Dentre as mitologias laicas que definiram a modernidade ocidental ao longo do século XIX e XX, o mito da América e da emigração européia, privilegiadamente representada pela america anglo-saxã, constitui uma das principais heranças de nossa contemporaneidade ocidental.
Um livro que muito bem ilustra essa “revolução permanente” chamada Estados Unidos é o relato de viagem, ocorrida durante a era Reagan, produzido pelo filosofo francês Jean Baudrilard entitulado AMERICA.
Sirvo-me aqui de uma passagem muito interessante sobre o significado cultural dos Estados Unidos para as configurações de mundo em que vivemos a partir das trocas simbólicas entre o velho mundo europeu e o novo mundo americano.
Pode-se dizer, em poucas palavras, que os Estados Unidos, enquanto imagem coletiva externa e interna da experiência de uma pluralidade de indivíduos, realizou o ideário do progresso oitocentista ao fundar a primeira e única verdadeira sociedade moderna não europeia.
“A América corresponde para o europeu, ainda hoje, a uma forma subjacente do exílio, a um fantasma de emigração e de exílio, e, portanto, a uma forma de interiorização de sua própria cultura. Ao mesmo tempo, ela corresponde a uma extroversão violenta e, por conseguinte, ao grau zero dessa mesma cultura. Nenhum outro país encarna a esse ponto essa função de desencarnação e, em conjunto, de exacerbação, de radicalização, dos dados de nossas culturas européias... Foi por um golpe de força, ou um golpe teatral, o do exílio, o do exílio geográfico redobrando, nos pais fundadores do século XVII, o exílio voluntário do homem em sua própria consciência que o que substituiria na Europa de esoterismo critico e religioso transforma-se no Continente Novo em exoterismo pragmático. Toda a fundação americana responde a esse duplo movimento de um aprofundamento da lei moral nas consciências, de uma radicalização da exigência utópica que sempre foi a das seitas, e da materialização imediata dessa utopia no trabalho, nos costumes e no modo de vida. Aterrissar na América é, ainda hoje, nessa “religião” do modo de vida de que falava Tocquanville. O exílio e a emigração cristalizaram essa utopia material do modo de vida, do êxito e da ação como ilustração profunda da lei moral, e transformaram-na, de certo modo, em cena primitiva. Nós, na Europa, foi a revolução de 1789 que marcou, mas não com o mesmo caráter: com o selo da História, do Estado e da Ideologia. A política e a história continuam sendo a nossa cena primitiva, não a esfera utópica e moral. E se essa revolução “transcendente” à européia já não esta muito assegurada, hoje em dia, de seus fins nem de seus meios, o mesmo não poderia ser dito da, imanente, do modo de vida americano, dessa asserção e pragmática que constitui, hoje como ontem, o patético do novo mundo.
A América é a versão original da modernidade; nós somos a versão dublada ou com legendas. A América exorciza a questão da origem, não cultiva a origem ou a autenticidade mítica, não tem passado nem verdade fundadora. Por não ter conhecido uma acumulação primitiva do tempo, vive numa atualidade perpetua. Por não ter conhecido uma acumulação lenta e secular do principio de verdade, vive na simulação perpetua, na atualidade perpétua dos sinais. Não tem território ancestral, o dos índios esta hoje circunscrito às reservas que são os equivalentes dos museus onde amarzena os Rembrandt e os Renoir. Mas isso é sem importância – a América não tem problemas de identidade. Ora, a potência futura é dedicada aos povos em futuro, sem autenticidade, e que saberão explorar essa situação ate o fim. Vejam o Japão, que numa certa medida, realiza essa tarefa melhor do que os próprios Estados Unidos, conseguindo, num paradoxo para nós iminteligível, transformar a potência de territoriedade e da feudalidade na territorialidade e da imponderabilidade. O Japã já é um satélite do Planeta Terra. Mas a América já foi, em seu tempo, um satélite do planeta Europa. Queiramos ou não, o futuro deslocou-se para os satélites artificiais.”
( Jean Baudrillard. América. / Tradução de Álvaro Cabral. RJ: Rocco, 1986; p. 65 e 66.)