quarta-feira, 10 de maio de 2017

SOBRE OS CONCEITOS DE INDIVIDUO E PESSOA


Tal como entendo, pessoa e  indivíduo são conceitos antagônicos. Pois se o conceito de pessoa remete a impessoalidade de uma condição universal, o indivíduo, ao contrário, remete a singularidade irracional, a unicidade. Do ponto de vista da vida coletiva o indivíduo personifica a liberdade como autodeterminação, enquanto a pessoa representa a norma social.  Ambos, entretanto, reportam ao nosso existir imediato como um corpo vivo, como uma condição e acontecimento material. Mas se a pessoa só pode se constituir através de um enunciado e uma ordem simbólica, o indivíduo é também um fato pré- verbal. É algo dado, mesmo que suas significações sejam também um ato de linguagem.

Temos dificuldades para separar a pessoa do indivíduo porque identificamos ambas as condições a premissa do eu e da consciência. Por outro  lado, diluímos a noção de individualidade através da normatização do comportamento e subordinação do particular ao universal. Nossa cultura dita “individualista” na verdade exibe pouca consideração pelo individuo e pela individuação.

NOTA MARGINAL A LÓGICA DO SENTIDO DE GILLES DELEUZE


LÓGICA DO SENTIDO é um dos mais fascinantes trabalhos deixados por Gilles Deleuze. Através dele, Deleuze nos propõe uma teoria do sentido a partir de uma leitura da obra de Lewis Carroll iluminada por considerações originais do pensamento estoico e seu lugar decisivo  na história da filosofia ocidental.

A obra é estruturada através de uma série de 34 paradoxos e, nas palavras do próprio autor, pode ser definida como um “romance lógico e psicanalítico”. Para  ele, Caroll foi o explorador e o estruturador de um método  serial em literatura. Os estoicos, por sua vez, ao romperem com os pré- socráticos, os socráticos e os platônicos, inventaram novas formas de pensamento onde paradoxos subvertem tanto o bom senso quanto o senso comum, estabelecendo a  ambiguidade, a dualidade e a incerteza, como dimensões  essenciais da própria linguagem.  Ela estabelece seus limites na mesma medida em que os extrapola, em que desloca o sujeito e a identidade.

“O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.”

Os acontecimentos não devem ser procurados em sua profundidade, mas na superfície. Parafraseando Deleuze, é seguindo a fronteira, margeando a superfície, que passamos do corpo ao incorporal. A continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de profundidade elevando ao nível da linguagem todo o devir e seus paradoxos.

A obra de Lewis Carroll circunscreve no “mundo plano” do sentido-acontecimento, ou do exprimível-atributo, onde tudo que se passa, passa-se na linguagem e pela linguagem. O que significa que não devemos confundir aqui o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas.

Meu comentário é deliberadamente marginal em relação ao denso conteúdo desta obra clássica da filosofia contemporânea. O pequeno recorte aqui proposto em torno do lugar do paradoxo na linguagem, apenas se destina a despertar alguma reflexão sobre o modo como cotidianamente experimentamos a linguagem, sem reconhecer nela as ambiguidades e dualismos que, muitas vezes, habitam nossos enunciados no jogo entre o falar e o dizer e que transcende  o eu das proposições.


segunda-feira, 8 de maio de 2017

CIDADE MÁQUINA


A cidade é movimento  constante de pessoas,

Carros e coisas.

Acontece de tantas formas

Através de construções e ruas,

Cenários, contrastes

E anonimatos,

Que é quase impossível sabê-la

Como totalidade.

Cada lugar é em si mesmo

Um pequeno mundo.

E eu sou apenas um  insignificante  ponto na paisagem,

Mais um corpo pedido  na multidão.

A cidade é espaço, tempo

E quase eternidade. 
Mas não passa de uma máquina viva
que nos devora todos os dias.         


quinta-feira, 4 de maio de 2017

BREVE NOTA SOBRE FOUCAULT E A ARQUEOLOGIA DO SABER:

A arqueologia do saber proposta por Foucault consiste, basicamente, na descrição sistêmica de um discurso-objeto, ignora-se  a singularidade da obra, sua intencionalidade, para através dela apreender o discurso como monumento. Para tanto é preciso descrever com precisão seus enunciados. Segundo o próprio autor,  um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente.
Segundo Foucault,

"... os ' discursos' , tais como podemos ouvi-los , tais como podemos lê-los sob a forma de textos, não são, como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e de palavras: trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras;gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intricamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de exemplo precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destaca-se um conjunto de regras, próprias da pratica discursiva."
( Michel Foucault. A Arqueologia do Saber. RJ: Forense Universitária, 2004, p. 54)

A ordem do discurso define suas possibilidades descritivas como ato linguístico, como jogo e sistema gramatical condicionado a suas próprias regras de sentido, não se define como descrição ou designação das coisas, nem mesmo se importa com a especificidade das disciplinas.

Além disso, é possível dizer que não sou eu quem enuncia o discurso, mas o próprio discurso que inventa o autor a sua imagem e semelhança. Sou em meus enunciados a impessoalidade do arquivo, do previsível e possível da ordem discursiva que funda um texto  como um  seu acontecimento....

MÁSCARA AUTORAL

A máscara do autor
A qual vestimos  através do labirinto
Que é o corpo de nossos enunciados
Nos conduz apenas a abstração
De nós mesmos.
Todo dizer guarda um silêncio,
Um prazer e uma agonia,
Na invenção do extraterritorial dos fatos.

Aquele que escreve não é o eu que me define,
Mas um outro mais profundo
Do que do que aquele apresentado
Pela superfície do espelho

Da interpretação dos outros.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

A DECADÊNCIA DA POESIA

Aliterações, métricas,
Assonâncias e rimas
Não definem um poema.
Assim como versos
Não mudam o mundo
Ou vestem de significados
A banalidade dos fatos.
Por isso apenas trocamos
Palavras desencontradas
Enquanto aguardamos o por do sol.
Amanhã não será outro dia.
Repetiremos contra o vento
Velhos enunciados banais
Enquanto uma sombra de poesia

Há de emudecer nossos olhos úmidos.

MERLEAU PONTY E O PRIMADO DA PERCEPÇÃO



O Primado da Percepção e Suas Consequências Filosóficas é o texto de uma exposição realizada por Maurice Merleau Ponty perante a Sociedade Francesa de Filosofia em 23 de novembro de 1946 e comentada, entre outros, por Hyppolite.


O texto inicia-se com o seguinte enunciado sobre a percepção como modalidade original  da consciência:


“  O estudo da percepção feito sem preconceitos pelos psicólogos  acabou por revelar que o mundo percebido não é uma soma de objetos, no sentido em que as ciências dão a esta palavra; que nossa relação com ele não é a de um pensador  com um objeto de pensamento e que, enfim, a unidade da coisa percebida, a respeito da qual muitas consciências concordam,  não é assimilável à de um teorema que muitos pensadores  reconhecem, nem à existência percebida à existência real.”

(Maurice Merleau Ponty. O Primado da Percepção e suas Consequências Filosóficas. Campinas,SP: Papirus, 1990, p.41.)


A partir de uma ponderação fenomenológica  da psicologia experimental de sua época, especialmente informada pela Escola da Gestalttheorie,  Merleau Ponty propõe uma critica ao cientificismo e a filosofia racionalista afirmando a importância do corpo na definição de nosso horizonte perceptivo. Ele transcende os limites do idealismo subjetivista e do positivismo objetivista ou, simplesmente, da realidade formal. Afirma, assim, o primado da experiência sobre  a construção de conceitos , contrariando nossa tendência ao verbalismo abstrato e unilateralmente racionalista.

Indo além da reflexão proposta pelo autor, acrescento que o "eu" esta longe de ser o centro da consciência. è o próprio corpo que desempenha tal papel através das percepções e a produção de uma imagética do real.  Além deste seu condicionamento da percepção a fabulação de toda a experiência, cabe também considerar  que o "eu" esta subordinado a grandezas impessoais de natureza e autônomas (arquétipicos) cuja manifestação escapa inteiramente ao seu controle e o condiciona.

Embora a noção de inconsciente e de psique objetiva legada pela chamada psicologia profunda seja inteiramente estranha a fenomenologia, alguns pontos de contato podem ser surpreendentemente estabelecidos. Como pretendo demonstrar em outra ocasião.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

SOBRE AS METAMORFOSES DO REAL

O vazio da realidade não conduz ao falso ou ao ilusório, mas a uma metamorfose do sentido e da experiência do real como signo e símbolo. 

Nossos enunciados já não se inscrevem na ordem de um discurso "verdadeiro", não são orientados por  um télos,  uma finalidade ou sentido. Inscrevem-se agora no aleatório devir da experiencia imediata e do nomadismo existencial. 

O esvaziamento do real é sua plena realização, sua ruptura com toda metafísica do sentido e reconhecimento da simulação como o mais elementar artifício  da imaginação humana.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

SOBRE ENUNCIADOS E A CONSTRUÇÃO DO "EU"

O exercício da palavra, oral ou escrita, é por definição uma expressão, fazer-se visível mais do do que um aro de comunicação. Pois,  enquanto a comunicação remete ao diálogo,  o dizer  é um apresentar-se  através de enunciados impessoais aos quais aderimos e transformamos.

Através das palavras o "nós" identifica o "eu" como porta voz do significado teleológico ou conjunto de preposições. Somos reconhecidos em nossa singularidade pela forma  singular através da qual expressamos conteúdos arbitrariamente selecionados e redefinidos  na singularidade do sentido de uma narrativa.

A geografia de nossos gestos  de linguagem nos projeta nos outros como "eu". Isto é profundamente banal e, ao mesmo tempo, profundamente significativo no acontecer intersubjetivo dos enunciados.

domingo, 23 de abril de 2017

SOBRE O OFÍCIO DE SUCUMBIR SEGUNDO ASSIM FALOU ZARASTRUSTRA DE NIETSZCHE

Assim Falou Zaratruta: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. é uma daquelas obras que se apresentam ao olhar perdido do mais humilde leitor como um labirinto que se reinventa em releituras constantes.

Já no prefácio de Zaratrusta nos confrontamos com o surpreendente desafio de sucumbir a nós mesmos:

" Amo aqueles que não sabem viver a não ser como os que sucumbem, são os que atravessam."

Assim, nos descobrimos como uma cordas estendida  sobre um abismo, nos fazemos contra o otimismo do "Ultimo Homem" aprendendo o ofício de sucumbir. Que aqui se diga em todas as cores vivas das letras que o ofício de viver  é aprender a sucumbir:
"Amo aquele que ama a virtude : pois virtude é vontade de sucumbir e um dardo da aspiração."
Precisamos urgentemente dialogar com o abismo para reaprender a vida contra todo humanismo....