“...pois hoje um número enorme de seres humanos já não domina a fala: exprimem-se por meio das frases dos jornais e das mídias, dizendo sempre a mesma coisa, sem contudo serem os mesmos.”
Na vida cotidiana a linguagem funciona tanto quanto um sistema de trocas simbólicas e comunicativas quanto um estranho meio de geração de equívocos e enganos. O uso rasteiro e pragmático que lhe damos em uma mesa de bar, na banalidade de uma ligação telefônica ou na conversa forçada durante uma viagem de elevador, são mais do que suficientes para atestar os concretos limites da utilização oral de uma língua.
É sustentável o argumento de que naquele estranho e impreciso amalgama de realidades que rotulamos de senso comum nos movemos em um campo de signos, símbolos e significados imprecisos ou inorgânicos no mais rudimentar “acriticismo” da fala e as discussões sobre a natureza e as possibilidades da linguagem não podem ser reduzidas a esse campo.
Tendo, ao contrário, a levar demasiadamente a sério o “senso comum” e seus profundos arcaísmos. No que diz respeito ao tema desta postagem, parece-me suficiente a constatação simples e falsamente obvia de que na vida cotidiana vivenciamos uma espécie de divorcio entre palavra e pensamento, o quanto a atividade da reflexão é excepcional ou na melhor das hipóteses circunstancial para o homem médio em seu cotidiano. Mas mesmo que não pare para pesar sobre isso, o fato é que para esse indivíduo médio o mundo é um pequeno conjunto de certezas verbais e referências fixas de realidade traduzidos e socializados pela fala. Em outras palavras, nada mais conservador do que o dinamismo elementar de nossas rotinas cotidianas. Indo um pouco mais adiante diria que a prisão do falar torna para muitas pessoas o mundo das letras escritas uma terra incógnita. Isso não deve causar grande surpresa se considerarmos que a construção e massificação de uma cultura do livro só foi possível no Ocidente ao longo dos últimos séculos e de modo muito descontínuo.A verdade é que a domesticação do livro e a experiência profunda da consciência através da palavra escrita parece não ser totalmente integrável a cultura e a vida cotidiana das sociedades modernas e contemporâneas.
Parece-me interessante como uma descompromissada mais significativa ilustração disso, uma referência de Georges Jean em seu manual intitulado “A Escrita: Memória dos Homens”:
“ Em fins do século XVI, quando a Contra Reforma e a Inquisição tomam a frente e perseguem as idéias novas, a Holanda protestante torna-se terra de exílio do livro, dos tipógrafos e dos impressores da Europa, onde o absolutismo real adapta-se mal à independência de espírito desses homens eruditos que, desde 1550, desprezando o latim, empenhavam-se em imprimir e difundir os clássicos gregos e latinos nas línguas nacionais.
A lembrança do martírio de Etienne Dolet está ainda viva na memória deles. Esse impressor lionês foi queimado em praça pública, em Paris, a 3 de agosto de 1546. Suas publicações de Rabelais, de Marot e, sobretudo, do Manuel du chevalier chrétien ( Manual do cavaleiro cristão) de Erasmo desencadearam a fúria dos inquisidores. A Holanda torna-se, então, o celeiro de uma literatura proscrita em qualquer outro lugar. Elzevir, não deixando passar ocasião oportuna, popularizou as edições de formato menor- as edições de bolso- anteriormente lançadas por Manuce em Veneza.
(...)
Provavelmente devido a irritação causada pelo sucesso do livro holandês, o Rei Sol é levado a prescrever a reforma da imprensa francesa, assim como já havia mandado construir o terrível Hôpital General ( O Hospício Geral), destinado a aprisionar os loucos, os pobres e os vagabundos.”
( George Jean. A Escrita: memória dos Homens. RJ: Objetiva, 2002, p. 101-102)
Em nosso mundo contemporâneo, cujas trocas simbólicas são cada vez mais imagéticas e a palavra escrita reduzida a “informação”, a experiência redentora da leitura, tão temida no séc. XVI, já não passa de um fenômeno pouco evidente ou então, simplesmente, muito pouco crível, constatação sobre o qual não cabe nenhum juízo de valor.
O que realmente me preocupa é que, mesmo hoje em dia, aquilo que se diz ou se escreve, em termos de vida cotidiana, ainda possui certa “força de verdade”, a ilusão de que todo discurso tende a espelhar algo de verdadeiro. Se um tablóide de grande circulação publicasse em sua primeira página, por mera travessura alguma noticia absurda sobre o fim do mundo, ou a aparição de um ET, dependendo do rigor de redação da reportagem, seria crível a maioria absoluta de seus leitores. De modo semelhante, acredita-se que a publicação de uma norma moral como decreto-lei do poder executivo de um governador ou presidente, é suficiente para transformar a realidade moral e concreta...
O equivoco gerado pelo uso da palavra em nosso dia a dia passa em grande medida pela tendência para se acreditar ingenuamente que aquilo sobre o que falamos corresponde de algum modo a realidade, quando não passa de convenções sociais arbitrárias ; muitas vezes vazias.