Apesar de francamente avesso a leitura que Frederic Jameson faz das modernidade, considero bastante pertinente sua leitura da literatura do modernismo tardio apresentada em um dos ensaios que compõem a coletânea A Modernidade Singular (A Singular Modernity). Refiro-me mais especificamente a suas considerações em torno da apropriação moderna do conceito medieval de contingência. Tomando como exemplo a obra de autores como Nabokov, Beckett, Joyce, Sartre, etc. Jamenson sustenta que a matéria prima a partir da qual suas narrativas são construídas pressupõem uma desfiguração do conteúdo decorrente de uma incapacitação ou deficiência universal da realidade.
Jameson nos chama, portanto, atenção para a difícil equação entre autonomia da linguagem estética e codificação da realidade no dito modernismo tardio que traduz uma profunda crise epistemológica inerente a própria modernidade, ou seja, uma generalizda crise de representação ou codificação da realidade:
“... Diremos aqui, justificadamente, que se pode detectar muito antes do problema da contingência, em todos os próprios modernismos originais, como um indício do fracasso completo da forma para dominar e se apropriar do conteúdo que a obra destinou a si mesma ( ou melhor, que ela se destinou e propôs incorporar, como tarefa). O conceito de contingência é evidentemente um conceito ainda mais antigo, que surge na teologia medieval, onde constitui a única instância de algo que, escandalosamente, é impossível de se assimilar ao universal que constitui a sua idéia e que é associado ao divino. A contingência, assim, é a palavra para o fracasso da idéia, o termo para o que é radicalmente ininteligível, e antes pertence ao campo conceitual da ontologia do que ao das diversas epistemologias que se seguem e que substituem uma filosofia ontológica no período “moderno” ( ou desde Dercartes). A referencia medieval é, assim, de muita utilidade, na verdade, na medida em que sublinha a temporalidade do conceito, suas marés e correntezas nas vicissitudes da história, como um indício de alguma ruptura do processo ou sistema conceitual. Mas a crise da epistemologia, assinalada pelo ressurgimento do problema da contingência no século XIX ( ou desde Kant) é talvez mascarada primeiramente pelo prestigio da ciência emergente e pela transferência das afirmações epistemológicas para aquele campo totalmente novo da produção intelectual, que só começa a experimentar a sua própria crise epistemológica quando já bem avançado no século XX. De qualquer forma, desejo postular uma sutil e ao mesmo tempo fundamental distinção entre as preocupações estéticas com a sorte e o acidente, como as que deram forma ao alto modernismo, e os problemas, menos temáticos e mais formais representacionais, colocados pela contingência, no que tenho chamado de modernismo tardio.
Eis um argumento ardiloso para apresentar: a antiga idéia medieval ( seria ela realmente um conceito em algum sentido positivo?) é estrategicamente revivida pelos novos existencialismos e reencenada de forma mais enfática por Sartre, que nos informa que tinha algo a ver com as idas ao cinema, quando criança: sair de um teatro que, humanamente, produzia imagens humanas era o mesmo que suportar o choque da existência de um mundo real à luz de um barulhento dia urbano. A experiência da contingência, assim, não depende apenas de uma determinada percepção do mundo, mas tem também, como precondição fundamental, uma experiência da forma com a qual aquele mundo é dramaticamente comparado.
Mas já não era o cubismo uma tentativa de fazer face a tal experiência, multiplicando os cacos da forma, nos quais a explosão do velho objeto estável do dia a dia fora transformado? E não dá, cada linha do Ulisses, testemunho de uma realidade empírica sempre em mutação, que as múltiplas formas de Joyce ( desde o paralelo com a Odisséia até o formato em capítulos e a própria estrutura das sentenças) são incapazes de dominar? O que pretendo discutir aqui, muito apressadamente, é que entre os modernos essa forma jamais é dada antecipadamente: ela é gerada experimentalmente no encontro, conduzindo enganosamente a formações que jamais poderiam ser previsíveis ( e cujas multiplicidades, incompletas e intermináveis, são amplamente demonstradas pelos incontáveis modernismos).”
( Frederic Jameson. Modernidade Singular: Ensaio sobre a ontologia do presente. Tradução de Roberto Francisco Valente. RJ: Civilização Brasileira, 2005, p. 239 et seq. )
Tudo que Jameson procura afirmar é que a contingência no modernismo tardio funda-se na dialética entre a forma estética em si ( autonomia da arte) e os fatos brutos e concretos da realidade que, significativamente, contradizem a pretensão de uma autonomia estética. Assim, a substituição dos obscuros absolutos estéticos do modernismo clássico pelas autonomias estéticas do modernismo tardio conduzem a uma literatura mais cotidiana e associada à existência concreta recusada pelo pós modernismo. Para oautor, é bom lebrar, de ascendência marxista, é inconcebível uma literatura divorciada da realidade social...
Pessoalmente, creio que, justamente por isso, Jamenson subestima seu próprio argumento ao não reconhecer nele a constatação de uma profunda crise ou saturação de nossas formas de representação tradicionais da realidade e codificação social do mundo que põe em xeque o paradigma moderno e suas ilusões.