frente a sociedade (democracia) ou a família ( crã) e as complexidades da vida conjugal ( patrimônio).
A característica que melhor define Night and Day de Woolf é justamente o fascinante jogo de contrastes, de claros e escuros nas oposições e tensões permanentes que no fundo definem tambem a própria vida. Lidamos aqui com um sentimento de instabilidade, incerteza ou tensão psicológica articuladores do próprio cotidiano, que só podemos reconhecer definidoras, de outras formas, do nosso próprio inicio de século XXI.
Seja como for, a obra já revela de modo inequívoco, toda a genialidade, sensibilidade, dor e riqueza do imaginário literário construído por Virginia...

REVEILLON

A economia dos anos
Se faz entre perdas
E ganhos,
Em silêncios
Que calam o tempo
Em provisórios balanços
De vida e de sonhos.

Apenas o acaso
Sabe o futuro encenado
No palco do eterno retorno dos anos.
Enquanto reinventamos a vida
No sempre igual
Do desfile dos dias

SOBRE O TEMPO

No imprevisível dos anos
Guardados no tempo
Sabemos estranhamente
Apenas dos dias seguintes.

Estamos sempre
A um passo psicodélico
Do futuro,
Pulando de um dia
Ao outro
Guardados em cores
E paisagens de mundo.

As margens das horas
Jamais nos deparamos
Com o absoluto da vida
Fora do preto e branco
Cotidiano.

Talvez as notas embriagadas
De uma canção
Transformem tudo
Em liberdade...

HUMAN RACE

Entre o grotesco,
O sublime e o erro,
Há um estranho
Parentesco,
Um espaço negro
Onde silêncios revelam
O menos que humano
Que há em nós.
Lá não cabem certezas
Ou bons pensamentos,
Apenas o absurdo
Que define a vida
Em forma pura
E delírios de natureza.

Sometimes
You just have do...
Low to the absurd....

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

THE BEATLES E A FILOSOFIA: NADA QUE VOCÊ PENSA QUE NÃO PODE SER PENSADO


Organizada por Michael Baur e Steven Baur, sob a coordenação de William Irwin, a coletânea BEATLES E A FILOSOFIA: NADA QUE VOCÊ PENSA QUE NÃO PODE SER PENSADO, pode ser interpretada como um convite a uma viagem mágica, corrigindo: uma Magical Mistery Tour que, para alguns fãs da banda parecerá sem propósito ou irrelevante para apreciação da musica dos Fab Four. Eu, ao contrário, considero fascinante e até mesmo lúdica a proposta de “pensar” os Beatles e seu impacto sobre a cultura popular do século XX através da filosofia. A comentada coletânea realmente nos permite compreender de modo mais profundo o porquê dos Beatles serem a maior banda de rock de todos os tempos e, ao mesmo tempo, alguma coisa a mais do que apenas uma banda de rock para grande parte dos seus fãns.
Para mim a musica dos Beatles é o mais perfeito pano de fundo do mais profundo e banal acontecer da vida. Acho sinceramente que eu seria outra pessoa caso nunca houvesse vivido suas canções ou colorido meu mundo com as cores vivas do psicodelismo...
Voltando a coletânea, ao longo de seus nove capítulos (referência a Revolution 9?), aos poucos vamos desvelando relações entre as musicas da banda e os dilemas do seu tempo que, de algum modo, ainda são os nossos. Seja a filosofia do amor hippie e o pacifismo diante de um mundo cada vez mais violento e instável, o dispertar da consciência e o psicodelismo como uma resposta a falência das religiões e da moral tradicional em um mundo cada vez mais complexo ou ininteligível, a aceitação e aprendizado positivo da cultura do consumo frente a nossa busca de autenticidade e individualidade, dentre outras questões.
Considero um dos mais interessantes ensaios desta obra o composto por James Crooks PEGUE UMA CANÇÃO TRISTE E FAÇA-A MELHORAR: OS BEATLES E O PENSAMENTO PÓS MODERNO.
Ler os Beatles através das lentes da Pós modernidade não é absolutamente um despropósito. Afinal, existem paralelos possíveis, por exemplo, entre o aguçado senso de humor da banda e a recusa de metas narrativas pelo pós moderno que se traduz no irônico e sarcástico ou quase, de fato, “egocentrismo bufão”. Que importa?

“Mas os filósofos pós modernos precisam ser sérios? Parte da magia da meta narrativa dos Beatles é a adaptação ininterrupta daquilo que denominei antologia “deixe-me de fora” por um mais amplo deleite “inclua-me” no mundo que dá boa vinda às coisas tolas, como uma piada entre amigos. A atitude fica evidente em quase todas as entrevistas concedidas a uma imprensa ansiosa e sem fôlego, durante o período da Beatlemania ( Repórter: “ O que você pensa a respeito de Beethoven?” Ringo: Eu adoro-principalmente seus poemas”), no capricho infantil de canções como “Yellow Submarine”, “Octopus’s Garden” e “Bungalow Bill”, e na gentil paródia de outros gêneros em “When I’m 64”, Your Mother Sahould Know”, Honey Pie”, e “Back in the USSR”. Os Beatles dão voz aos modos de jocosidade e ironia em um sentido amplo, de maneira tão hábil e abrangente quanto o fazem com os da alienação- incluindo aquele audível com clareza nas obras de Jacques Derrida ( 1930-2004), e outros para quem a alternativa ao efeito “Nowhere Man”, que persegue a critica hiper-seria do pensamento moderno, é a “desconstrução”.
O exemplo aqui é “Glass Onion”. No fim da década de 1960, a banda queria desencorajar a legião de fãs que interpretava as letras das canções como algum tipo de código cósmico. Jhon faz isso em Glass Onion” com uma releitura de algumas de suas próprias letras anteriores, definindo-as como vôos de imaginação. Isso, por sua vez, produz uma forma genial de autoconsciência artística. As próprias palavras renunciam aos poderes atribuídos a elas. O processo criativo se torna transparente por completo- como muitas camadas de vidro. Derrida e seus seguidores querem margear os perigos da filosofia moderna, provocando uma percepção similar. Para eles, como para John, a linguagem é jocosa. O que ele nos dá, na verdade não é uma representação de identidades estáveis ( objetos, “eus”, instituições e estados), mas o fluxo primordial da não-identidade- o nada ou abismo- de onde as identidades emergem.”
O trabalho do pensamento pos moderno, nessa visão, consiste em enfraquecer e desmanchar todas as formas discursivas nas quais os códigos cósmicos ou significados determinados de qualquer tipo- máscaras da indeterminação original da linguagem- se acomodam. Entre eles, com certeza, estão os valores e métodos do pensamento revolucionário tradicional mas também uma série de relações opositoras mais abrangentes, que todos os pensadores anteriores teriam considerado axiomáticas: argumentos contra a livre associação; autor versus leitor; texto versus mundo. A desconstrução retira essas oposições Sob o regime delas, a escrita filosófica pós-moderna se torna uma colcha de retalhos de trocadilhos e etimologias, piadas, citações e comentários expandidos, cujo objetivo consistente é dissolver toda a importância determinada em um jogo de palavras, para produzir no meio do pensamento um “efeito Glass Onion”.

(James Crooks. PEGUE UMA CANÇÃO TRISTE E FAÇA-A MELHORAR: OS BEATLES E O PENSAMENTO PÓS MODERNO, in Os BEATLES E A FILOSOFIA: NADA QUE VOCÊ PENSA QUE NÃO PODE SER PENSADO. ( Coordenação de William Irwin)/ tradução: Marcos Malvezzi. SP: Editora Madras, 2007, p. 183-184)

Mas, definitivamente, para se avaliar o valor desta coletânea e a aparentemente estranha proposta de pensar The Beatles através da filosofia, nada mais pertinente do que as seguintes palavras de Richard Falkenstein e John Zeis em QUARTETO COM UMA DIFERENÇA:

“ O que há nos Beatles que os faz únicos na história da música popular? Embora os tentáculos de sua influência se estendam para muitas outras áreas da cultura popular além da música, é pura e simplesmente sua musica e rápida e evolução que fundamentam o proeminente status da banda na musica popular. A música dos Beatles, como toda a grande forma de arte, é importante porque revela certas verdades básicas sobre quem e o que somos como seres humanos e as quais coisas damos valor absoluto. E, se isso estiver certo, uma discussão a respeito das música da banda e da filosofia nela incorporada não é um mero exercício de analise teórica, mas um instrumento prático e útil para aumentar nossa apreciação da própria música. Isso não significa que a estética filosófica que este ensaio atribuirá a musica dos Beatles seja algo do qual eles estavam conscientes, ou com o qual concordariam em retrospecto. Mas assim como as partituras de gravações produzidas por Hal Leonard ( que nem mesmo eles conseguiam ler) melhora o entendimento e a apreciação da musica dos Beatles para aqueles que conseguem lê-las, sua filosófica também o faz em outro nível de abstração.”

(Richard Falkenstein e John Zeis. QUARTETO COM UMA DIFERENÇA, in Os BEATLES E A FILOSOFIA: NADA QUE VOCÊ PENSA QUE NÃO PODE SER PENSADO. ( Coordenação de William Irwin)/ tradução: Marcos Malvezzi. SP: Editora Madras, 2007, p. 227-228 )

Por tudo o que aqui foi dito e citado, creio que posteriormente precisarei desdobrar esta resenha dialogando mais profundamente com o livro a partir de minha leitura pessoal e intima dos Beatles...
.



BEATLE POEM


Procuro cores em movimento
Em qualquer canção dos Beatles
Para existir por longos instantes
No mais profundo da vida.

Jogado no mundo
Não busco no fundo
Nada mais que isso...
Supondo o próprio mundo
Como algo mágico e oculto
Em meu múltiplo intimo.

Across the universe
Decomponho frases
Até descobrir
No sumo de cada palavra
Cores de coisas vivas
Que sem preciso significado
Ou motivo
Apenas acontecem
Entre imaginações e infinitos.
A day in the life...

NOWHERE MAN

Talvez tudo
Que eu faça ou diga
Não passe de vazio aberto
Entre nexos e significados
Inerentes ao fato
De que em tudo
Aos poucos passo
Ou me rasgo
Em cada palavra
Em busca de atos
Abstratos e rasos
Armados em vida
E despedaçados...

Nowhere Man....
I call your name...

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

STANLEY KUBRICK E LARANJA MECÂNICA ( CLOCKWORK ORANGE)


Creio que poucos diretores foram capazes de traduzir em linguagem cinematográfica o espírito de uma época, ou seja a atmosfera da segunda metade do século XX, marcada por incertezas, violências, medos e questionamentos, do que Stanley Kubrick ( 1928-1999).
Famoso pelo seu perfeccionismo, pelo caráter recruso, o “mestre das marionetes” construiu através de seus filmes uma estética que influenciaria decisivamente o olhar cinematográfico, alem de nos conduzir a um questionamento da própria condição humana com seu ceticismo ilimitado.
Nascido em New York, Kubrick produziu seus primeiros trabalhos nos estados unidos ao longo dos anos 50 do ultimo século. Destacam-se nesse período seu primeiro longa Fear and Desire ( 1953), A Morte passou por perto (1955), o Grande Golpe ( 1956), Gloria feita de Sangue ( 1957) e seu polêmicio Spartacus ( 1960).
Mas foi após mudar-se para Inglaterra em busca de um ambiente cultural mais compatível com seu temperamento e cansado da censura enfrentada nos Estados Unidos, que produziu seus trabalhos mais relevantes e fascinantes. Destaco aqui apenas aqueles que me marcaram: 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971), O Iluminado ( 1980), Nascido para Matar (1987) e seu último filma De Olhos bem Fechados ( 1999).
Mas caso me fosse solicitado para eleger um dos seus trabalhos para representar o conjunto de sua obra escolheria sem pestanejar Clockwork Orange ( Laranja Mecânica).
Adaptação do romance de Anthony Burgess (1917-1993), o filme é essencialmente um tratado sobre a violência e a natureza humana. A transgressora violência do individuo, instintiva é contraposta a bem intencionada violência de Estado, para qual os direitos do próprio indivíduo, são “relativos”.
Assim temos de inicio as ações de Alex DeLarge (Malcolm McDowel) a frente de sua gangue de delinqüentes, os droogs (palavra originária do russo druk, amigo)** em uma Inglaterra futurista de grandes conjuntos habitacionais e precário ordenamento social. O gosto pela musica clássica do personagem, amante de Beethoven e especialmente sua 5º Sinfonia, sugere também uma promiscua relação entre civilização e barbárie que perpassa toda a narrativa. Em um segundo momento, de cruel algoz, Alex torna-se vitima do sistema e da sociedade através de um programa experimental, para corrigir seu comportamento violento e transgressor, que nada mais é do que uma lavagem cerebral. Seu caso acaba transformando-se em arma política partidária em mesquinhas disputas de poder das quais o personagem acaba sabendo tirar proveito com significativa eficácia.
Censurado no próprio Reino Unido e em muitos paises após o seu lançamento em 1971, Laranja Mecânica é ainda hoje considerado um filme demasiada e assustadoramente violento. Mas a violência aqui é mais alegórica do que realista, articulando uma narrativa bizarra, cruel, cômica e psicodélica que nos desafia a encarar a face absurda do mundo em que vivemos e os abismos da própria condição humana. Ainda somos de muitas maneiras contemporâneos dessa perturbadora obra.


* Kubrick era um devorador de livros. Não por acaso, boa parte de seus filmes são adaptações de obras literárias. Nem sempre compreendidas pelos autores...

** Alex se expressa inicialmente através do "Nadsat", um "idioma" que mistura o russo, o inglês inventado por Burgess .

CRÔNICA RELÂMPAGO XLII


Quando somos arrancados da rotina, seja através da experiência única de uma viagem ou dos imperativos de uma doença grave, nosso cotidiano torna-se de repente tão irreal e fugidio quanto a lembrança de um sonho banal.
Ocorre, assim, uma espécie de desencontro de nós mesmos no aprendizado da individualidade dos lugares que nos envolvem oferecendo novidades e desafios. Nestas circunstâncias tudo parece maior do que realmente é, percebemos o quanto os espaços físicos e atos corriqueiros na verdade configuram referências ontológicas que também nos definem como indivíduos, seja pela recusa ou pela aceitação.

TIME AND RAIN

Eu amo a chuva
E o vento
Como quem sabe
A alma de um dia frio.

Sinto o silêncio,
A serenidade dos lugares
E objetos
fechados em tempo nublado.


Tudo parece
Mais intenso e vivo
No aconchego abstrato
De horas cinzentas.

É como se de repente
Todas as coisas existissem
Na suavidade de meus silêncios.

NADA

Nada me leva
A nada,
Como se o dia
Fosse apenas
O esforço
Mecânico e inútil
De ser entre o céu
E a terra,
Entre dias e noites,
Até o cansar do tempo.

Tudo é inútil movimento
Na soma aleatória de acontecimentos
Abandonados ao chão frágil de cada biografia.

Nada me leva
A nada.
Mas o nada
Nunca é vazio...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

METALLICA E A FILOSOFIA: O CLUBE EXISTENCIALISTA E O SENTIDO DA VIDA


Dentre os ensaios reunidos em METALLICA E A FILOSOFIA merece destaque A MILICIA DO METAL E O CLUBE EXISTENCIALISTA de Jemery Wisnewski que a partir de um dialogo com o existencialismo de Albert Camus, J P Sartre, Heidegger, e algumas letras da banda, aborda o tema do sentido da vida e o absurdo que é a existência humana e nossas respostas pessoais a esse mesmo absurdo.

Afirmar que o Metallica é uma banda existencialista, como faz o autor, significa também afirmar que em sua recusa niilista do real ela nos oferece o desafio de uma escolha, de uma alternativa de sentido e significado que impõe-se na medida em que nos descobrimos e construímos como indivíduos. Em outras palavras:

“ O existencialista desafia o absurdo. Criar uma vida significativa apesar da falta de sentido intrínseca da vida- esse é um ato heróico. Nós devemos encarar a vida como arte- escolher a participação em projetos que não tenham valor intrínseco simplesmente porque podemos. Em um mundo desprovido de qualquer significado transcendental, devemos inventar o nosso significado. É a tentativa de criar significado, sentido, diante do absurdo que domina Kill’Em All, do Metallica.”

(Jeremy Wisnewski. A Milícia do metal e o Clube Existencialista. In Metálica e a Filosofia; Um curso intensivo de cirurgia cerebral/ tradução de Marcos Malvezzi SP: Madras, 2008. p.67 )

Entretanto, o mais existencialista dentre os álbuns iniciais do Metallica talvez seja Ride de Lightning e sua atmosfera apocalíptica. Retornando ao texto citado:

“Um tema recorrente na musica inicial do Metallica- mas principalmente em Ride the Lightning- é a inevitabilidade da morte. As canções deste álbum servem a um propósito existencialista: elas revelam a finitude humana, o fato de a vida chegar a um fim inevitável. A unicidade da morte de cada indivíduo serve para distinguir um ser humano do outro. O filósofo Martin Heidegger ( 1889-1976) afirmava que a morte é a única coisa que os seres humanos precisam fazer sozinhos. E por causa disso, a morte individualiza as pessoas. Quando percebo que só eu posso morrer minha morte, Heidegger diz, reconheço que sou fundamentalmente diferente de você. Nossa morte iminente nos obriga a ver que somos indivíduos- que a nossa existência não pode ser reduzida à existência da multidão.”

( Idem p.68 )

Entre a morte, o absurdo do mundo e as letras do Metallica, surge um complexo cenário de pensamento onde o pano de fundo é nossa própria existência, nossa incessante busca por algum significado em um mundo sem sentido. Esse significado, entretanto, é necessariamente nossa própria singularidade, nossa individualidade em construção e desconstrução permanente ao sabor do tempo. Se não há caminho que nos leve para fora do absurdo que é o mundo, das angustias que nos povoam, resta-nos, entretanto, a alternativa da autenticidade. As escolhas que fazemos sem o conforto das convenções morais ou o peso das tradições culturais,os compromissos assumidos com nossa própria e complexa subjetividade e suas conseqüências, são tudo o que ainda nos faz de algum modo sentir a presença real de um rosto.
Complementando essa perspectiva, em METALLICA, NIETZSCHE E MARX: A IMORALIDADE DA MORALIDADE, Peter S. Fost nos lembra a questão da “falha de Deus” ( God that failed), e os limites de uma resposta religiosa

“Em canções como Leper Messiah e God that Failed Metallica acusa a religião de falha moral e, com isso liga-se a uma tradição filosófica que remonta a pensadores como Voltaire, Hume, Lucrécio, Sócrates e Xenofanes. De acordo com esses filósofos, o que as religiões prescrevem como moralmente “bom” é, na verdade, moralmente ruim ou errado. O que as religiões afirmam ser “correto” é, ao contrário, corrupto. O que elas descrevem como “piedoso”, é , na verdade, perverso. O que apresentam como a “verdade” é um engodo. Já que a religião tem um efeito tão grande nas idéias costumeiras acerca da moralidade em nossa sociedade, o que passa por moralidade costuma ser, de fato, um emaranhado pútrido de i moralidade”.

(Peter S. Fost. Metallica, Nietzsche e Marx: A imoralidade da moralidade. In Metálica e a Filosofia; Um curso intensivo de cirurgia cerebral/ tradução de Marcos Malvezzi SP: Madras, 2008. p.83 )

Mas a critica a religião é também uma critica a idéia de verdade, o que nos leva a assumir a ontológica incerteza que define a condição humana, o que é também qualquer espécie de meta existencialismo...
Cabe, portanto, para finalizar este texto, reproduzir aqui um fragmento do ensaio CRER E ENGANAR: METALLICA, PERCEPÇÃO E REALIDADE de Robert Arp:

“ Eu adoro berrar estas palavras do primeiro verso de “Bad Seed”: “ Come clean/ Fess up/ Tell all/ Spill guts/ Off the veil/ Stand revealed/Show the card/Bring it on/ Break the seal” [ Venha limpo, fale tudo, ponha tudo para fora. Tire o véu, e se revele. Mostre a carta. .Venha com tudo. Quebre o lacre]. Quando acabo de berrar, geralmente eu penso na diferença entre o modo como percebo as coisas, o que esta velado, e como as coisas são de fato, como é a realidade, o que é revelado. No que consiste a “realidade” de uma pessoa? A realidade é apenas “meu mundo”, minha coleção de percepções e idéias, ou será que existe um mundo fora de mim? Se existe uma realidade alem de minhas percepções, eu quero estar seguro em meu conhecimento da realidade. Assimn como Hetfield, eu quero saber “Is that the moon/ or just the light that lights this dead end street?/Is that you there/or just another demon that I meet?” [ Aquela é a lua, ou é só uma luz que iluymina essa ruía sem saída? É você que esta aí, ou mais um demônio que eu encontro?].

( Robert Arp. Crer e Enganar: Metallica, percepção e realidade. In Metálica e a Filosofia; Um curso intensivo de cirurgia cerebral/ tradução de Marcos Malvezzi SP: Madras, 2008. p.163 )

KISS-ME

Meus lábios vazios
Aprenderam a sonhar
A meta realidade
Do acontecimento de um beijo,
Ao vislumbrar o labirinto
Do segredo vivo das sensações
Simples,
Até o limite hibrido
Entre a verdade e o sonho
Alem de toda fantasia.

Nas profundezas do saber o corpo
Saboreio pensamentos soltos
Que atualizam a falsa crença
Na criança que fui um dia.

WONDERLAND


Sei que não sou eu
Aquela pálida face
Que me observa
Sem saber sequer que existo
Ou existe.

Surpreendo,
Na superfície do espelho,
Um rosto quase meu,
Provisório,
Completamente em silêncio
No traço duro, sem expressão,
Talhado por algum nada,
Quase absoluto.

Visitante, talvez,
De alguma outra
Paralela e simétrica
Realidade
Onde,
Vazio de mim mesmo,
Eu viva a vida unicamente
Na objetividade precária
Do mundo.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

METALLICA E A FILOSOFIA...


Uma obra realmente indispensável à estante de qualquer amante do rock e, especialmente, a dos fãs ns do Metallica, é a original e fascinante coletânea organizada por William Irwin, Metallica e a Filosofia: Um curso intensivo de cirurgia cerebral. O organizador, professor associado de filosofia em King’s College, Pensilvana, notabilizou-se pela edição de trabalhos coletivos que, tais como este, aproximam os temas e questões clássicas do pensamento filosófico do vasto e complexo universo de nosso imaginário contemporâneo. O melhor exemplo talvez seja a também coletânea Matrix: Bem vindo ao Deserto do Real ou Seinfeld e a Filosofia.
Falando especificamente desta coletânea, dedicada aquela que pode ser considerada a maior banda de Heavy Metal ainda em atividade nos Estados Unidos, a primeira coisa que chama atenção é que pelo rigor e espontaneidade dos textos e a coerência com que os autores aproximam as letras do Metallica de questões filosóficas complexas como a falta de sentido da existência e sua resposta existencialista, ou a complexa filosofia moral de Kant, pode chamar atenção até mesmo de potenciais leitores que não tenham diretamente qualquer afinidade ou interesse pela musica do Metallica.
O livro é dividido em cinco "discos": O primeiro, “Seguindo através do Nunca” reúne ensaios dedicados a uma quase apresentação da banda e sua mensagem, abordando temas como a rejeição positiva e necessária das virtudes cristãs, alcoolismo, loucura, mas acima de tudo, auto afirmação. Já o segundo "disco" Existensica: o encontro do Metallica com o Existencialismo, dispensa qualquer apresentação. O considero o melhor de todo o livro, especialmente pelos brilhantes ensaios de Jemery Wisnewski “A Milícia do Metal e o Clube Existencialista” e o de Philip Lindholm “ A Luta Interior: Hetfield, Kierkegaard e a busca pela autenticidade”. O terceiro "disco", “ Viver e morrer, rir e chorar”, nos conduz a questões espinhosas como suicídio, eutanásia e pena de morte, enquanto o quarto “ Metafísica, epistemologia e Metallica” nos confronta com temas como o da relação mente corpo, percepção da realidade e identidade. Por fim, o quinto "disco", Fãs e a banda, é dedicado mais diretamente a relação da banda com seus fãs sem entretanto cair na mera apologia gratuita e passional.
O maior valor dessa desafiadora brochura negra é o de nos induzir ainda hoje a explorar o vinculo vital ao rock clássico dos anos 60, entre algo que poderíamos chamar de Contra Cultura, a filosofia formal e o Rock enquanto uma matriz cultural permanente associada as inquietudes e questionamentos do individuo frente as convenções e conformismos que em maior ou menor medida condicionam a existência de cada um nas tantas redes de sociabilidades que definem as pós sociedades do mundo contemporâneo.

PERSONAL POEM

Vejo em seus olhos
Todas as coisas do mundo.
Pois o amor
É pródigo em enganos
Quando a razão
Se rende a emoção.
Mesmo assim,
Queria eterno esse
Momento,
Onde
Pela certeza dos corpos
Percorremos
Incertezas de pensamento
Até o ponto
De saber o mundo
Lá fora
Como mera ilusão...

GREEN POEM

A Lua
Ainda espia florestas
Enquanto o sol
Supera o horizonte.

O verde dança
Entrelaçado com o vento
A suave melodia das pequenas coisas.

Pedras contemplam a eternidade
Em estranhos e silenciosos diálogos.

O mundo parece tão simples
Quanto o ar que respiro
Na linguagem viva
Das sensações do corpo
Sem qualquer pensamento
Ou rosto.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O CORPO COMO MEDIDA DE TODAS AS COISAS HUMANAS


“Desse mundo físico, em si mesmo desinteressante o homem é parte. Seu corpo, como qualquer outro tipo de matéria, é composto por elétrons e prótons, que, até onde sabemos, obedecem às mesmas leis a que se submetem os elétrons e prótons que não constituem animais e plantas. Alguns sustentam que a fisiologia jamais poderá ser reduzida à física, mas seus argumentos não são muito convincentes, de sorte que parece prudente supor que estejam errados. Aquilo que chamamos de nossos “pensamentos” Prece depender da disposição de trilhos em nosso celebro, do mesmo modo que as jornadas dependem de rodovias e das estradas de ferro. A energia utilizada no ato de pensar parece ter uma origem química; por exemplo, uma deficiência de iodo fará de um homem inteligente um idiota. Os fenômenos mentais parecem estar intimamente vinculados a uma estrutura material. Se assim é, não podemos supor que um elétron ou um próton solitário seja capaz de “pensar”, seria como esperar que um indivíduo sozinho pudesse jogar uma partida de futebol. Tampouco podemos supor que o pensamento individual possa sobreviver à morte corporal, uma vez que ela destrói a organização do cérebro e dissipa a energia por ele utilizada.”

(Bertrand Russell No que Acredito/ tradução de André de Godoy Vieira. Porto Alegre: L & PM, 2007, p. 31)




Raramente nos damos conta do quanto a vida é essencialmente determinada pela carne e pelo sangue, o quanto somos essencialmente nosso corpo físico, que não é apenas cede do desejo, do prazer, da necessidade e da dor, mas a medida de todas as coisas humanas, a começar por aquilo que concebemos como realidade.
A tradição judaico cristã, uma das matrizes do imaginário ocidental, fundamenta-se, entretanto, justamente sob a recusa do corpo e do mundo material em beneficio de um ideal vago e abstrato de espiritualidade. Mas tal tradição hoje em dia foi de muitas maneiras ultrapassada pelos novos saberes constituídos pelas ciências medicas/biológicas cuja aplicabilidade no cotidiano complexibilizou consideravelmente nossas representações e experiências do corpo e suas dinâmicas. Nosso corpo já não é mais uma silenciosa sombra opaca, como se manteve na cultura ocidental até, pode-se dizer, o séc. XIX. Tornou-se, ao contrário, objeto de atenções e cuidados, de uma estética e disciplina, que pouco a pouco promovem a superação de suas representações como um mero objeto, como algo externo ao nosso “eu”, para transformá-lo em sujeito, como aquilo que essencialmente somos.
A importância de tal reconfiguração cultural mostra-se decisiva para redefinição do locus do indivíduo, especialmente no caso da afirmação dos direitos das mulheres, quando pensamos na descriminalização do aborto como condição da conquista do livre arbítrio e dominio sobre o próprio corpo em exercicio de subjetividades, escolhas e vivências.

TEMPO E INSTANTE

No cotidiano rito
De vestir rotinas
Bebo as horas,
Escrevo-me em devaneios
Até o limite do mero estar aqui e agora.


Sinto que em tudo
Passo,
Que me faço passado
Em cada ato de certeza e futuro.

Quanto maior
O tempo
Acumulado no corpo
Menor se torna
A certeza no rosto.

Que importa?
Em meu presente
Sei todos os tempos vividos
No eterno sabor de um instante
magico e infinito.

A ROTINA PELO AVESSO

Respiro um descartável céu azul
Na gratuita manhã
Que me impõe a vida.

Sei de antemão
o dia que terei...

Mas pequenos fatos visitam-me
Como uma brisa fresca
No calor da rua
Sussurrando o imprevisível....

Apreendo o nada
Que será
Amanhã