Há, [...] e isso
provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares
reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria
instituição da sociedade, e que são espécies de
contra-posicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas
nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos
reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo
tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares
que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente
localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de
todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu
os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias.”
Michel Foucault
Repensando a espacialidade
O conceito de Heterotopia é originalmente conhecido na ciência
medica para designar a posição anormal de um órgão ou tecido
caracterizado por uma anomalia genética ou um trauma, mas é
ressignificado por Foucault em duas referencias marginais presentes
em sua vasta produção acadêmica. Primeiramente no prefacio de As
Palavras e as Coisas ( 1966), no ano seguinte em uma
conferencia escrita na Tunisia e proferida ao Circulo de Estudos
Arquiteturais de París.
Basicamente, o conceito de Heterotopia, procura dar conta de mudanças
não reconhecidas no campo das ciências humanas quanto aos arranjos
de seus objetos e sujeitos, de seus métodos e conteúdos, enquanto
campo disciplinar, ou conjunto de arquivos. A aplicação deste
conceito não configura uma ciência ou especialização dentro de
qualquer disciplina, mas estabelece a possibilidade de uma leitura
ou redimensionamento de nossa relação com a própria noção de
espaço.
Pode-se dizer que uma heterotopologia, tal como proposta por
Foucault, sob o riso provocado pelo texto desconcertante de Borges,
pretende perturbar nosso conceito de identidade, nosso modo de
catalogar e representar o outro, os espaços de significação
linguísticos e a codificação funcional de um território. Afinal,
Heterotopia remete, ao lugar do sem lugar, ao inclassificável, que
contradiz a norma estabelecida. Nossas representações normativas e
utilitárias do espaço como objeto, não são universais, mas estão
sujeitas a rupturas, limiares, crises, que estabelecem um tempo e
espaço diferenciado do linear e convencionalmente estabelecido por
nossas representações mais cotidianas. Existe o devir, o
intempestivo...
Recorrendo ao prefácio aqui já mencionado, em um comentário sobre
sua inspiração i,
Foucault assim define esta inquietação heterótopica,
“As heterotopias
inquietam, sem duvida porque solapam secretamente a linguagem, porque
fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de
antemão a ‘sintaxe’, e não somente aquela que constrói as
frases- aquela, menos manifesta, que autoriza ‘manter juntas’ (ao
lado e em frente uma das outras) as palavras e as coisas. Eis por que
as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha
reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as
heterotopias (encontradas tão frequentemente em Borges) dissecam o
propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a
raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os mitos e imprimem
esterilidade ao lirismo das frases.” ii
Mas não é da linguagem que nos ocuparemos aqui, embora exista um
segundo texto do autor dedicado a Heterotopias no qual ele aplica o
conceito a dimensão espacial da linguagem e a construção de um
corpo utópico.iii
Para os objetivos deste artigo basta aqui dizer que uma eventual e
hipotética história “quase foucaultiana” dos espaços se
confundiria com um mapeamento da espacialização das relações de
poder a partir das relações de força configuradas pelas
tecnologias de biopoder configuradas em um determinado territòrio.
Compreenderia tal fantasiosa história tanto a macro politica das
normativas coletivas ou estatais, quanto as micro táticas de
resistência que brotam no habitat urbano molecular. É neste segundo
caso que as heterotopias propostas por Foucault se encaixam contra as
formas fixas e sedentárias de presença em um “espaço estriado”,
como diriam Deleuze e Guattari. O fato é que vivemos condicionados a
posicionamentos fixos em uma dimensão espacial qualitativamente
organizada a partir dos seus usos e recortes identidários inspirados
por uma racionalidade estreita e banalizadora.
As heterotopias, na ampla tipologia proposta por Foucault,
correspondem a um uso não banal dos espaços sociais, referem-se a
lugares reais que ganham utilizações e representações que se
contrapõem as normativas coletivas, provocando algum tipo de
deslocamento existencial. Podemos citar como exemplo os cemitérios
(heterotopias de cemitério, onde os mortos são incorporados a uma
cidade outra projetando as relações parentais em um plano
geográfico de memória) os hospitais, hospícios e prisões
(heterotopias de crise ou desvio, onde se isolam os delinquentes),
museus e bibliotecas (heterotopias do tempo que se acumula,
arquivos gerais).
O espaço é aqui pensado em sua dimensão relacional, em sua
heterogeneidade, como um campo de coordenadas e sítios irredutíveis
uns aos outros, mas que estabelecem vizinhanças, sobreposições,
usos e representações jurídico administrativas normativas (
territoriarizadas) ou transgressivas ( nômades ou heterotópicas).
2-Heterotopias: O barco através do espelho
No espaço contemporâneo, enquanto campo de vizinhanças, fluxos e
jogos de força, o lugar, a localização, torna-se crucial enquanto
referencia de identidade e orientação. Se a sociedade de controle
se define através de segmentações duras e sedentárias, em contra
partida, não há quem não transite por diferentes espaços e
lugares, estabelecendo compensatoriamente segmentações fracas,
nômades, para lembrar Deleuze e Guatarri em Mil Platôs.
Neste contexto, existem lugares que possuem a propriedade de estar em
relação com todos os outros, que invertem ou neutralizam o conjunto
de relações que designam ou refletem. Acabam se definindo, assim,
como um campo de experimentações (um sitio) ou, simplesmente, um
agenciamento maquínico desejante que transborda em linhas de fuga.
Não por acaso, o exemplo mais radical de heterotopia, segundo
Foucault é o navio,
“Bordéis e colônias são
dois tipos extremos de heterotopia, e se imaginarmos, afinal, que o
barco é um pedaço de espaço flutuante, um lugar sem lugar, que
vive por si mesmo, que é fechado em si e ao mesmo tempo lançado ao
infinito do mar, e que, de porto em porto, de escapada em escapada
para terra, de bordel a bordel, chega até as colônias para procurar
o que elas encerram de mais precioso em seus jardins, você
compreenderá porque o barco foi para a nossa civilização, desde o
Século XVI, aos nossos dias, . ao mesmo tempo não apenas,
certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é
disso que falo-hoje), mas a maior reserva de imaginação, O navio é
a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem barcos os
sonhos se esgotam, a espionagem ali substituí a aventura e a
polícia.” iv
Foucault usa aqui os bordeis e as colônias como exemplo de dois
tipos distintos e opostos de heterotopia que desapareceram em nossa
civilização. Os bordeis oitocentistas seriam heterotopias de
compensação (não de ilusão). Nestes espaços, a sexualidade
ilegal era abrigada, compartimentalizada, o que lhe proporcionava uma
aparente legitimidade social. Mas penetrar em tais lugares tinha o
sentido de ser ou estar excluído, constituía uma transgressão,
embora legitimada e reversível.
Quanto ás formas coloniais, Foucault tem em mente a primeira onda de
colonização do continente americano durante o século XVII. Tanto
nas colônias puritanas inglesas da américa do norte, quanto nas
colônias jesuítas da américa do sul, através das quais a
cristandade buscava moldar a geografia do novo mundo em função de
um ideal de perfeição da condição humana. Disciplinar o espaço
através de hábitos e ritos equivalia a fundar uma nova terra.
O barco, por sua vez, simboliza uma desterritoriarização intensa,
uma linha de fuga, um estar em transito, que perpassa vários sítios
e engendra múltiplos agenciamentos. De alguma forma, ele equivale ao
espelho que, em uma dada dimensão, representa a experiência
utópica, na medida em que projeta a imagem de alguém em um espaço
irreal, que lhe devolve sua própria visibilidade. Em outra dimensão,
entretanto, o espelho também simboliza a experiência heterotópica,
na medida em que igualmente permite que alguém se reconheça onde
está justamente através da sua projeção neste espaço virtual,
como uma espécie de duplo.
Sobre a imagem do barco, cabe ainda, na perspectiva das chamadas
ciências humanas, uma comparação entre a geografia histórica
proposta por Braudel com as cartografias construídas por Foucault.
Tal possibilidade é, por exemplo, sugerida por Durval Muniz de
Albuquerque Júnior,
“Braudel descreve uma
civilização na qual os barcos têm uma enorme centralidade, mas os
pensa apenas como instrumentos de desenvolvimento econômico e de
dominação política, de dominação colonial. Foucault pensa os
barcos como reversas de imaginação, um pedaço de espaço
flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que, embora
fechado em si mesmo, está lançado do mar, espaço liso por
excelência, difícil de ser estriado pelo poder. Braudel faz a
grande história dos Estados Nacionais, dos Estados territoriais,
grandes maquinas de sedentalização e teritoriarização, de prisão
dos homens à terra, à sua terra, mesmo quando enviados a viajar,
mesmo quanto vão em missão ao exterior. Foucault também fez essa
história, mas preferiu também ver nela as reservas de sonho, as
possibilidades dos nomadismos, de desterritoriarização, os lugares
de passagem que habitam por dentro dessas grandes maquinarias, como
as saunas gays californianas, lugares fora do lugar. Diz Foucault:
‘Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a espionagem
ali substitui a aventura e a polícia, os corsários e os piratas.”v
Trata-se aqui de escapar, no caso de Foucault, aos agenciamentos
maquínicos sedentários de categorias como desenvolvimento
econômico, organização social, ordem politica, etc. que sempre
conduzem a logica das estruturas. Contra elas é preciso buscar
desterritoriarizações e linhas de fuga que nos lancem a aventura de
dizibilidades outras. Trata-se de construír a margem das disciplinas
acadêmicas, um outro olhar sobre velhas questões e conceitos
convencionais a partir de uma perspectiva marginal as metanarrativas
dos modelos.vi
3-Interseções entre Foucault e Deleuze: A dobra ontológica
O espaço em que vivemos, no qual somos constantemente arrebatados
para fora de nós mesmos, de nossas vidas, o espaço que se constitui
como uma experiência cartográfica através da qual se passa de um
lugar a outro, de um tempo a outro, em múltiplos planos e tipos de
experiência, é o que define a espacialidade urbana como vivência
coletiva. Trata-se de uma paisagem complexa, cheia de interseções,
cruzamentos de linhas, pontos, onde não existem especificidades, mas
segmentalidades duras e flexíveis, populações, agenciamentos
coletivos, mas onde não existem sujeitos, mas apenas a cidade
através de seus fluxos e segmentos, rupturas e conexões. Foi
Deleuze, em um dos artigos reunidos em seu FOUCAULT, livro
publicado originalmente em 1986, quem batizou o autor de As Palavras
e as Coisas como um novo tipo de cartógrafo.
De fato Foucault nos oferece a possibilidade de pensar a realidade
social em termos de relação, de tensões, de configurações
espaciais de poder, através de uma cartografia politica dos espaços,
principalmente de suas margens e fronteiras, como no caso das
heterotopias que aqui discutimos e que remetem indiretamente a temas
que lhe são caros, como a loucura, a clinica e as prisões.
Como cartógrafo de um novo tipo, Foucault, tanto no período dito
arqueológico quanto genealógico de sua obra, estabeleceu diagramas
de força, construiu mapas de intensidade e densidade que esboçaram
um desenho novo das práticas sociais, das visibilidades e
dizibilidades dos saberes e experiências coletivas, onde o conhecer
se apresenta também como uma questão de localização, de abertura
de espaços ao pensamento. Trata-se, antes de tudo, de mapear o
poder; revelar o poder como um campo de forças complexo, como um
circuito que integra todos os espaços e os qualifica.
Segundo Deleuze, Foucault mostra que,
“....o próprio Estado
aparece como efeito de conjunto ou resultante de uma multiplicidade
de engrenagens e de focos que se situam num nível bem diferente e
que constituem por sua conta uma ‘microfísica do poder’. Não
somente os sistemas privados, mas as peças explicitas do aparelho de
Estado tem ao mesmo tempo uma origem, procedimentos e exercícios que
o Estado aprova, controla, ou se limita a preservar em vez de
instituir. Uma das ideias essenciais de Vigiar e Punir é que as
sociedades modernas podem ser definidas como sociedades
‘disciplinares’, mas a disciplina não pode ser identificada com
uma instituição nem com um aparelho, exatamente porque ela é um
tipo de poder, uma tecnologia, que atravessa todas as espécies de
aparelhos e de instituições para reuni-los, prolonga-los faze-los
convergir, fazer com que se apliquem de um novo modo.”vii
O poder é algo que circula, que só funciona em circuito, que
estabelece relações de sujeição que produzem sujeitos
sedentários. O poder está em todas as partes por que é algo que
define redes que extrapolam o próprio Estado. Ele personifica
relações estratégicas e estruturantes do jogo social. É algo
passível de ser planificado, cartografado.
Em uma entrevista reunida na coletânea Microfísica do Poder,
Foucault nos fala sobre o uso ou apropriação que faz de vários
conceitos correntes na geografia. Segundo ele, suas metáforas
geográficas lhe permitem estabelecer as relações existentes entre
o saber e o poder.
O saber pressupõe a imposição de condutas a uma multiplicidade
humana; o que se faz através de uma repartição de espaço tempo
como bem exemplificam as prisões e o hospital psiquiátrico. O saber
forma e organiza materiais, finaliza funções e define sítios.
Através dele cada época não preexiste aos enunciados que a
exprimem, nem transcende as visibilidades que preenche.
Discursividades e evidencias são os dois polos de uma nova
cartografia.
Deste modo, o saber torna-se uma questão espacial, geográfica
profundamente articulada com o poder. Isso acontece através de uma
dimensão informe que Foucault chama de diagrama. Segundo Deleuze,
uma de suas grandes inovações do método apresentado em Arqueologia
do Saber seria a distinção entre duas espécies de formação
politicas: as discursivas, ou de enunciados, e as não discursivas,
ou de meios. Seu livro seguinte, Vigiar e Punir dedicou-se a
estas últimas formações, que representam a forma do visível que
contrasta com a forma dos enunciados. O dispositivo panóptico
analisado por ele nesta obra é um diagrama ou, poderíamos ainda
dizer como Deleuze, uma maquina abstrata, já que o diagrama se
define a partir de matérias informes, sem distinção entre conteúdo
e expressão, entre o discursivo e o não discursivo. Ele é feito de
densidades e intensidades. É algo que nos permite pensar o poder
além da noção de estrutura, é algo que faz fazer e falar.
Por outro lado, existe uma disjunção entre o falar e o ver, entre o
visível e o enunciável, como aponta Deleuze:
“ Em suma, existem
procedimentos (procédés) enunciativos e processos maquinicos. Há
uma abundância de questões que constituem, de cada vez, o problema
da verdade. O Uso
dos Prazeres tira a
conclusão de todos os livros precedentes quando mostra que o
verdadeiro só se dá ao saber através de ‘problematizações’ e
que as problematizações só se criam a partir de ‘praticas’,
práticas de ver e práticas de dizer. Essas práticas, o processus
e o procedimento (procédé)
constituem os processos (procédures)
do verdadeiro, ‘uma história da verdade’.”viii
Em sua leitura da obra de Foucault, Deleuze parte de Vigiar e
Punir e da Arqueologia do Saber, para produzir
uma releitura destas duas obras a partir da História da
Sexualidade. Em especial de seu segundo volume: O Uso
dos Prazeres, que, para ele, mais diretamente representaria
um deslocamento em relação à perspectiva das obras anteriores que
permanecem prisioneiras do impasse saber/poder. Para Deleuze, essa
obra acrescenta um terceiro eixo, distinto do eixo do saber e do
poder. Trata-se do eixo do pensamento, que se configura através da
disjunção do ver e do falar. Parafraseando o autor, pensar é fazer
com que o ver e o falar atinjam seus limites de tal forma que ambos
estejam em um limite comum que os relaciona. Pensar vem sempre do
fora. O pensamento não encontra nada em si mesmo, exceto este
duplicar o fora que nele reside como “impensado”. Pensar é
dobrar, duplicar o fora como um dentro que lhe é coextensivo.
Mas como alerta Deleuze,
“Esse lado de fora
informe é uma batalha, é como uma zona de turbulência e de
furacão, onde se agitam pontos singulares, e relações de força
entre esses pontos. Os estratos apenas recolhiam, solidificavam a
poeira visual e o eco sonoro de uma batalha que se travava por cima
deles. Mas, em cima, as singularidades não tem forma e não são nem
corpos visíveis nem pessoas falantes. Entramos no domínio dos
duplos incertos e das mortes parciais, das emergências e dos
desvanecimentos (zona de Bichat). É uma microfísica.”ix
O pensamento afeta a si próprio a partir do interior do exterior.
Assim, a topologia do pensamento se consuma dobrando-se ao lado de
fora ao lado de dentro, induzindo a interioridades e exterioridades
que definem um encontro do Si através do espaço e do tempo mediado
pelos estratosx.
Pensar é este alojar-se no estrato, no presente que lhe serve de
limite, mas buscando pensar de uma outra forma ( futuro), tornando o
passado ativo e o presente um fora. Dito de modo
diferente, pensar de uma outra forma (futuro) é pensar sua própria
história (passado) para libertar-se daquilo que atualmente pensa
(presente). Isso altera, evidentemente, o que tradicionalmente
compreendemos por pensamento, ou seja, uma faculdade inata. Mas é
exatamente essa estratégia que Deleuze vislumbra no “ultimo
Foucault” através de seu retorno aos antigos gregos e do resgate
do cuidado de si em O Uso dos Prazeres. Neste sentido o
cuidado de si funciona como uma linha de fuga.
O que Foucault nos oferece através dos dois últimos volumes
publicados em vida de sua História da Sexualidade é uma releitura
dos velhos autores gregos onde sua originalidade está apenas no fato
de terem inventado uma relação ou campo de forças construído pela
rivalidade entre homens livres. Através do cuidado de si, o governo
dos outros se torna uma condição do governo de si próprio. Os
gregos criaram uma dobra ontológica onde o saber, o poder e o Si
estão implicados como uma tripla raiz de problematização do
pensamento.
4- Heterotopias e Rizoma: o navio que nos habita
Retornemos agora a imagem do navio como a heterotopia por excelência
e como fecunda reserva de imaginação.
A época medieval, segundo Foucault em sua breve conferencia sobre o
tema, define o espaço através do ponto como coordenada em uma
espacialidade heterogênea e hierarquizada em um plano finito. A
partir do sec. XVII, tal espaço começou a ser substituído pela
extensão infinita que, na época contemporânea, vem sendo
tensionado por um novo tipo de espaço, que é o espaço virtual.
Segundo Foucault, as codificações topológicas de lugar e de
localização em uma extensão territorial, passaram a ser concebidos
em termos de demografia, fazendo emergir problematizações em torno
da questão da vizinhança, tipo de estocagem e circulação de
pessoas e coisas. O espaço agora se oferece a nós como uma questão
de posicionamento e funcionalidade, exigindo toda uma rede de saber
para sua determinação e formatação como uma territoriedade
compartimentada através de usos e funções diversas. É como
alternativa a esses usos que as heterotopias surgem como um
posicionamento outro.
Foucault descreve suscintamente em sua conferência estes vários
posicionamentos, mas prioriza o conjunto de relações que definem
especialmente os posicionamentos de passagem, os sítios de paradas
provisórias ou de trânsito, como as ruas, os cafés, a praia ou,
simplesmente o trem ou o ônibus. Falamos de espaços de
transitoriedades que perpassam outros espaços, estabelecendo
ligações e circulação, linhas fortes e fracas, dobras entre o
interior e o exterior, articulando espacialidades e pensamento
através de estratégias tanto de assujeitamentos quanto de
subjetivação.
Mesmo espaços tradicionalmente representados como privados, fechados
ou semi fechados, e dedicados a um posicionamento de repouso, como a
casa, o quarto ou o leito, pressupõem uma rede de relações com o
lado de fora, são lugares através dos quais se passa de um ponto a
outro. Nossa relação com o espaço é definida pelo movimento, pela
sobreposição de diversos posicionamentos e agenciamentos. Como
diria Deleuze e Gattari, as pessoas, os espaços e as formações
históricas são atravessadas por linhas que não se encerram como
pontos em uma estrutura, mas florescem como rizomas. Cada uma destas
linhas produzem movimentos específicos de territoriarização,
reterritoriarização e desterritoriarização.
É possível uma cartografia das heterotopias urbanas
desenhando sistemas a-centrados, distituídos de hierarquias e
construídos a partir de vizinhanças e linhas de fuga que redefinem
constantemente o jogo de forças do espaço estriado da urbs.
Mapeia-se, assim, um território existencial ocupado por modos de
viver e expressividades. A paisagem é povoada por personagens que
criam com e através dela relações de pertencimento. Os sítios
heterotopicos, em suas diversas modalidades, definem-se como um lugar
de passagem e de produção de subjetividade. Eles sobrepõem o eixo
do pensamento aos eixos do saber e do poder na construção do espaço
social como um domínio ao mesmo tempo real e virtual.
É esta ideia de movimento, de transitoriedade entre linhas diversas,
que define um dobrar do espaço sobre si mesmo, que melhor explica o
navio como uma imagem heterotópica radical, como um contra espaço
que nos faz deslizar sobre superfícies. Afinal, como explica
Foucault, as heterotopias justapõem em um mesmo lugar vários
espaços incompatíveis entre si, elas definem multiplicidades,
inventando o “fora do tempo” de uma dada sociedade através de um
recorte espacial. Como linhas de fuga podem funcionar como espaço
possível de criação de autonomia e subjetividade.
Existe uma intervenção apócrifa do espaço urbano, um habitar
nômade que floresce no meio da paisagem, que estabelece conexões,
define agenciamentos, circuitos, superposições limiares, passagens
e intensidades através das quais irrompe o efêmero através de
afectosxi,
intensidades e fluxos em diferentes velocidades.
5- Da impossibilidade de uma conclusão ou sobre um “conceito
que ri”
A ideia de heterotopia busca dar conta de fenômenos que seriam
normalmente marginais e inconstantes, que apontam para eminencia de
novas representações do espaço social que contrariam os arranjos
de poder, as identidades e lugares dominantes em nossas praticas
discursivas orientadas por uma racionalidade utilitária. Ela se
destina a fugir do convencional, do cotidiano, do pensar normativo e
sedentário de um pensamento arborecente. Aplica-se a situações
onde o espaço público não é ordenado a partir de uma disciplina
estatal e nem mesmo de um objetivo macro politico, mas a partir de
múltiplas espacialidades sobrepostas em um mesmo lugar a partir das
necessidades de seus usuários e de sua capacidade de produzir e
reproduzir este espaço de moto auto gestionário.
Neste sentido, a ideia de heterotopia é deliberadamente vaga e
propositalmente provocativa. Ela parte da constatação da
imaterialidade das representações sociais do espaço como
estratégia de formatação de sua materialidade. Recusa o espaço
como um constructo mental, as representações utópicas tão comum
entre os urbanistas e agentes públicos, que aspiram a uma
racionalização morfológica e harmônica do espaço urbano a partir
de convenções normativas.
A ideia de heterotopia é risonha e lança luz sobre o inteiramente
outro de um espaço imanente e criativo que atualmente floresce
especialmente nos vazios urbanos contra a cidade formal e seus
silêncios. Tais espaços só podem ser avaliados através das
necessidades que saciam e das estratégias de subjetivação e
agenciamentos que lhe formatam a partir das profundezas de sua
superfície.
i
Trata-se de uma referencia ao
O idioma
analítico de John Wilkins
(https://2serieintegralpaulinia.files.wordpress.com/2018/02/jorge-luis-borges-o-idioma-analc3adtico-de-john-wilkins.pdf)
e ao Livro dos
Seres Imaginários
de Jorge luís Borges, originalmente publicado em 1957, onde a
partir da referencia a uma fictícia enciclopédia chinesa, o autor
apresenta um insólito bestiário que embaralha qualquer
classificação lógica ou racional e provoca estranheza ao pensar
ocidental, para o qual é ininteligível, insinuando outros modos de
conhecimento. Ver:
BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. Tradução
Carmen Vera Cirne Lima. 6 ed. São Paulo: Globo, 1989.
ii
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins
Fontes, 1995, p.8
iii
Sobre o assunto ver FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as
heterotopias. Posfácio de Daniel Defert. [tradução Salma Tannus
Muchail]. São Paulo: n-1 Edições, 2013a.
iv
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: ______. Ditos e Escritos III
– estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 421 et.seq.
v
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de, Ás Margens d’O Mediterraneo:
Michel Foucault, historiador dos espaços in Cartografias de
Foucault. BH: Autentica Editora, 2008 ( Coleção estudos
Foucaultianos) p. 106 et seq
vi
Sobre o sentido das heterotopias, Foucault esclarece que ele não
é dado pela formulação de uma “ciência”, palavra tão
pepreciada hoje em dia, mas por uma espécie de descrição
sistemática, por uma leitura desses espaços ou lugares
diferentes, que funcionam como uma contestação simultaneamente
mítica e real dos espaços em que vivemos.
vii
DELEUZE, Guilles,Foucault. SP: Editora Brasiliense, 1988, p.35
x
Em Mil Platôs Deleuze e Guattari definem os estratos como o “juízo
de Deus”, pois são planos de organização, os componentes
abstratos de qualquer articulação. A estratificação equivale a
criação do mundo a partir do caos, compreendem uma dupla
articulação, uma dupla pinça, entre as formas e as substâncias,
entre os códigos e os meios, um conteúdo e uma expressão, que
originam agenciamentos. Nestes, a expressão torna-se um regime de
signos ( agenciamento de enunciação) e o conteúdo torna-se um
sistema pragmático traduzido por ações e paixões (agenciamento
maquínico).
xi
O afecto não é a passagem de um estado vivido a um outro, mas um
devir não humano do homem. [...] não é uma imitação, uma
simpatia vivida, nem mesmo uma identificação imaginária. Não é
a semelhança, embora haja semelhança. É antes uma extrema
contiguidade, num enlaçamento entre duas sensações sem semelhança
[...] in DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia?.
Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 224-25).
Cabe ainda aqui como
referencia uma segunda citação:
“ (...) Os perceptos
não são percepções, são pactores de sensações e de relações
que sobrevivem aqueles que os vivenciam. Os afectos não são
sentimentos, são devires que transbordam aquele que passa por eles,
tornando-se outro (...). O afecto, o percepto e o conceito são três
potências inseparáveis, potências que vão da arte à filosofia e
vice versa (...): o ritornelo implica as três potencias. In
DELEUZE, Guilles. Conversações. SP: Editora 34, 2004, p. 171