quarta-feira, 12 de setembro de 2007

CICLO ARTHURIANO


O contexto sócio cultural que configurou a “matéria da bretanea” é particularmente interessante: A sociedade européia do séc. XII caracterizava-se por um significativo crescimento econômico, demográfico e territorial. O crescimento populacional e agrícola propiciava o crescimento das atividades comerciais e da vida urbana modificando sensivelmente a paisagem social e cultural da cristandade ocidental.
No plano religioso, a Igreja define de forma clara sua organização interna ( padres, bispos, arcebispos, cardeais e Papa), seus dogmas e crenças ( Trindade, virgindade de Maria, sacramentos, etc.). A Reforma Gregoriana ( 1073-1216), procurando libertar a Igreja da influência da nobreza feudal, passava a dividir a sociedade em dois grupos opostos: clérigos e leigos.
A nobreza, em contra partida, começava a construir uma cultura própria e relativamente independente da cultura clerical. A literatura inspirada na chamada “Matéria da Bretanha”( ciclo Arthusiano) é o mais significativo exemplo disso. A tradição oral e folclórica, preservada e difundida pelos trovadores, poetas e cancioneiros, transformou-se, então, em poesia escrita em língua vulgar destinada a educação e ao divertimento de um público refinado ( a nobreza feudal ).
Foi neste contexto que o “amor cortês” definiu-se como um fenômeno literário, contestador da cultura clerical, intimamente vinculado a nobreza e ao folclore celta. Através da literatura ele transportava para o plano das relações amorosas as relações de vassalagem que então se afirmavam no plano político e social. Além disso, embora adúltero, esta nova concepção de amor fundava-se no valor pessoal ou virtude (cortesia) dos amantes.
Cabe acrescentar que a expressão “amor cortês” é moderna. Nos textos do século XII ele é simplesmente definido como bone amor, fine amor ( bom amor, amor delicado ou verdadeiro) Tal expressão caracterizava os jogos amorosos e o ideário cavaleiresco difundidos inicialmente nas cortes da Inglaterra e do sul e do norte da França. Os romances de cavalaria de inspiração arthusiana e seus modelos ideais, destinavam-se antes de tudo a educação da aristocracia. O refinamento cultural, a cortesia, eram então vistos como mais importante do que a “nobreza de berço”.
O exemplo mais significativo de difusão deste elitista ideário de sociedade sugerido pelos modelos estabelecidos pela “Matéria da Bretanha” foi a corte de Eleanor da Aquitânia, neta do primeiro trovador conhecido; Guilherme de Paiters ( 1071-1127) e rainha sucessivamente da França e da Inglaterra. Sua corte era o meio cultural em que se educavam, a partir dos modelos corteses, os barões, cavaleiros duques, duquesas e príncipes, segundo regras de cortesia e virtude que exaltavam o feminino e seu papel nos jogos amorosos.
A figura central destes romances inspirados na “Matéria da Bretanha” é, sem sombra de dúvida, a figura do cavaleiro errante que corre o mundo em busca de aventuras e procura afirmar-se pelo seu valor e virtudes pessoais em uma sociedade onde os códigos simbólicos e culturais impõem a predominância do coletivo sobre o individual. Entre o século XI e XII a cavalaria não era objeto de qualquer normatização jurídica e ainda não havia se convertido em um vazio título de nobreza como ocorrerá a partir do séc. XIII. Os cavaleiros, especialistas na arte da guerra, compreendiam uma camada específica dos jovens de “baixa nobreza” que percorriam a Europa em busca de fama e de um bom casamento. Era cavaleiro todo aquele que havia sido sagrado por outro cavaleiro através da cerimônia da Investidura. Normalmente os cavaleiros eram vassalos de algum senhor feudal e tinham por obrigação, além da fidelidade ao seu senhor, a proteção dos pobres e da Igreja.
É difícil precisar o papel da lenda do Graal no contexto desta literatura profundamente imaginativa. Pode-se apenas constatar a tenção introduzida pelo tema do santo vaso, representando certa demanda religiosa que, diga-se de passagem, se relacionava tanto com o imaginário cristão quanto com o maravilhoso de origem pagã, frente o tema mundano do “amor cortês”. Foi neste universo literário atravessado por outras questões paralelas que a lenda de Merlim fez sua entrada na literatura universal de modo realmente desconcertante e surpreendente.

O MITO DE MERLIM SEGUNDO ROBERT DE BORON


A personagem de Merlim fez sua primeira aparição na literatura ocidental através da obra do clérigo galês GEOFFREY DE MONMOUTH (1100-1155). Por volta de 1135 surgem as PROPHETIA MERLINI, posteriormente incorporadas a HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE (1136). Em 1148 aparece a VIDA MERLINI cuja a autoria, embora discutível, também é atribuída a GEOFREY. Foi por intermédio de sua obra que Arthur, até então um folclórico chefe guerreiro que se destacara no combate aos invasores saxões durante o século VI, converteu-se em um poderoso monarca comparável a personalidades como Alexandre, o Grande, e Carlos Magno. Uma das fontes das quais GEOFREY se valeu para a composição de sua obra foi certamente a HISTÓRIA BRITTONUM de NENNIUS DE MÉRCIA, mas muito pouco se pode falar sobre as referências literárias e folclóricas que inspiraram o autor. Curiosamente, a preocupação relativa e poética com dados históricos ou seculares de suas obras contradiz uma característica dos continuadores da dita “matéria da Bretânha”, ou seja, a intemporalidade dos personagens e seu universo vívido. Essa peculiaridade lhe distancia das canções de gesta ou de outras composições medievais como a anônima CANÇÃO DOS NIBELUNGEN ou a CANÇÃO DE ROLAND.
A HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE é pouco depois do seu aparecimento na Inglaterra traduzida para o francês pelo normando WACE DE JERSEY sob o título de ROMANCE DE BRUTUS. A tradução apresenta alguns elementos inexistentes no original como, por exemplo, a primeira menção a mesa redonda de Arthur. Ao longo dos séculos XII e XIII, a partir da Inglaterra e especialmente da França, cria-se e divulga-se pelas cortes da Europa toda uma literatura que transforma e aperfeiçoa a crônica, recriando as lendas folclóricas da antiga Bretânha perpetuadas pela tradição oral.[1]
O mais significativo literato que, depois de GEOFREY DE MONMOUTH, ocupou-se da chamada “matéria da Bretânea” foi o francês CHRÉTIEN DE TROYES em cuja a obra, porém, a figura de Merlim aparece de modo velado na imagem de misteriosos eremitas que surgem significativamente no caminho dos cavaleiros de Arthur durante suas andanças e aventuras. A associação definitiva entre Merlim, a Távola Redonda e a lenda do Graal, pelo que se sabe até o momento, foi estabelecida por um outro francês chamado ROBERT DE BORON. Sua obra, ao contrário da de CHRÉTIEN, é de cunho claramente teológico, justapõe a imagem do profeta de origem misteriosa a imagem do santo Graal criando entre elas uma unidade enigmática. É justamente a partir do MERLIM de ROBERT DE BORON, escrito entre duas outras obras, JOSÉ DE ARIMATÉIA e PERCIVAL OU A QUESTÃO DO SANTO GRAAL , que pretendo tecer minhas considerações.
Em linhas gerais, estou inteiramente de acordo com a leitura de MARIE LOUISE VON FRANZ que vê na dualidade da origem de Merlim, filho do diabo e de uma virgem pura temente a Deus, a concidentia oppositorum que o faz portador do princípio da totalidade de modo muito similar ao mercúrio alquímico. Este fato torna-se mais compreensível quando associado ao drama do velho rei pescador. Na leitura da citada autora, o rei moribundo do Graal, representa a atitude cristã envelhecida. Sua ferida na coxa, na região genital, alude ao problema da natureza e da sexualidade não solucionado pelo cristianismo e ao estado de dissociação característico da consciência cristã frente a repressão dos conteúdos anímicos personificados pelo imaginário pagão. Merlim parece atuar no sentindo da superação da unilateralidade do ideal de espiritualide cristão mediante a imagem do Graal como personificação de uma nova totalidade que se insinua de modo contraditório e misterioso no imaginário medieval.
Na interpretação de EMMA JUNG [2], o obscuro profeta dos tempos de Arthur, é um ser luciferiano, semelhante a mefistófeles, um representante do “intelecto in statu nascendi”, uma personificação viva do logos e, simultaneamente, portador da numen naturae enquanto um deus de duas faces análogo a Hermes ou ao mercurius duplex da alquimia. O Merlim de ROBERT DE BORON realiza esta ambigüidade de modo realmente exemplar. Ele estabelece sobre o mito cristão uma interpretação distinta e complementar a dos evangelhos canônicos e da Igreja. Merlim usurpa assim, mesmo que veladamente, o lugar de cristo como mediador entre o homem e Deus. Coisa que ele mesmo confessa:
“...E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus”[3]

Além disso, como esclarece ao eremita Blaise, que “mete por escrito” a lenda do Graal:
“...Entretanto este livro não estará revestido de autoridade, porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor, ao passo que o senhor, o faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer, assim seu livro será cheio de segredos e poucos haverá que os desvendarão.”[4]

Este caráter obscuro e ambíguo de Merlim marca toda a narrativa. Filho de um incubo e de uma virgem, anunciado por um concílio de demônios, instrumento da vingança dos mesmos contra os profetas que anunciaram a vinda de Cristo, Merlim descarta, entretanto, a possibilidade de uma regressão ao paganismo e realiza, por intermédio da obra do Graal, um caminho alternativo de redenção que tem como centro a Távola Redonda. O segredo do Graal, nesta versão associado as palavras trocadas entre Jesus e José de Arimatéia, em momento algum é revelado.
[1]
[2] 2- Cf. JUNG, Emma. Anima e Animus. SP: Cultrix
[3] 3- BORON, Robert de. Merlim, p.70.
[4] 4- Ibidim,p.56.

A DAMA DO CÉU FUTURO


A Dama do Céu Futuro
Me aguarda
Em algum jardim perdido
Em paisagens verdes de sonho,
No não lugar do desejo
Onde parte de mim vive
Em eterno exílio.

A Dama do Céu Futuro
Acalanta sono de estrelas
E faz companhia a lua,
É quase luz
No sol incolor da sombra.

A Dama do Céu Futuro
Semeia perfumes no vento
Na promessa de uma definitiva primavera,
Além do vazio
Passar sereno dos dias
Que me consomem
E conduzem
Ao nada do infinito.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

LIBERDADE

Tenho a vida aberta
em todas
as direções do mundo,
vontades, sonhos
e sombras
me ensinam labirintos
no perder-se na alma das coisas.
Tenho tudo que busco
no vazio de mim mesmo.

VERDADE,MITO E COTIDIANO VIVIDO

O comportamento arcaico da personalidade total em cada ser humano, aquela tonalidade imagética e afetiva, que nos faz coletiva e individualmente sentir que a existência realmente existe, é o alfa e o ômega de todo fenômenologia cultural. Assim sendo, o sentimento de que alguma coisa é real, seja uma árvore, uma cadeira ou uma abstração lingüistica como o Estado ou qualquer conceito filosófico, ocorre em nós do mesmo modo que se estabelece no homem das sociedades arcaicas a convicção de que um deus habita uma árvore ou se manifesta mediante determinados fenômenos atmosféricos.
Tudo o que é concebido ou imaginado, não importa se em bases racionais ou intuitivas, é real na medida em que configura um fenômeno psíquico. Mesmo os espíritos mais leigos não tem dificuldades para admitir que por detrás da consciência, esta realidade cognitiva sobreposta aos cinco sentidos e condicionado a um relacionamento com o mundo exterior, existe um infindável e obscuro universo de fenômenos e processos cuja natureza pouco conhecemos ou somos até mesmo incapazes de conceber com a devida justeza. Nada me impede de identificar nestas regiões sombrias da psique algo daquilo que poderíamos tomar como sendo nossa “herança arcaica”, os imperativos da história viva da natureza. Sem sombra de dúvida, as representações do sagrado, de modo mais preciso do que qualquer outra variante da vida cultural, traduzem as impressões ou “revelações” deste “além” meta- psicológico. Não foi por mero capricho que desde as épocas mais remotas o homem viu-se através da experiência religiosa de algum modo envolvido, na condição de sujeito e objeto, por personificações intuitivas das mais profundas e misteriosas modalidades do ser projetadas no mundo material e em seus próprios processos vitais. A moderna psicologia profunda hoje nos oferece a possibilidade de desbravar o continente ainda maioritariamente virgem da inconsciência humana, descobrir novos modos de ler a história no homem e o homem na história, traduzindo, em termos modernos, o conhecimento intuitivamente psíquico de si e do mundo acumulado por um sem número de crenças e imagens do sagrado. Talvez elas digam mais sobre nosso atos, hábitos e pensamentos mundanos, do que a vida moderna permite imaginar.

MARIE LOUISE von FRANZ E O ESTUDO DOS CONTOS DE FADA

A investigação científica dos processos psíquicos autônomos ou inconscientes, as interconexões e sobreposições dos significados das imagens arquétipicas, é uma tarefa irrealizável sem a devida consideração de nossas reações pessoais e afetivas.

Não podemos absolutamente excluir arbitrariamente do campo do entendimento nossos condicionamentos e pré disposições subjetivas sob o pretexto de sermos “acadêmicos” ou “objetivos” em nossas formulações.

Parafraseando MARIE LOUISE VON FRANZ, colaboradora de C.G.Jung durante longas décadas, assim como não se pode estudar as plantas sem situar o solo onde elas crescem e um bom jardineiro possui necessariamente um conhecimento do solo tão bom quanto as plantas, em mitologia, nós somos o solo dos temas simbólicos e não podemos ignorar, portanto, a base humana a partir da qual estes temas florescem.
Quero, neste capítulo, ocupar-me especificamente da interpretação dos contos de fada, assunto que mereceu de VON FRANZ uma atenção muito especial dentro do conjunto de suas pesquisas. Para ela os contos de fadas são

“...a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do Inconsciente Coletivo. (...) Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquétipas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva. Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado , atingimos as estruturas básicas da psique humana através de uma exposição do material cultural. Mas nos contos de fada existe um material cultural consciente muito menos específico e, consequentemente, eles espelham mais claramente as estruturas básicas da psique.”
FRANZ, Marie Louise von A Interpretação dos contos de Fada. SP: Ed Paulinas, 1990. pg.9)

A simplicidade dos contos de fadas, seu caráter intelectualmente elementar, proporcionam uma exposição singularmente clara e precisa dos fatos psíquicos. Tal material é encontrado nas sociedades de todo o mundo justamente entre as pessoas simples, como camponeses e índios, constituindo uma parcela significativa daquilo que denominamos como o folclore de um país ou de uma região. Seja sob a forma de sagas locais ou de contos de fadas genuínos como os que encantam a imaginação de nossas crianças, certas histórias ou relatos são incorporados ao patrimônio cultural de uma coletividade e se convertem em expressão de sua identidade e memória social. As imagens e símbolos estruturantes destas narrativas apresentam padrões elementares e arcaicos que permitem sua leitura como expressão de um “pensamento simbólico” ou de fantasia. Diante dele o intelecto acadêmico mostra-se medíocre em seu estilo de formulação destinado quase sempre a sustentar verdades absolutas motivado pela sede de prestígio, vontade de poder ou insegurança.

O estudo dos mitos e, especialmente dos contos de fadas, exige certo desprendimento mental ou sensibilidade para o objeto, ele pressupõe uma renuncia a necessidade de compreender e explicar do complexo egoico. O intelecto, quando indiferenciado de suas raízes instintivas torna-se destrutivo ao cristalizar uma atitude segundo a qual “isso é apenas isso” ou “esta é a verdade” inibindo assim outras possibilidades de expressão e percepção. Em outros termos, no meio acadêmico tradicionalmente o intelecto transcende seu próprio domínio de operações convertendo-se em um monstruoso impulso de maquinação arguta que se impõe unilateralmente a consciência e a matéria observada.

No estudo dos mitos e símbolos defrontamo-nos com um material que não comporta opiniões e interpretações unívocas, que não pode ser esgotado por nenhuma leitura ou significação possível. Neste sentido, o método analógico associativo, originário do campo da psicologia profunda, é apenas uma referência que me permite construir um determinado discurso sobre a natureza da matéria mitológica da qual participo tanto intelectualmente quanto emocionalmente.

Tomar a psique como objeto é, entre outras coisas, saber que uma parte dos conteúdos inconscientes permanece irremediavelmente inconsciente enquanto outra submete-se a capacidade discriminadora ou diferenciadora da consciência. Os vários motivos e figuras de um conto de fadas são um testemunho da realidade humana em sua forma mais elementar. Muitos conteúdos que hoje tomamos como parte integrante da personalidade consciente nestas antigas histórias apresentam-se ainda vinculados ao inconsciente estando projetados de modo autônomo através de certas situações ou personagens. A figura do herói nos contos de fadas, por exemplo, representa geralmente, um modelo ou padrão arquétipo que visa uma dada modalidade comportamental associada a algum aspecto do Si-mesmo psicológico associado a construção do ego humano.

WALTER BENJAMIM E O CONCEITO DE HISTÒRIA




Uma pintura de Klee intitulada “Angelus Novus” mostra um anjo que parece estar prestes a se afastar de alguma coisa que encara fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter o mesmo aspecto. O seu rosto está voltado para o passado. Onde percebemos um desencadear de acontecimentos, ele vê apenas uma única catástrofe, que não para de acumular destroços sobre destroços, e depois os atira a seus pés. O anjo gostaria de ficar , despertar os mortos, e reconstruir o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso ; e o vento bate em suas asas com tamanha violência , que o anjo não consegue mais fecha-las. Essa tempestade o empurra inexoravelmente em direção ao futuro, para o qual as suas costas estão voltadas, enquanto a pilha de destroços sobe ao céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”
Walter Benjamim in, Teses sobre o conceito de história .

A 9º tese sobre o conceito de história de Walter Benjamim, inspirada pelo Angelus Novus de Paul Klee, e influenciada por um poema do seu amigo, o historiador Gerson Scholem, pode ser definida, em linhas gerais, como uma breve narrativa alegórica sobre a tensão entre o passado e o futuro que condiciona toda consciência do presente.
Trata-se de uma crítica a noção de progresso, tão cara a cultura pós-iluminista, e uma original “leitura negativa” do processo histórico. Tal constatação não escapa, naturalmente, nem mesmo ao leitor mais desatento e desenformado, que ignore o contexto em que o texto foi concebido: a caótica Europa de 1940,ano de guerra no qual o nefasto pacto Hitler/Stalin atentava contra as mais sinceras esperanças da civilização ocidental frente o espectro concreto da barbárie. Estou inteiramente de acordo com Robert Alter quando diz que:



“ Não faz diferença se tomamos o anjo da maneira que Benjamim o apresenta, como uma alegoria geral da inflexibilidade com que se deve acompanhar o desenvolvimento da história- “Onde percebemos um desencadear de acontecimentos, ele vê apenas uma única catástrofe”- ou se vemos nele, como sugeriu Rolf Tiedemann num ensaio circunspecto, uma representação do materialismo histórico. O que importa é que a tensão entre o passado e o futuro, que, como já vimos, ocupa um lugar fundamental no pensamento de Benjamim, atinge o seu clímax aqui, ameaçando desmantelar todo o raciocínio que ele estava tentando montar sobre o objeto e o caráter do processo histórico. Esta imagem da história como uma pilha de destroços que atinge o céu e como uma catástrofe contínua reflete, obviamente, o momento que Benjamim vivia: a primavera de 1940, quando a maior parte da Europa estava sob a sombra da suástica, e Stalin e Hitler tinham se unido num pacto assassino. No entanto, o terrível estranhamento em relação a um passado harmonioso, que tinha suas bases , em última análise, na velha história hebraica da expulsão do Éden, era um componente importante do pensamento de Benjamim desde a década de 1920.É difícil deixar de entender a última frase , “ Essa tempestade é o que chamamos de progresso” , como uma amarga ironia, apesar do lado marxista e messiânico de Benjamim provavelmente procurar ver nela um sentido mais positivo. De qualquer maneira, o anjo, uma espécie de refugiado atônico do mundo do simbolismo religioso, não se encontra em um eixo vertical entre o celestial e o terrestre, como no poema de Scholem, mas sim num eixo temporal entre o sonho da origem paradisíaca e o prospecto inconcebível – ou seria ele um pesadelo? – daquilo que se encontra no fim da longa catástrofe da história.”(Robert Alter, Anjos necessários: tradição e modernidade em Kafka, Benjamim e Scholem; pg.149-150. )

O passado, como construção e apropriação contínua de um presente, como rememoração e “relâmpago”, sugerido pela 5º tese, parece desfazer-se na 9°, onde o anjo, enquanto alter ego mítico do historiador, denuncia a impossibilidade trágica de qualquer leitura “positiva” da história, pois enxerga apenas um tempo sem nenhum “agora” ou qualquer outra possibilidade que transcenda a inexorável tragicidade do progresso, do devir, contra toda permanença e realidade dada. Já não é possível despertar os mortos ou reconstruir o que foi destruído. A tempestade do progresso nos afasta cada vez mais da origem, do “paraíso”, nos esvaziando de todo significado, de toda tradição. Desta forma, o anjo da história de Benjamim, “este refugiado atônico do mundo dos símbolos”, é um mito moderno que anuncia a barbárie, um desenraizamento radical, que nos obriga a uma ruptura nunca antes possível, a um reinicio absoluto, frente ao pesadelo da razão e da própria vida contemporânea, cada vez mais esvaziada de significados.
Todo o universo de imagens, crenças e experiências que correspondem ao mundo pré- moderno da tradição, permanecem, entretanto, vivos como forças subterrâneas no imaginário contemporâneo. Apenas nossa consciência diferenciada do inconsciente já não é mais capaz de percebe-las ou vivência-las como antigamente.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

DELIRIO E RISCO

Tento um pulo no infinito,
tento a vida e a morte
em apostas azuis e líricas
de nítidas noites.

Tento o tudo ou nada
de ser em finitude;
de saborear limites e dores
até a realização mais profunda
da carne da minh'alma.

LITERATURA INGLESA VI


Robert Louis Stevenson ( 1850-1894) foi, sem dúvidas, um dos mais expressivos e imaginativos autores da Inglaterra Vitoriana. Mesmo quando não associadas, em um primeiro momento, ao seu nome, suas obras estão profundamente enraizadas em nosso imaginário ficcional ou a doces lembranças dos tempos idos de infância. Basta citar seus dois romances de aventura mais consagrados: A Ilha do Tesouro e o Médico e o Monstro.... Basta tal menção para atestar a familiaridade do autor em nosso mias íntimo imaginário.
Mas o que mais interessa nas histórias e ensaios de Stevenson é a amoralidade de suas aventuras. Elas não nos impõem qualquer lição de moral ou teleologia racional... Apenas nos fala de risco e aventura na construção de nossas individualidades, na emoção das descobertas que reinventam o mundo dentro da gente.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

DESLOCAMENTO

A vida amarrotada e suja
me faz tocar a alma das coisas,
a fantasia de cada objeto,
pensamento e imagem
onde existo.

Tento brincar no caos do mundo
até o infinito do espelho do outro
que não sou....

Invento um nada,
qualquer ordem,
no vento
que me espalha
sobre tudo
até o limite
de descrer em mim...
e saber mil mortes,
milhões de vozes
em existência
de pessoas, coisas
e além...