quarta-feira, 6 de novembro de 2019

UMA OUTRA INFÂNCIA





Existe uma infância que nos persegue.
Ela não é um tempo,
uma idade do corpo.
Mas um não lugar abstrato
onde acumulamos modos de sentir,
sensibilidades outras,
que nos deslocam do presente,
que nos conduzem ao sem tempo,
a irrazoabilidade de um devir-devaneio intenso.

Trata-se de uma infância carente de linguagem.
Nela domina a imagem e o afeto
na ambivalência do riso e do choro,
na instabilidade do ter e do perder.

Ela não pode ser educada,
domesticada ou superada.
Pois demarca um espaço de consciência
através do qual tudo escapa.

Esta infância é a inocência suprema
onde nada se sabe,
nada é dizível.
Nela se esconde
o radicalmente outro
de nós mesmos,
além do saber,
além do poder,
do cognoscível,
do agir e do ser.



DIZER O MUNDO



Encontrar minha própria forma de dizer o mundo é o único propósito que vejo no sem sentido da vida. Por outro lado há uma pluralidade irredutível a qualquer enunciado neste meu processo de dizer. Isso o torna inultrapassável  como meta. É  no próprio movimento de dizer que digo o mundo a minha maneira sem nunca esgotar meu modo de dizer o mundo. O dizer é sempre um vazio  rasurado pelo provisório da narrativa. Ele é um trabalho inacabado, inconclusivo, como a própria existência.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O PENSAMENTO QUE SENTE



Pensar é compor conceitos,
transvalorizar palavras,
até o limite do inteligível.

Não falo do pensar banal
de ensaios e tratados abstratos,
Refiro-me  ao pensar
que  promove o ajuntamento
do diverso,
reunindo frases  pelo sabor,
textura, volume, afetos,
estabelecendo conexões e sentidos inusitados
que reinventam as coisas,
que produz  a vida
como um texto sempre aberto.

Falo do pensar que sente,
que relaciona tudo e nada,
que inventa a realidade
como experiência complexa,
como imagem mosaico
irredutível a si mesma
e em constante mudança.

Trata-se do pensar da pele,
dos olhos,
das mãos e da boca....
um pensar com o corpo.


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A PAISAGEM




A paisagem convida os olhos.
Ela nos envolve e nos consome
como geografia viva de signos.

Ela existe na medida em que somos
no sentir das coisas,
através de percepções e  ambiências.

Nossos olhos inventam pinturas
na imaginação que expressa o corpo
como um ponto contido
na imensidão de um lugar.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

TEMPO, NATUREZA E NÃO SER


O presente se estende ao dia seguinte,
Inventa seu próprio duplo,
Na multiplicidade de um agora inumano
Entranhado na paisagem viva
De uma terra em transe.

Já  não  faz sentido o tempo
Ou a eternidade.
O instante é a persistência da paisagem
Além da presença do humano.

A natureza , indiferente a si mesma,
Persiste sem tempo
No devir do espaço.

A vida transcende todas as suas formas e fórmulas
Na composição mutante do orgânico e do inorgânico.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

TEMPO PRESENTE E PÓS HISTÓRIA


O tempo presente sempre nos escapa como vivência plena através da experiência precária de cada momento. Ele se confunde, assim, com a permanente erosão de  seu próprio esboço.

Este presente colapsado e inconstante, que vinculamos a vivência concreta do imediato de um agora, não é linear, nem cíclico, mas  heterogêneo e múltiplo em sua fugacidade. Ele não comporta, ainda, interpretações ou significados. Pois simplesmente acontece a margem de todo sentido possível e do simulacro de qualquer memória. Ele é puro esquecimento em sua unicidade , mas, simultaneamente, é  sequência replicante de um outro de si sempre atualizado.

É a partir deste incerto agora que o tempo presente ganha forma e conteúdo enquanto território de ação e durabilidade, como lugar do acontecimento e da memória, como fato escrito em nossos corpos como ato e palavra.    

Este presente não é o efeito de qualquer passado, não semeia futuros possíveis. Ele é a eternidade de seu próprio momento cujas fronteiras indefinidas configuram uma experiência fluida do real. Trata-se de um tempo que é espaço, estado e matéria, e não uma percepção abstrata do simples fluir das coisas.

Podemos dizer também que ele é próprio a cada singularidade. Não é um tempo universal e objetivo. Cada um vive seu próprio presente definido por sua trajetória especifica no tempo e no espaço de sua existência.



quarta-feira, 23 de outubro de 2019

A NUDEZ DA REALIDADE CONTRA OS PUDORES DO PENSAMENTO




O pensamento não acompanha os fatos,
Se quer se se aproxima deles.
Busca em sua própria superfície
Os fios de significações profundas.

Ele inventa o corpo
Na paisagem gramatical dos conceitos
como um passageiro clandestino
da realidade,
Contamina, assim, os sentidos,
Os gestos e sentimentos,
imprimindo  verdades a pele.

Depois, veste a realidade
com os trajes rotos da lógica
 negando a nudez o mundo.

Mas a realidade é esperta.
Sempre foge as palavras que lhe vestem
e zomba graciosa dos raciocinados pudores do pensamento.  

MICRO FÍSICA



Ainda hoje,
a imensidões de uma gota d’água
acorda em mim
o arcaico das imaginações
de proto infância.

Nos tempos de pré consciência
as coisas pequenas
continham universos.

Podia explora-los
com olhos
nas pontas dos dedos
Com mais  precisão
do que a de qualquer microscópio.




terça-feira, 22 de outubro de 2019

PÓS HISTÓRIA


Nossa consciência define-se entre o fluir de um imediato agora e o estruturante de um perpétuo tempo presente, indiferente ao passado e distante de qualquer futuro.

Nossas paisagens existenciais tem por horizonte o imediatismo, a superficialidade e a incerteza dos simulacros de múltiplas narrativas possíveis. Elas tornam impossível a miragem de um mundo comum na experiência d e um quase infinita diversidade semiológica. Os signos e símbolos circulam em uma meta realidade virtual onde tudo foge e transmuta.

Em contra partida, nos conformamos a finitude, a linguagem e ao corpo. Nenhuma metafisica discursiva que arremede sistemas e universalismos nos encanta os ouvidos em tempos de imersões no simples cotidiano.

Tudo é transitório e nos inventa  livres e vazios de sentido.

O tempo já não nos apavora. Buscamos a natureza e seu eterno retorno no resgate do mais recuado arcaísmo onde o humano não se distingue do mundo na dualidade de ser e não ser.

O QUASE SER DO HUMANO


Antes de habitamos cidades, culturas,
E sociedades,
Habitamos a natureza,
Somos afeto, corpo
E desejo.
Habitamos a terra,
Como animais selvagens
Em qualquer floresta.
Presos ao chão
Invejamos a liberdade dos pássaros.
Somos angústias,
Diante da imensidão  do mar,
Da violência da tempestade,
E somos quase nada
Sob o céu  estrelado.