quarta-feira, 15 de outubro de 2008

MEMÓRIA E DEVANEIO SEGUNDO BACHELARD


Em sua Poética do Devaneio, ao invocar as “cânticos de ilusões”, que nos conduzem a mais profunda experiência da relação existente entre imaginação e memória, Gaston Bachelard nos sugere uma reflexão sobre a experiência poética como uma espécie de “não lugar do tempo vivido”, como um "não factual da memória" que define nossas leituras e sentimentos biográficos tão profundamente quanto os acontecimentos concretos.
O que está em jogo aqui, não é a objetividade de qualquer lembrança possível de um dado momento ou situação vivida, mais a impessoalidade de certas lembranças, uma espécie de sentimento virtual de mundo que nos transcende em um irracional apreensão passional das coisas; como se fosse possível contemplar a aura mágica que envolve as configurações mais autênticas de nossas imagens de realidade .
Uma das principais funções da imaginação, afinal, é constantemente nos reapresentar o próprio mundo como significado vivido, como uma invenção ontológica... constantemente renovada, recriada...

Quando mais mergulhamos no passado, mais aparece como indissolúvel o misto psicológico memória-imaginação. Se quisermos participar do existencialismo do poético, devemos reforçar a união da imaginação com a memória. Para isso é necessário desembaraçar-nos da memória historiadora, que impõe os seus privilégios ideativos. Não é uma memória viva aquela que corre pela escala de datas sem demorar-se o suficiente nos sítios da lembrança. A memória-imaginação faz-nos viver situações não factuais, num existencialismo do poético que se livra dos acidentes. Melhor dizendo, vivemos um essencialismo poético. No devaneio que imagina-se lembrando-se, nosso passado redescobre a substância. Para lá do pitoresco , os vínculos da alma humana e do mundo são fortes. Vive então em nós não uma memória de história, mas uma memória de cosmos.”

(Gaston Bachelard. A poética do Devaneio/ tradução de Antônio de Pádua Danesi. SP: Martins Fontes, 1996, p.114)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

CRÔNICA RELÂMPAGO XXXVII

As mas importantes mudanças que ocorrem na vida de um individuo, ocorrem silenciosamente; desafiam o acontecer cotidiano. Só nos damos conta delas quando nada mais é possível fazer para mudá-las.
Tal peculiaridade deve-se ao fato de ocorrerem gradativa e eventualmente no correr dos dias, como um descreto ocorrer de sombra e acaso no mais fundo da espontaneidade dos atos elementares.
As mais importantes mudanças que sofremos não brilham no rubro acontecer do mundo em tempo presente; surgem sempre como passado, como fato consumado, que nos consome na surpresa de nos sabermos repentinamente outros...
O estranhamento e deslocamento do cotidiano no fazer-se dos ciclos, períodos e etapas do acontecer da vida, é aquilo que mais profundamente revela o dinamismo da condição humana entre pessoas e identidades coletivas...

SONHOS E REALIDADE

Há sonhos
Que duram mais
Do que a própria vida
Existindo
Através dos homens
No sem tempo da história.

Na liberdade de devaneios
Tudo coexiste e se faz
Nas direções infinitas
Do vento.

Luas e noites acontecem,
enquanto vestido de sono
me faço parte da paisagem
sob a sombra do velho carvalho.

SOBRE FADAS E FANTASIAS


Uma alada ninfa
Guarda a magia
De uma antiga fonte
Como uma estrela pequenina
Entre os segredos
Da terra e do céu.

As vezes,
A vejo no bosque
Buscando acasos
E ocasos
Entre as flores
E belezas nos olhos
Da madrugada.

Magias me correm
Em estados d’alma
E me guardo,
Aguardo,
No impreciso
De um sentimento de eternidade,
o ocorrer de humildes liberdades
no colo de terras e luas nuas.

domingo, 12 de outubro de 2008

DESAFIO BIOGRAFICO

Fixo noites em meus silêncios.
Sigo manhães que não me viram.

Assim defino
Os toscos frutos dos atos,
O provisório fazer-se
De meus eus futuros.

Não estou entre aqueles
Que sonham verões e auroras.

Sou feito de invernos,
Infernos, Luas e ventos
No desafio da liberdade
Que me conduz
Através e além
De mim mesmo
No infinito acontecer do mundo.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O MAL ESTAR DA LINGUAGEM E AS CONVENÇÕES DO REAL


“...pois hoje um número enorme de seres humanos já não domina a fala: exprimem-se por meio das frases dos jornais e das mídias, dizendo sempre a mesma coisa, sem contudo serem os mesmos.”


Elias Canetti- O Oficio do Poeta in A Consciência das Palavras


Na vida cotidiana a linguagem funciona tanto quanto um sistema de trocas simbólicas e comunicativas quanto um estranho meio de geração de equívocos e enganos. O uso rasteiro e pragmático que lhe damos em uma mesa de bar, na banalidade de uma ligação telefônica ou na conversa forçada durante uma viagem de elevador, são mais do que suficientes para atestar os concretos limites da utilização oral de uma língua.
É sustentável o argumento de que naquele estranho e impreciso amalgama de realidades que rotulamos de senso comum nos movemos em um campo de signos, símbolos e significados imprecisos ou inorgânicos no mais rudimentar “acriticismo” da fala e as discussões sobre a natureza e as possibilidades da linguagem não podem ser reduzidas a esse campo.
Tendo, ao contrário, a levar demasiadamente a sério o “senso comum” e seus profundos arcaísmos. No que diz respeito ao tema desta postagem, parece-me suficiente a constatação simples e falsamente obvia de que na vida cotidiana vivenciamos uma espécie de divorcio entre palavra e pensamento, o quanto a atividade da reflexão é excepcional ou na melhor das hipóteses circunstancial para o homem médio em seu cotidiano. Mas mesmo que não pare para pesar sobre isso, o fato é que para esse indivíduo médio o mundo é um pequeno conjunto de certezas verbais e referências fixas de realidade traduzidos e socializados pela fala. Em outras palavras, nada mais conservador do que o dinamismo elementar de nossas rotinas cotidianas. Indo um pouco mais adiante diria que a prisão do falar torna para muitas pessoas o mundo das letras escritas uma terra incógnita. Isso não deve causar grande surpresa se considerarmos que a construção e massificação de uma cultura do livro só foi possível no Ocidente ao longo dos últimos séculos e de modo muito descontínuo.A verdade é que a domesticação do livro e a experiência profunda da consciência através da palavra escrita parece não ser totalmente integrável a cultura e a vida cotidiana das sociedades modernas e contemporâneas.
Parece-me interessante como uma descompromissada mais significativa ilustração disso, uma referência de Georges Jean em seu manual intitulado “A Escrita: Memória dos Homens”:

“ Em fins do século XVI, quando a Contra Reforma e a Inquisição tomam a frente e perseguem as idéias novas, a Holanda protestante torna-se terra de exílio do livro, dos tipógrafos e dos impressores da Europa, onde o absolutismo real adapta-se mal à independência de espírito desses homens eruditos que, desde 1550, desprezando o latim, empenhavam-se em imprimir e difundir os clássicos gregos e latinos nas línguas nacionais.
A lembrança do martírio de Etienne Dolet está ainda viva na memória deles. Esse impressor lionês foi queimado em praça pública, em Paris, a 3 de agosto de 1546. Suas publicações de Rabelais, de Marot e, sobretudo, do Manuel du chevalier chrétien ( Manual do cavaleiro cristão) de Erasmo desencadearam a fúria dos inquisidores. A Holanda torna-se, então, o celeiro de uma literatura proscrita em qualquer outro lugar. Elzevir, não deixando passar ocasião oportuna, popularizou as edições de formato menor- as edições de bolso- anteriormente lançadas por Manuce em Veneza.
(...)
Provavelmente devido a irritação causada pelo sucesso do livro holandês, o Rei Sol é levado a prescrever a reforma da imprensa francesa, assim como já havia mandado construir o terrível Hôpital General ( O Hospício Geral), destinado a aprisionar os loucos, os pobres e os vagabundos.”


( George Jean. A Escrita: memória dos Homens. RJ: Objetiva, 2002, p. 101-102)
Em nosso mundo contemporâneo, cujas trocas simbólicas são cada vez mais imagéticas e a palavra escrita reduzida a “informação”, a experiência redentora da leitura, tão temida no séc. XVI, já não passa de um fenômeno pouco evidente ou então, simplesmente, muito pouco crível, constatação sobre o qual não cabe nenhum juízo de valor.
O que realmente me preocupa é que, mesmo hoje em dia, aquilo que se diz ou se escreve, em termos de vida cotidiana, ainda possui certa “força de verdade”, a ilusão de que todo discurso tende a espelhar algo de verdadeiro. Se um tablóide de grande circulação publicasse em sua primeira página, por mera travessura alguma noticia absurda sobre o fim do mundo, ou a aparição de um ET, dependendo do rigor de redação da reportagem, seria crível a maioria absoluta de seus leitores. De modo semelhante, acredita-se que a publicação de uma norma moral como decreto-lei do poder executivo de um governador ou presidente, é suficiente para transformar a realidade moral e concreta...
O equivoco gerado pelo uso da palavra em nosso dia a dia passa em grande medida pela tendência para se acreditar ingenuamente que aquilo sobre o que falamos corresponde de algum modo a realidade, quando não passa de convenções sociais arbitrárias ; muitas vezes vazias.

ETICA E REALIDADE

Há silêncios
Que são mais urgentes
Do que qualquer palavra .

Há fatos dos quais fugimos
Pelo medo ao erro
De um grito.

Como saber
O adequado gesto ou fala
Quando o relativo certo
Se faz por motivos
Inequívocos e errados?

Mas nenhuma moral
Vale mais
Que o instinto que aflora
No absurdo intimo
De um indivíduo.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Especulações sobre uma ilha ( Avalon)...


Entre espaços e silêncios
Me deixo no mundo
Naufrago
Buscando uma ilha
De alma e coisas,
Um lugar sem nome,
Tempo e espaço,
Para guardar minha alma
E explorar meus sonhos,
Vivendo realidades de momento
Até o limite do adeus
Que me cala em imperfeita realidade
De finitude e êxtase .

LITERATURA INGLESA XXXVI


Critico e escritor britânico, Peter Ackroyd ( 1949- ...) é um dos mais notáveis autores contemporâneos da literatura inglesa. Dentre seus trabalhos merecem destaque O grande incêndio de Londres (1982), O último testamento de Oscar Wilde (1983) e Hawskmoor (1985), bem como suas biografias sobre Ezra Pound (1984), T.S. Eliot (1984) e Dickens (1990).
Pode-se dizer que a obra de Ackroyd, em seus melhores momentos, é um exemplo muito bem sucedido de meta-ficção, no sentido pós moderno do termo, isto é, uma apropriação/re-criação do passado onde arte e ciência se misturam de modo a produzir uma leitura da História sem as amarras e rigores dos protocolos da historiografia oficial mas nem por isso menos rigorosa.

Como observa LINDA HUTCHEON em seu clássico A Poetica da Pós Modernidade,

“ O romance nos lembra, conforme o faz Roland Barthes muito antes ( 1967), que é possível considerar que o século XX deu origem ao romance realista e à história narrativa, dois gêneros que tem em comum o desejo de selecionar, construir e proporcionar auto-suficiência e fechamento a um mundo narrativo que seria representacional, mas ainda distinto da experiência mutável e do processo histórico. Atualmente, a história e a ficção compartilham uma necessidade de contestar esses mesmos pressupostos.”
( Linda Hutcheon. Poetica do Poós Modenismo: História, Teoria, Ficção/ tradução de Ricardo Cruz.RJ Imago Editora, s/d, p.146)

Em outras palavras, a aproximação e diálogo, cada vez maior, em curso entre a narrativa historiografica e a narrativa literária, assenta-se sobre a premissa de que ambas adotam em diferentes contextos uma estrategia represencional da realidade e do mundo. Na medida em que ocorre uma redefinição dos sentidos e significados de aplicabilidade dos seus protocolos e estrategias narrativas transcende-se o dilema existente entre o verdadeiro ( cientifico) e o falso ( ficcional) através na nada simples constatação de que aquilo que conhecemos como processo ou realidade histórica é um universo mutável, plastico ou condicionado a uma pluralidade quase infinita de interpretações e infoques que, no final das contas, reduz-se a uma construção ou invenção de historiadores.

A partir de tal ponto de vista, fica mais fácil apreender em profundidade o TESTAMENTO DE OSCAR WILDE de Ockroyd, ficção historico/biográfica sobre os ultimos anos do dramaturgo e romancista irlandes em seu derradeiro exilio parisiense. Mesmo sabendo que se trata de uma reconstrução ficcional do ultimo ano de vida do celebre autor, não podemos ignorar o quanto sua narrativa nos permite uma cognição/apropriação biografica do autor e de sua obra que, embora não passe de uma leitura possivel, é incontestavelmente pertinente como “conhecimento” de Wilde.
Seria para mim impossivel falar sobre Ockroyd sem abordar tema tão relativamente polêmico. Mas concentrando-me no sabor de seu aqui citado romance, compartilho um pequeno e interessante fragmentodeste livro realmente singular:
“... Minha primeira obra realmente significativa foi O retrato de Dorian Gray, não se trata de um début, mas foi quase tão bom: um escândalo. Nem poderia ser de outra forma: eu queria esfregar os rostos de de minha geração em seu próprio século, ao mesmo tempo que queria criar um romance que disafiasse os cânones da ficção inglesa convencional. O livro poderia ter sido escrito em francês, pois tenho a impreção de que seu encanto está no fato de que é absolutamente desprovido de qualquer tidpo de sentido, assim como não se caracteriza por nehuma moral em voga. É um livro estranho, cheio de vivacidade e da estranha alegria com que foi escrito. Escrevi-o depressa e sem nenhumna preparação séria e, como resultado, minha personalidade inteira está em algum ponto dele: mas acho que não sei onde, exatamente. Existo em todas as personagens, embora não possa pretender compreender as forças que as impulsionam. A única coisa que percebi perfeitamente, enquanto ia escrevendo, foi a necessidade de que acabasse em desastre: eu não podia revelar um mundo daqueles sem assistir a seu colápso em meio a vergonha e ao desastre.
No inicio fiquei surpreso com a reação hostil provocada por Doriam Gray, e foi só depois de ter concluido essas primeiras obras que percebi o que havia feito: tinha efetivamente desafiado a sociedade convencional em todas as frentes possíveis. Tinha ridicularizado susas pretenções artisticas e escarnecido de seu moralismo social; mostrara os casebres dos pobres e as casas dos depravados, mas tambem mostrara que em seus próprios lares tambem se abrigavam a história e a presunção. É nessa época que situo minha derrocada- foi o momento em que as portas da prisão se abriram para mim e ficaram esperando que eu chegasse.”


(Peter Ackroyd. O tyestamento de Oscar Wilde/ tradução de Heloisa Juhn.RJ: Editora Globo, 1987, p.153 ).

REALIDADE E FABULAÇÃO

O imaginário contemporâneo pressupõe a fabulação como uma de suas mais autênticas expressões; não a fabulação no sentido de uma evasão da realidade convencional pura e simplesmente, mas como um verdadeiro questionamento da própria natureza da verdade como principio da consciência de todas as coisas, arbitrária premissa de nossas certezas cotidianas e experiência sensível da realidade.
A atração e fascínio exercido pelo “fantástico”, pelo “supra” ou “meta real” que povoa a tela do cinema, as páginas da literatura ou o universo mágico dos vídeos games, denunciam uma valorização irracional e constante de um outro principio de realidade, uma necessidade humana da experiência do símbolo como linguagem e referencial que extrapola o mundo formal de nosso dia a dia e, paradoxalmente, parece integrá-lo através de nossos padrões de consciência. Nesse sentido, não considero possível estabelecer com relação a fantasia um divorcio com o que convencionamos chamar de realidade. Penso, ao contrário, que a experiência da fantasia é fundamental para qualquer definição de realidade. Basta pensar, por exemplo, que entidades verbais como um determinado estado nação e uma empresa não passam de uma invenção, uma convenção imaginativa cuja “realidade” asseguramos na medida em que acreditamos nela e a fazemos concretamente acontecer ao obedecer uma serie de protocolos.