Em seu competente estudo sobre o druidismo e a cultura celta, W. Rutherford apresenta uma peculiaridade digna de nota: busca identificar as permanências e legados desta cultura no imaginário moderno, nos oferecendo elementos interessantes para a reflexão em torno de sua expressiva marca sobre o imaginário e a cultura ocidental. É neste sentido que julgo pertinente a reprodução aqui de um significativo fragmento de sua obra:
"Em determinado nível, as lendas devem ser tomadas como a sobrevivência de um aspecto do druidismo. Os druidas eram os guardiões da mitologia. As velhas divindades pagãs estão presentes até em versões tão modernas como a de Malory. O que é surpreendente é a facilidade com a qual elas conseguem subsistir com o cristianismo, mesmo da forma como era aceito e praticado no final da Idade Média. A resposta, na verdade, é que o cristianismo céltico era um tipo muito especial, pelo menos aproximado ao tipo original.
Sem duvida alguma, a Igreja céltica era muito diferente das demais. Talvez por ser mais fundamentalista e austero, sempre mais perto do povo e de suas necessidades, o clero se constituía de homens estudiosos e caridosos. E mesmo aqui, em uma religião tradicionalmente antifeminista; havia maior igualdade para as mulheres do que em outras partes. Uma carta ainda existente, datada do séc. VI, e que foi mandada a dois sacerdotes bretões chamados Locvocat e Catihern, adverte-os no sentido de pararem de celebrar a missa com a ajuda de mulheres. Essas mulheres sacerdotisas, chamadas conhospitae, serviam o vinho enquanto os homens sacerdotes distribuíam o pão da eucaristia. Só quando o cristianismo se tornou uma religião estatal, sob o comando de Constantino, passando a ser forçada ao resto do mundo ocidental com essa forma por Carlos Magno, foi que a figura do sacerdote sofreu completa modificação, tornando-se um servidor do estado secular- a propósito, uma situação desconhecida dos celtas, mesmo nos tempos pagãos. No que dizia respeito ao povo, esta imagem trouxe consigo aquele pluralismo por meio do qual os membros do corpo eclesiástico chegaram a possuir títulos de nobreza e até propriedades feudais.
É interessante observar que os celtas estiveram entre aqueles que primeiro aceitaram a Reforma, e foi no País de Gales, na Escócia, na Irlanda do Norte, na Ilha de Man e nas Ilhas do Canal que ela foi mais profunda.
Teria isso acontecido, pelo menos em parte, por causa de algum efeito residual das idéias druidicas sobre os celtas? Não existem duvidas de que as seitas protestantes mais fundamentalistas poderiam ser descritas como cultos de possessão e, de fato, sentir-se-iam orgulhosas por esta descrição. Nas cartas que mandou depois de uma visita à Ilha de Man, John Wesley é pródigo em elogios pelo zelo religioso de seu povo. Em Jersey, onde os sacerdotes huguenotes já eram nomeados para a reitoria de St. Helier desde meados do século XV e continuariam a exercer este cargo mesmo durante a Contra Reforma Mariana, ele encontrou tantos seguidores que logo teve de nomear um sacerdote que falava francês para pastorear o seu rebanho. Este aspecto xamanista deve ter sido notado de maneira especial nos primeiros tempos quando, proibidos de usar edifícios permanentes, eles realizaram suas reuniões a céu aberto, geralmente em lugares remotos onde estavam livres de perseguição.
E, por acaso não existe uma nota fatalista no druidismo, que poderíamos até chamar de calvinista? Ela por certo esta presente nas lendas de Cão Chulainn. John Steinbeck, que morreu no momento em que trabalhava em uma versão da Morte d’ Arthur para os leitores modernos, observa algo parecido ao espírito grego nas páginas desse livro. Quando Arthur sugere a Merlin que o conhecimento do futuro deve permitir ao homem tomar medidas evasivas, o velho mago usa seu próprio caso como exemplo. Apesar de saber muito bem a maneira como vai encontrar sua morte, também sabe que, quando o momento chegar, ele não terá condição de resistir a ela- como fica provado depois.
Se olharmos para o advento do protestantismo, vendo-o como uma das grandes linhas divisórias nas lutas pela liberdade, travadas pelo espírito humano, teremos que reconhecer que pelo menos algumas de suas raízes foram implantadas pelo druidismo. Colocando isso sobre o prato da balança, ao lado dos efeitos que a mitologia, conforme expresssa nas lendas de Arthur, exerce sobre a nossa civilização, teremos de reconhecer a enorme divida que temos para com o passado celta.
É claro que esses efeitos persistem. Uma prova disso está não apenas em sua permanente popularidade- é difícil passar um ano sem que eles reapareçam, de uma forma ou de outra, e nem sempre em “histórias infantis”- mas também na relevância dada a eles pelas sucessivas gerações, cuja maneira de vida é tão diferente daquela que impera nos tempos em que elas vêm a existência. Basta que lembremos-nos de que a Morte d’Arthur foi um dos primeiros livros saídos dos prelos de Caxton.
Quando procurava por um nome para aquela experiência pela qual, segundo seu modo de ver, cada criança do sexo masculino passava, Freud se lembrou do drama Édipo, de Sófocles. Hoje, todos reconhecemos que o profundo efeito exercido em nós pela obra resulta, em grande parte, de sua capacidade de tocar forças que se encontram no fundo de nosso inconsciente. Não podemos evitar a impressão de que existe algo parecido nas lendas arturianas, e de resto em todos os mitos célticos, apesar das distorções com as quais chegaram até nós.
É como se os druidas tocassem determinadas cordas na mente humana, cuja ressonância persiste. Nada exemplifica isso melhor do que as inúmeras histórias nas quais a potência sexual de um homem idoso é ameaçada quando um rapaz começa a cortejar sua filha ou enteada. Como é sabido, os pais de filhas nestas condições, em geral, enfrentam crises psicológicas em momentos assim.
Outro interessante insight céltico é dado por Eliade, em sua obra Imagens e Símbolos. O rei- Pescador cai doente e, à maneira típica dos celtas, sua enfermidade afeta todo o ambiente. As torres desmoronam, os jardins secam, os animais deixam de reproduzir, as águas das fontes deixa de correr e os frutos desaparecem das árvores. Todos os meios conhecidos são usados na tentativa de cura-lo. Mas tudo malogra, até que um jovem cavaleiro chamado Percival ( provavelmente o Peredur das antigas lendas do Pais de Gales) surge de repente entre os cortesões. Ele faz uma pergunta: “Onde esta a taça?” E a pergunta já é o bastante: o rei se levanta de sua cama, permitindo o reavivamento de todo o mundo que o circunda.
Segundo Eliade, “o mundo perece por causa da... indiferença metafísica”. A simples colocação da pergunta é o bastante para mostrar que a indiferença desapareceu.
E esta mesma noção é profundamente inerente às idéias druidicas. Conforme César nos diz, eles gostavam de se entregar à especulação metafísica. Assim, nós encontramos os cavaleiros de Arthur em aventuras nas quais correm perigo de morte, em expedições cujos objetivos declarados são sempre muito diferentes dos verdadeiros. Podemos fazer a pergunta, como é destino dos homens- onde esta a Taça. Mas a resposta ainda não é conhecida. Ou, quando menos, cada ser humano tem a escolha que lhe permite ignorá-la, colocando-se como um moribundo, a exemplo do Rei-Pescador, ou então sair à procura de sua resposta ou, mais provavelmente, apenas de alguma pista a respeito.”
(Ward Rutherford. Os Druidas. Tradução de Jose Antônio Ceschin. SP: Editora Mercuryo, 1994, p.180-182)