By Carlos Pereira Júnior
“ Em resumo, a
filosofia se retirretorializa três vezes, uma vez no passado, sob os
gregos, uma vez no presente sob o Estado democrático, uma vez no
porvir, sobre o novo povo e a nova terra. Os gregos e os democratas
se deformam singularmente neste espelho do futuro.”
Gilles Deleuze e Felix
Guattari in O que é a Filosofia?
Sobre o conceito de território e seus fluxos
O presente ensaio tem por objetivo discutir o conceito de território
a partir da filosofia ( ou geo filosofia) construída por Gilles
Deleuze e Felix Guattari. Tal filosofia busca estabelecer uma
interseção entre o pensamento e a terra, que permite captar a
inconstância e dinamismo da realidade territorial que define o
devir humano em sua inserção na espacialidade da natureza através
de sua materialidade sócio cultural. Trata-se antes de tudo de uma
filosofia da imanência.
Negando a definição tradicional fornecida pela geografia,
território, tal como aqui entendido, não é uma realidade material
estática naturalmente dada, mas uma topografia dinâmica, múltipla,
viva, cheia de vínculos, ramificações, intercâmbios, entre um
componente humano, animal e outro natural que se transformam
mutuamente em um arranjo sempre provisório e instável. O território
relaciona-se, portanto, tanto com um espaço vivido quanto com um
sistema percebido de subjetivação.
Em uma perspectiva rizomática, o conceito de território apresenta
múltiplos sentidos e se desenvolve a partir da interseção de
diversas disciplinas e saberes, como a geografia, biologia,
antropologia, sociologia, história e filosofia. Assim, o conceito
de território comporta múltiplas logicas e estratégias de sentido
e significação. Pode-se mesmo dizer que territoriedade é uma
categoria relacional, um vir-a-ser constante, uma multiplicidade
dinâmica, um produzir de planos e camadas geológicas definidas por
zonas, vizinhanças, linhas. É um estar no meio das coisas em
movimentos de terriroriarizaçãos, desterritoriarizações e
reterritoriarizações.
Para melhor definir este eco sistema que é um território é muito
oportuno o uso de um conceito que Deleuze e Guattari consideram
fundamental a sua geo filosofia. Refiro-me ao conceito de Ritorneloi.
Ritornelo é a experiência de improvisação no jazz. Em termos
musicais ele é um ritmo que demarca território, é um refrão, um
estribilho, uma cadência. Em termos filosóficos o ritornelo é um
espaço entro o eu e o mundo, entre interior e exerior. Ele possui
três componentes: um componente direcional (que remete a um ponto
dentro do caos), um componente de dimensional ( busca de consolidação
de um território) e um componente de passagem ou de fuga ( um
território esta sempre em variação). Estes três componentes
definem uma espécie de “lógica de existência”, esclarecem
três formas de habitar um território: a territoriarização, a
desterritoriarização e a reterritoriarização. Estar sempre de
partida, em transito, ou movimento. Território é sempre passagem,
transitoriedade e imanência. Desta forma, o ritornelo é um
agenciamento territorial. Em um sentido geral, risorneto é “todo
um conjunto de materiais de expressão que traçam um território e
que se desenvolvem em motivos territoriais, em paisagens territoriais
(há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc.)
Neste ponto é necessário esclarecer que para a devida compreensão
dos conceitos deleuzianos é preciso descartar um regime de signos
definidos por uma acepção restritiva dentro da teoria da
representaçãoii.
Ou seja, não se deve conectar palavras e coisas em um jogo de
correspondências. Lembrando uma passagem de Foucault citada por
Deleuze em Mil Platôs, “Não adianta dizer o que se vê, o que se
vê não habita jamais o que se diz”. A expressão não é um
fenômeno que se reduz a um dizer das coisas, ela define um conjunto
de enunciados que compõem na cartografia social u “multiplicidades
discursivas” de expressões e “multiplicidades não discursivas
de conteúdo, isto é, como forma de conteúdo e como forma de
expressão que que originam maquinações abstratas. Em outros
termos, os conceitos filosóficos são também maneiras de habitar e
agir em um território. A palavra, o dizer, de um modo geral, cria
agenciamentos coletivos de enunciação através de um discurso
indireto que produz territoriarizações e desterritoriarizações
ou, simplesmente, estratégias de subjetivação. O próprio conceito
de território e de risorneto são bons exemplos disso. Se a
expressão terra natal já era usual no século XVII, o uso do termo
território só é encontra morada em nossas praticas discursivas a
partir do sec. XVIII, quando começou a ser utilizado em uma
significação politica através das obras de autores hoje clássicos
como Montesquieu e Rouseau.
Por outro lado, como afirma Deleuze em Diálogos, os movimentos
comparados de territoriarização e desterritoriarização formam
fluxos cujo estudo de intensidade, os continuums se tornam
evidentes em campos sociais concretos,
“...Tomamos como exemplo,
em torno do século XI: o movimento de fuga das massas monetárias; a
grande desterritorialização das massas camponesas, sob a pressão
das ultimas invasões, e das crescentes exigências dos senhores; as
desterritoriarização das massas mobiliárias , que toma formas tão
diversas quanto a cruzada, a instalação nas cidades, os novos tipos
de exploração da terra ( arrendamento ou assalariado); as novas
figuras das cidades, cujos os equipamentos são cada vez menos
territoriais; a desterritoriarização da Igreja, com sua privação
de bens terrenos, sua’paz de Deus’, sua organização de
cruzadas; a desterritoriarização da mulher com o amor
cavalheiresco, depois o amor cortês. As cruzadas,(inclusive a
cruzada das crianças) podem aparecer como um limiar de conjugação
de todos esses movimentos. De certa maneira, pode-se dizer que em uma
sociedade o que é primeiro são as linhas, os movimentos de fuga.
Pois estes, longe de serem uma fuga fora do social, longe de serem
utópicos ou até mesmo ideológicos, são constitutivos do campo do
social, cujo declive e fronteiras, todo o devir, eles traçam.
(...)
Nós dizemos, antes, que,
em uma sociedade, tudo foge, e que uma sociedade se define por suas
linhas de fuga que afetam massas de toda natureza (mais uma vez,
‘massa’ é uma noção molecular). Uma sociedade, mas também um
agenciamento coletivo, se definem, antes de tudo, por suas pontas de
desterritorialização, seus fluxos de desterritoriarização.”iii
Em poucas palavras, tomando como referência o contexto mediterrâneo
do sec. XI Deleuze exemplifica o quanto um território é definido
por suas linhas de fuga, pelos seus múltiplos fluxos de
desterritoriarização que, ao mesmo tempo, engendram fluxos de
reteriorização, que são, por sua vez, formas de se conformar a um
código de enunciados que se tornam dominantes. Um estado de coisas
ou uma cartografia nova se estabelece através das conjugações,
orientações, convergências e divergências das linhas de fuga.
Vale dizer que o desejo também se confunde com as linhas de fuga.
Aquilo que Deleuze e Gatarri chamam de corpo sem órgãos esta ligado
ao plano de imanência do desejo em contra partida ao sistema que
Foucault chama de bio poder que, operaria, para estes dois autores,
através de reterritoriarizações do corpo.
Maquina de Guerra e Aparelho de Estado
Um território é composto por multiplicidades, por um emaranhado de
linhas, de segmentos duros e molares, onde o Estado não é um ponto
que funciona apenas como centro ou campo onde se estabelecem relações
de poder, ele funciona como uma caixa de ressonância em um horizonte
de segmentações onde se criam relações de força, tensões e
linhas de fuga. Linhas de fuga que são agenciamentos do desejo no
campo social, que é também um campo de imanência. As relações de
poder, por outro lado, não são localizáveis na topografia do
Estado ( transcendência), não se confundem com seus modelos e
mecanismos institucionais. O Estado é antes de tudo um grande
agenciador de desejos e é como tal que se sedentariza e segmentariza
no território, através de modalidades instrumentais que buscam
sedentalizações, inibir linhas de fuga. Assim sendo, quando Deleuze
e Guattari falam em macro e micro política, não estabelecem
propriamente um antagonismo entre Estado e Sociedade. Macro é a
política do plano de linhas de território que tornam a paisagem
reconhecível através de oposições binárias, de segmentações
duras e uma subjetividade processual. O micro, por sua vez,
compreende uma segmentação flexível, molecular e relacional.
Trata-se aqui de dois modos distintos e complementares de habitar um
território perpassado por diversos agenciamentos. A máquina de
Estado pressupõe estratégias de captura, onde os agenciamentos são
complexos de linhas. Não falamos aqui de estado como o resultado de
um processo civilizatório, mas como uma figura.
Não estamos falando aqui também, propriamente, de definições no
sentido clássico do termo, mas de modos de ser e de se produzir a
existência. Coloca-se, assim, diante de nós, a questão chave de O
que é a Filosofia?, última obra escrita conjuntamente por
Deleuze e Guattari: “Qual a relação do pensamento com a terra?”
A resposta passa, obviamente, pelo modo como os autores na referida
obra “explicam” a origem da filosofia na Grécia clássica,
negando a clássica versão de uma causalidade histórica, para
afirmar em seu lugar uma contingência geográfica. O que, segundo
estes autores, propiciou o advento da filosofia foi uma combinação
de devir, meio e ambiente. Neste sentido, embora Atenas e as demais
cidades da antiga Grécia não tinham sido as primeiras cidades
comerciantes, foram as primeiras a ser ao mesmo tempo bastante
próximas e bastante distantes dos impérios arcaicos orientais, a
ponto de formar um meio de imanência onde os artesões e os
mercadores encontraram uma mobilidade, um verdadeiro “mercado
internacional” que os impérios lhe recusavam. O mesmo aconteceu
com a filosofia, os primeiros filósofos eram estrangeiros
desprateados, que encontraram entre os gregos uma sociabilidade nova,
um espaço de imanência onde impera um gosto pela opinião e pela
troca de opiniões. Parafraseando Deleuze e Guattari, pensar consiste
em estender um plano de imanência que absorve a terra, ( ou antes
adsorve) em uma desterritoriarização que se converte em
reterritoriarização, em “uma nova terra”. Os gregos inventaram
um plano de imanência absoluto que nos é contemporâneo como devir.
Voltando a questão da dualidade entre Estado e maquina de guerra,
tomemos aqui como referência, o capítulo 12, ou o Platô 1227
de Mil Platôs, intitulado Tratado de
Nomadologia: A Máquina de Guerra. Este Platô disserta sob o
paradigma guerreiro dos antigos Aqueus, que representa “um lado de
fora” em relação à “interioridade” sedentária do Estado.
Para tanto, os autores tomam como ponto de partida as analise de
Pierre Clastres sobre as sociedades ditas primitivas, combinadas com
as pesquisas de Georges Dumézil sobre a mitologia indo europeia.
As maquinas de guerra nômade se inserem entre o rei mágico e o
sacerdote jurista, que são as duas polaridades da soberania estatal
indo europeia estabelecendo uma configuração tripartida. Mas, para
inicio de conversa, cabe relacionar Mil Platôs e O
Anti Edipo, dizendo que maquina de guerra e aparelho de
Estado estabelecem uma aparente dicotomia entre uma maquina desejante
e um aparelho de repressão edipiano, cuja dualidade impõem um jogo
entre imanência e transcendência, ou, dito de outra forma, definem
uma superfície terrestre lisa (sem estrias ou ramificações) ou
estreada ( codificada, normatizada), dependendo do modo (nômade ou
sedentário) de ocupação do território.
A máquina de guerra (imanência) é exterior ao Estado
(transcendência) porque é irredutível a ele em sua “multiplicidade
pura e sem medida”. Em outras palavras, enquanto modos cognitivos
de se relacionar com um território, enquanto formas de estar nele,
maquina de guerra e aparelho de Estado constituem não apenas
estratégias distintas de se separar ou ligar a terra, mas também
modalidades diversas de pensamento.
A captura da maquina de guerra nômade pelo aparelho do Estado
estabelece uma relação complexa entre imanência e transcendência.
Pode-se dizer que o Estado no Ocidente foi capaz de incorporar os
espaços lisos (nômades), moldar territórios em função de suas
exigências maquínicas e transcendentes, afinal,
“Uma das tarefas
fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual reina, ou
utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço
de um espaço estriado. Para qualquer Estado, não só é vital
vencer o nomadismo, mas controlar as migrações e, mais geralmente,
fazer valer uma zona de direitos sobre todo um ‘exterior’, sobre
o conjunto de fluxos que atravessam o ecúmeno. Com efeito, sempre
que possível o Estado empreende um processo de captura sobre fluxos
de toda sorte, de populações, de mercadorias ou de comércio, de
dinheiro ou de capitais, etc.”iv
Em contra partida as maquinas de guerra representam uma tendência
para fragmentação do espaço em multiplicidades, para a inibição
dos poderes estáveis da unidade (imanência). Nomadizar é
justamente traçar linhas de fuga contra o processo de captura
estatal.
Maquinas de Guerra e Corpo sem Órgãos ( CSO)
O corpo sem órgãos (CSO) está diretamente associado à
produção da maquina de guerra nômade e sua resistência à captura
pelo Estado, ele é produzido através da superação da tensão
estabelecida entre as polaridades que definem um território, o
transcendente/sedentário e o Imanente/nômade. Enquanto linha de
fuga da transcendência normativa, o CSO remete a uma
pratica ou conjunto de práticas nômades, a um devir, a uma
experimentação e não a uma interpretação, ou seja, ele não
produz sentido pela interpretação, ele é povoado por intensidades.
O que ele expressa é a construção de um campo de imanência do
desejo, uma desconstrução do sujeito como síntese do corpo
enquanto organismo e sua conversão a uma “maquina desejante”.
Desta forma, o CSO é uma desterritoriarização, uma fuga
dos agenciamentos sociais, ele substitui o orgânico pelo sutil e
revela uma potência que nos povoa enquanto intensidades. O CSO
se define justamente por suas zonas de intensidades, por limiares,
gradientes e fluxos. Ele é mesmo a pura intensidade de um corpo
devir guerreiro, de um corpo que devém, que se volta para a
intensidade da vida seja no estrato geológico, biológico e
antropomórfico. Mas o CSO, tal como proposto por Deleuze
e Guattari, não tem como marco teórico apenas a famosa conferência
radiofônica Para acabar com o juízo de Deus,
proferida por Artaud em 1947 onde, este declara “guerra aos
órgãos”. O livro referencia para o CSO é a Ética
de Espinoza. Neste sentido, O CSO remete antes de tudo a
produção de singularidade como fim e meio de uma nova forma de
habitar o mundo, como expressão de uma nova ética. Como afirma
Deleuze em Nietzsche a Filosofia:
“Espinosa abriu um
caminho novo para as ciências e a filosofia. Nem mesmo sabemos o que
pode um corpo, dizia ele; falamos da consciência e do espírito,
tagarelamos sobre tudo isso, mas não sabemos de que é capaz um
corpo, quais são suas forças nem o que elas preparam.”v
O que pode um corpo? Talvez, um novo modo de existência imanente.
Mas a pergunta é uma incógnita. Não pode ser respondida. Ela
acontece como um agenciamento. Em O que é Filosofia?
São os conceitos de afectos, que apontam para a experiência
de um devir não humano no homem, e de percetos, que apontam a
paisagem não humana da natureza, insinuando dentro desta nova ética
e territoriedade uma estética, um ir além de uma visão
antropomórfica do mundovi,
o que permite novas estratégias de subjetivação onde a vida
converte-se em obra de arte libertando-se da normatividade edipiana
ou transcendente. O CSO é uma forma de habitar a terra
em intensidades.
Plano de imanência e o sentido de uma nova terra
A desterritoriarização da terra é sua antropoformalização como
territoriedade em um plano abstrato, sua conversão à totalidade
normativa através do princípio da transcendência tal como
realizado pela História da Filosofia. É preciso buscar uma nova
terra, nômade e imanente. Localiza-se na filosofia de Nietzsche a
inspiração para a geo filosofia anunciada em Mil Platôs
e confirmada em O que é a Filosofia? . Esta
emblemática passagem do Prologo de Assim Falou Zaratustra
é um significativo exemplo:
“O além-do-homem é o
sentido da Terra. Que vosso querer diga: seja o além-do-homem o
sentido da Terra! Eu vos conjuro, meus irmãos, à Terra sede fiéis
(...) Outrora a blasfêmia a Deus foi a maior blasfêmia, mas Deus
morreu, e com ele morreram também esses blasfemadores. Blasfemar a
Terra é agora o mais terrível, e estimar mais elevadas as entranhas
do insondável que o sentido da Terra!”
É este sentido da terra, que se confunde com o além
do homem, que inspira a geo filosofia de Deleuze e Guattari. Se
pensar se faz através da relação do território com a terra, é
porque o pensamento destina-se a estabelecer através dos conceitos
um plano de imanência, evoca uma terra e um povo por vir, uma terra
em devir, que se despe da transcendência e de todo ideal moral. O
sentido não nasce mais de uma lógica do predicado, mas como
acontecimento imanente. Ele precisa ser experimentado. Tal
perspectiva é inspirada na Genealogia da Moral e na transvaloração
dos valores propostas por Nietzsche. Novas formas de valoração
assentam um “novo homem” ou um “além do homem” em uma nova
terra livre da transcendência, o que também é proposto na
perspectiva geo filosófica apresentada em O que é a
Filosofia?.
É interessante observar como nesta obra, o conceito
de corpo sem órgãos, tão decisivo nas paginas de Anti Édipo
e Mil Platôs, é substituído pelo conceito de plano
de imanência no esforço construtivista de um pensamento que
pressupõe um fora de si e se faz experimentação. É neste sentido
que o plano de imanência é como um corte no caos e age como um
crivo. Nele a própria imanência é uma outra coisa além de si, é
multiplicidade, é o que sustenta o acontecer dos conceitos
acontecem. Além disso, existe um plano de imanência para cada
conceito. Um plano de imanência é, ao mesmo tempo, o que deve ser
pensado e o que não pode ser pensado. Como já foi dito, ele precisa
ser experimentado. O pensamento traça o plano que é povoado pelos
conceitos.vii
O pensar é um criar que, por sua vez, é uma forma de habitar. Por
isso, na perspectiva de Deleuze e Guattari, como já havia sido
sugerido por Nietzsche, é possível falar de uma filosofia alemã,
francesa, etc. Parafraseando estes autores em O que é a
filosofia?, pensar não é nem um fio estendido entre um
sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro.viii
4-Habito e habitação: entre o cuidado de si, o uso de
si e heterotopias
Extrapolando a pauta de Deleuze e Guatari em Mil Platôs
e O que é a Filosofia?, e dialogando com o último
Foucault, diria que a geo filosofia implica na construção de uma
ética, de um ábito como um modo de existência, como uma forma de
habitar a terra ( reterritoriarização) e, portanto, um ethos
impessoal.
O filosofo italiano Giorgio Agamben, em O Uso dos Corpos,
nos oferece, neste sentido, uma reflexão interessante:
“ Deleuze, no final de O
que é a Filosofia? Define a vida em sua imediatez como
‘contemplação sem conhecimento’. Dessa ‘criação passiva’
que, ‘é, mas não age’, ele dá como exemplo a sensação e o
hábito. No mesmo sentido, Maine de Biran, em seu Mémorie sur
décomposition de la pensée, busca incansavelmente captar, para além
do eu da vontade, um ‘modo de existência’, por assim dizer,
impessoal’, que ele denomina ‘afetibilidade’ e define como a
simples capacidade orgânica de sermos afetados sem consciência
nem personalidade, capacidade que, assim como a estátua de
Condillac, se torna todas as suas modificações e todas as suas
sensações e, no entanto, constitui ‘uma maneira de existir
positiva e completa em seu gênero’.”ix
Aganben usa este exemplo para nos lembrar, contra o prestigio do
conhecimento em nossa cultura moderna, e remetendo a doutrina
medieval do habitus, inspirada em Aristóteles, que a
contemplação e o ábito, como o uso de si, articulam uma zona de
não conhecimento que corresponde a um lugar habitual no qual o ser
vivo se sente bem antes de qualquer subjetivação. Segundo ele,
fazer uso de si significa manter relação com uma zona de não
conhecimento. Tal perspectiva me parece, em alguma medida, coerente
com o devir, com as linhas de percepção, blocos de intensidade e
percursos de experimentação que definem a construção de conceitos
e os planos de imanência, dentro da perspectiva de Deleuze e
Guattari.
Mas é também aqui interessante, lembrar como contra ponto, o
Foucault das heterotipias, destes “lugares outros” que
transbordam os limites entre o real e o virtual no espaço social,x
Segundo Foucault as Heterotopias se põe a funcionar plenamente
quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com
o seu tempo tradicional.
Em suas palavras próprias palavras,
“Enfim, o último traço
das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante,
uma função. Esta se desenvolve entre dois polos extremos. Ou bem
elas têm o papel de criar um espaço de ilusão, que denuncia como
mais ilusório ainda todo o espaço real, todas as alocações no
interior das quais a vida humana é compartimentada (talvez seja esse
o papel que, por muito tempo, tiveram os famosos bordéis, dos quais
estamos agora privados). Ou então, ao contrário, o papel das
heterotopias é criar um outro espaço, um outro espaço real, tão
perfeito, tão meticuloso, tão bem arranjado quanto o nosso é
desordenado, mal disposto e bagunçado. Isso seria a heterotopia não
de ilusão, mas de compensação, e eu me pergunto se não é um
pouco dessa maneira que algumas colônias funcionaram.”
xi
Até onde se sabe, o conceito de Heterotopia foi utilizado pela
primeira vez por Foucault no prefácio de As Palavras e as
Coisas, referindo-se a um texto de Borges e ao desconcertante
estratégia narrativa utilizada por ele ao estabelecer na narrativa
uma “desordem que faz
cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na
dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito”,
Tal como proposta por Foucault, as heterotopias funcionam como
“contra espaços”, como “utopias realizadas”, ou, ainda, como
um conceito limite que evoca uma nova terra através da
transfiguração do uso dos espaços.
Foucault inicia sua conferencia proferida em março de 1967, para uma
prateia de arquitetos, com um significativo diagnóstico: Se o século
XIX foi o século da História, nossa época seria, antes de tudo,
uma época do espaço.
Para ele, embora tenha ocorrido uma dessacralização teórica do
espaço a partir de Gallileu, ainda hoje não atingimos uma
dessacralização plena do espaço. Codificações binárias como
público e privado, social e familiar, etc., ainda tão naturalizadas
entre nós, demonstram o quanto experimentamos coletivamente um
espaço qualitativo, preenchido por símbolos e normatizações. Tal
fato foi magistralmente explorado de forma singular por Barchelard
através de sua fenomenologia de uma imaginação espacial ou poética
do Espaço.
Mas não é o espaço interior de nossas subjetivações que
interessa a Foucault, e sim o espaço “do fora” de nossas
experimentações cotidianas da funcionalidade dos lugares. O espaço
das heterotopias, que podem ser de diversos tipos, é um espaço de
fuga normativa, estabelecem um conjunto de relações e um campo de
tensões que demarcam um sitio. Sejam lugares de movimento ou de
repouso, como um trem ou um quarto. Trata-se de lugares que de alguma
forma estão fora de todos os lugares, mesmo quando localizáveis.
Existem, por exemplo, heterotopias de ilusão e de compensação,
como exemplificam as colônias puritanas inglesas na américa do
século XVII e os bordeis do século XIX.
Impossível não criar vizinhanças entre as heterotopias de Foucault
e as linhas de fuga e maquinas de guerra de Deleuze e Guattari, suas
velocidades, suas alternâncias entre espaços lisos e estreados, em
um movimento constante de desterritoriarização e
reterritoriarização. Há algo de nômade nas heterotopias que urge
ser explorado.
Podemos concluir que o esforço de trazer o pensamento para terra, em
uma perversão do platonismo e de toda a História da Filosofia,
caminho aberto por Nietzsche e perpetuado por Deleuze, é ainda hoje
um campo insurgente e fecundo contra o sedentarismo do pensamento
vigente.
i
Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para
mim, o ritornelo é esse ponto comum. Em outros termos, para mim, o
ritornelo está totalmente ligado ao problema do território, da
saída ou entrada no território, ou seja, ao problema da
desterritorialização. Volto para o meu território, que eu
conheço, ou então me desterritorializo, ou seja, parto, saio do
meu território? (Deleuze, 1997).
ii
No primeiro capítulo de O que é a Filosofia? Deleuze e Guattari
esclarecem que para eles “ O conceito é um incorporal, embora se
encarne ou se efetue nos corpos. Mas, justamente, não se confunde o
estado de coisas na qual se efetua.” P. 33
iii
Deleuze, Guilles. Diálogos/ Gilles Deleuze/ Patrícia Parnet. SP:
Editora Escuta, 1998, p. 157-158
iv
Deleuze Guilles. Mil Platos: Capitalismo e Esquizofrenia. vol. 5-
Guilles Deleuze/ Felix Guattari. SP: Ed. 34, 1997, p. 59.
v
Deleuze Guilles. Nietzsche e a Filosofia, p.32
vi
Perceptos
(que não são percepções) e afectos
(que não são efeitos), existem
na ausência do homem. Eles existem em si excedento o próprio
vivido. O próprio homem é um conjunto de peceptos
e afectos.
vii
O conceito não revela o sentido da coisa, apenas anuncia
parcialmente o acontecimento que ocorre no plano. Parafraseando
Eric Alliez em A Assinatura do Mundo, a imanência é imanente a
uma consciência pura. O plano de imanência é como um fora dentro
do conceito.
viii
A enunciação filosófica é imanente ao conceito. Diferente das
enunciações científicas que apenas que apenas recorrem as
proposições que possuem como objeto um estado de coisas referente.
Lidamos aqui com um devir ecosófico da filosofia que contraria n
qualquer lógica objetal, pois se confunde com a razão e seus
devires. Neste sentido, a filosofia não contempla o Eterno, nem
refrete o histórico, mas se ocupa do diagnóstico dos devires
atuais.
ix
Aganben, Giorgio. O Uso dos Corpos ( Homo Sacer,IV,2). SP: Boi
tempo, 2017, p.86
xi
Foucault, Michel. Espaços
outros. Revista Estudos Avançados v.27 nº 39. SP: USP, 2013. p.120