terça-feira, 7 de agosto de 2007

METAFÍSICA DA CHUVA

A mansidão de um dia de chuva
escreve-se em mim
como uma preguiça de alma,
como um querer esquecer,
esquecer-me,
quase sonhar,
até que todos os sonhos se esgotem
no absoluto de qualquer acordar.
Desejo de um instante estático e eterno
sem ontens ou amanhãs
a vestir a vista com inalcançaveis horizontes.
Como se fosse possível saber apenas da calma
que dorme sobre os telhados molhados,
o sabor de cada gota perdida de chuva
sobre a praça vazia em paz de finados.
Como se eu
estando entre todas as coisas
pudesse perceber apenas as coisas
e não gritar tão alto
ao espaço em branco
do outro lado da alma.

UMA OUTRA HISTÓRIA DAS FORMAS LITERÁRIAS...


Corpo versus Imprensa: Os meios de Comunicação no Início do Período Moderno, Mentalidades no Reino de castela e Uma Outra História das Formas Literárias, in Gumbrecht, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. SP: Ed.34, 1998, p. 67-108.
Neste ensaio inegavelmente original, HANS ULRICH GUMBRECHT sugere, uma conexão profunda entre o advento da imprensa e a definição da consciência enquanto espaço de significação e construção da subjetividade. Cabe esclarecer que o objetivo deste autor é a formulação de uma História das Formas Literárias, a partir de u O m estudo de caso: O Reino de Castela. É inicialmente na Espanha do séc. XV que, segundo GUMBRECHT, a substituição dos manuscritos em pergaminhos por livros impressos permitiu um deslocamento da mentalidade da época na medida em que esse novo meio de comunicação imprimiu-se na relação mantida entre as pessoas com os seus corpos, com a sua consciência e com as suas ações. Em outras palavras, a imprensa triunfante transferiu para a escrita a função principal de representar sujeitos na ausência de seus corpos alterando radicalmente o status da escrita e da consciência, ou seja, permitiu um deslocamento da cosmologia que definia a mentalidade medieval ao estabelecer uma cisão entre corpo e consciência, iniciando uma transição para aquilo que hoje identificamos como vida cotidiana.
O desenvolvimento do vernáculo em língua escrita associou-se a formação de um novo espaço social e comunicativo, fundamentalmente urbano, onde o sentido cosmológico dos fenômenos não era mais experimentado como auto evidente e intrínseco aos próprios fenômenos. Além, disso, com o impresso, o corpo humano foi aliviado de sua condição de veículo de constituição e fonte de sentido, papel transferido para o autor do texto que, a partir de então, torna-se responsável por um “sentido intencional” da obra. Tal intencionalidade, concebida como um ato individual, pressupõe, evidentemente, um certo deslocamento do ego para o centro da consciência tanto quanto uma redefinição do conceito de autor e da posição do homem no mundo e no universo.
Para GUMBRECHT, no plano epistemológico, com esse novo papel do autor, tem início a era do homem como intencionalidade. Podemos evidentemente tomar a filosofia Neo-Platônica Florentina como exemplo significativo deste processo, bem como associá-lo ao impulso para os descobrimentos marítimos. Afinal, compreender a mudança radical no destino espanhol no século XV, segundo o autor ora citado, pressupõe entender a profunda articulação entre meios de comunicação e mentalidades e, em meus próprios termos, a redefinição da imagem coletiva do Antrophos, do humano genérico através da construção de uma consciência individual como fonte de sentido e significado decorrente disso, pois,
“Alguém que é capaz de experienciar somente a consciência como fonte de sentido é capaz de imaginar o passado e o futuro como distintos do presente, e não precisa descartar a possibilidade, a exemplo de Isabel de Castela e, ao contrário do rei de Portugal, de que um visionário algo andrajoso originário de Gênova talvez seja capaz de encontrar um caminho mais rápido para as Índias.Esse foi um fator importante no apoio de Isabel à viagem de Colombo.” ( Hans Ulrich Gumbrecht. Modernização dos Sentidos. SP: Ed.34, 1998, p.89.)
Fernando e Isabel, no contexto ibérico, representaram a emergência de uma primeira subjetividade moderna, pois,
“...eles não só eram patronos da imprensa, mas sabiam, eles próprios, ler e escrever, algo bastante raro entre reis medievais; com efeito, fundaram uma Academia, dirigidas por um Humanista italiano, sob o princípio de que ler e escrever não só seria desfavorável ao serviço militar e a valentia cavaleiresca como podia mesmo servir a um propósito útil.”( Idem, p. 88.) .
Nada disso invalida a tese da vocação para o arcaísmo que marca a cultura ibérica e lhe cancela a tendência à modernidade e ao futuro. Como o próprio GUMBRECHT observa, a partir da segunda metade do séc. XVI há um declínio quantitativo na produção de livros impressos na Espanha, em contraste com os outros paises europeus. Também cabe considerar a ação da Inquisição durante o Regime de Fernando e Isabel. Indo além da formalidade da conversão de judeus e mulçumanos,
“... os novos inquisidores desejavam investigar e controlar o fundo da consciência do convertido, não compreendendo, como nós atualmente, que cada passo investigativo rumo a consciência dos outros é potencialmente uma trilha em direção a infinidade. Por isso, eles somente podiam descansar quando o pior estivesse confirmado, quando os conteúdos da consciência tivesse, sido “confessados” sob tortura, conteúdos talvez nem mesmo pertinentes aos hereges lançados à fogueira.” ( Idem, p.90)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

SOBRE A ALQUIMIA OCIDENTAL: BREVES APONTAMENTOS DE PESQUISA


A efervescência cultural do sec. XII assentada na redescoberta do saber laico da antigüidade, na revitalização do folclore através da literatura culta e do surgimento das primeiras universidades, pouco a pouco originaria uma nova imagem de mundo que estabeleceria definitivamente a Idade Média como o cadinho onde se gestariam todas as transformações futuras da cultura ocidental. A alquimia era uma das mais expressivas tendências deste “novo mundo” que timidamente se esboçava. Como é sabido, ela compreendia duas dimensões distintas e indissociáveis: a operatio (operação), realizada em laboratório mediante experimentos com corpos químicos, e a theoria ou filosofia hermética, que pressupunha não somente a leitura dos “filósofos”, mas também aquilo que os alquimistas entendiam por meditatio e imaginatio.
Em linhas gerais, a atividade química prática jamais foi inteiramente pura entre os alquimistas. Sua arte era apenas em parte concebida como natural, pretendendo enfaticamente o estatuto de divina e sobrenatural. É esta peculiaridade, inconcebível para a ciência experimental moderna, que permitiu JUNG compreender a praxis alchimica em termos de projeções psíquicas.
Os alquimistas estavam convencidos de que os processos químicos e materiais coincidiam com fatores espirituais, o que estabelecia uma identidade, em grande parte inconsciente, entre a psique do alquimista e as substâncias com as quais boliam e pretendiam transformar. Era um pressuposto básico do seu empreendimento a existência de uma verdade nas coisas naturais que escapava aos cinco sentidos e só poderia ser apreendida pela mente. Tal convicção é perfeitamente traduzida pela diretriz teórico – prática do opus magnum : a redenção do cosmos e não apenas do “homem decaído” como estabelecido pela mitologia cristã hortodoxa. Aliais, o próprio divino, enquanto um mistério que habita a matéria, o spiritus mercurius, torna-se objeto de redenção. Sua libertação é traduzida pela imagem do corpus glorificationis, do filius macrocosmi ou da pedra filosofal. O que estas imagens tentam traduzir é um dado estado ideal da matéria, ou da Natura Mater, onde todos os elementos tornam-se coesos e afins a ponto de revelar ou libertar uma outra natureza, uma propriedade misteriosamente divina, oculta no mundo físico e sujeita a utilização humana.
ETERNIDADE
A eternidade
é mais leve
que este presente instante.
É quase nada,
apenas imagem
perdida no fundo das horas
onde nos descobrimos
objetos
de nossa fome de infinito...
onde queremos o tudo
do nada que somos.
***************
ONTOLOGIA DAS COISAS
Sinto que habito
a existência
das paredes, roupas
e objetos
que me definem
a intimidade.
Sei que vivo
um pouco da vida
das coisas
que me povoam
dia após dia
na sinfonia das horas.
Como se a vida
fosse a paisagem sem tempo
de um quadro antigo
onde tudo fala e compõe
uma só imagem
dentro d'alma.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

LITERATURA INGLESA II



William Blake ( 1757-1827) foi inequivocamente um artista único e singular na arte de combinar palavra e imagem, filosofia e teologia, individualidade e sociedade, na afirmação da experiência máxima de sua subjetividade no explorar da condição humana.
Poucos escritos poéticos possuem a intensidade e riqueza imagética de sua grande obra, “O Matrimônio do Céu e do Inferno (1790), cujos versos introdutórios já revelam a complexidade do jogo de opostos ao qual o autor nos lança...
Limito-me aqui, entretanto, a uma questão específica unipresente em sua obra: a coincidentia oppositorum estabelecida pelo autor entre alma e corpo, sensualidade e espirutualidade, que unifica contraditóriamente sua construção verbal/poetica/imagética,ou seja, a maior parte dos seus escritos e gravuras.
Blake pode ser definido como o poeta da coincidentia oppositorum que integra o homem ao cosmos, a vida a poesia,no fluxo infinito e múltiplo da existência e seu mistério.
Deixando falar o próprio Blake:

UMA VISÃO MEMORÁVEL
“ Enquanto caminhava entre as chamas do Inferno, delicado com os prazeres do Gênio, que os Anjos tomam por tormento e loucura, recolhi alguns de seus Provérbios, pensando que, assim como os seus adágios de uma nação expressam seu caráter, os Provérbios do Inferno revelam a natureza da sabedoria Infernal melhor que qualquer descrição de edifícios e vestuários.
Voltando para casa: no abismo dos cinco sentidos, onde uma encosta íngreme e sem relevos reprova o mundo atual, avistei um poderoso Demônio envolto em nuvens negras, pairando sobre as vertentes do penhasco: com chamas corrosivas, ele escreveu a seguinte sentença, captada agora pelas mentes dos homens & por eles lida na Terra:
Como sabeis que cada Pássaro que fende os ares não é um imenso mundo de deleite, encerrado por vossos sentidos, os cinco?"
Willian Blake, in O Matrimônio do Céu e do Inferno

CRÔNICA RELÂMPAGO


A vida possui diferentes ritmos nas paisagens dos dias... Uma noite pode ser mais do que uma seqüência linear de horas e acontecimentos quando projetamos em algum fato qualquer nossas apostas mais vivas de pueris novidades. Criar expectativas é o secular pecado de existir... Mas mesmo cientes da inutilidade da busca apostamos, arriscamos nossas seguranças e certezas de tédio cotidiano na eventual aventura de qualquer migalha de esperança, de novo modificar e renovar das coisas de nosso intimo mundo.
Talvez essas apostas inconsequentes na sorte, no destino ou apenas na nossa capacidade de mudar qualquer coisa em nossas minimas existências seja o que leva o viver a ser movimento subjetivo da gente mesmo. Mas nunca estamos preparados para a decepçionante constatação de que algo mais governa os acontecimentos no além de nossas vontades. Talvez rebeldia dos fatos ou do destino... Que nos define o rosto ao acaso dos fatos que nos fazem ser...

INQUIETAÇÕES

Não sei se é cedo ou tarde.
Só sei que é agora,
Que sinto
Qualquer tempo,
Qualquer movimento,
De estar plenamente e
Finalmente
Em algum lugar seguro
De mim mesmo.
*************
Tenho gosto pelo mistério,
Pelo saber tudo ao redor
Envolto em sombra
No acontecer distante
Das coisas profundas.
Tenho gosto pela vida
Dos animais
Que não se perguntam sobre o mundo,
Apenas o vivem
No se fazer da existência
Sem o peso de um só pensamento.
Tenho inveja da eternidade da pedra
Ignorante do império do tempo.

HORA DO ALMOÇO EM PRATO DE GIRASSOIS



É hora do almoço
no acaso
de um dia qualquer.
Momento de quase realidade
na mecânica rotina
do correr das horas.
Ou talvez, ainda,
expontâneo acontecer do corpo
em um inerte momento de vida,
ou, quem sabe?
coisa qualquer de necessidade
sem previo propósito
ou sentido.
É hora do almoço
e fantasio meu alimento
disposto sobre o prato
sem saber seu gosto
na fome de um novo dia.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

A REALIDADE COMO DELIRIO LUCIDO


Todo discurso sobre a realidade é cifra de sonho da consciência; é construção de si mesmo como exterioridade no ato mágico do significado... É quase nada...
Todos os dias inventamos e reinventamos conjuntamente o mundo no quase existir nele....

SOBRE DISCURSO, DIALOGO E MATÉRIA: FRAGMENTO DE JACQUES DERRIDA

“ ...Tudo aquilo que, no meu discurso, é destinado a manifestar um vivido a outrem, deve passar pela mediação da face física. Essa mediação irredutível mobiliza toda expressão em uma operação irredutível mobiliza toda expressão em uma operação indicativa.. A função da manifestação ( kundgebende Funktion) é uma função indicativa. Aproximamo-nos aqui da raiz da indicação: há indicação cada vez que o ato que confere o sentido, a intenção anomadora, a espiritualidade viva do querer dizer, não esta plenamente presente. Assim, quando eu escuto o outro, o seu vivido não esta presente para mim, originalmente, “em pessoa”. Posso ter, pensa Husserl, uma intuição originária, isto é, uma percepção imediata do que, nele, é exposto no mundo, da visibilidade do seu corpo, dos seus gestos, daquilo que se deixa ouvir, dos sons que ele profere. Mas a face subjetiva da sua experiência, a sua consciência, os atos pelos quais, especificamente, ele dá sentido aos seus signos, não me estão imediata e originalmente presentes como estão para ele, e como os meus estão para mim. Existe aí um limite irredutível e definitivo. O vivido do outro só se torna manifesto para mim enquanto esta mediatamente indicado por signos que comportam uma face física. A própria idéia de “físico”, de “face física”, não é pensável em sua diferença própria senão a partir desse movimento de indicação”

Jacques Derrida. A voz e o fenômeno: Introdução ao problema do signo na fenomenologia de Hussel, RJ: Jorge Zahar Ed., 1994, p.47.