A coletânea de ensaios do historiador britânico Peter Burke, VARIANTES DE HISTÓRIA CULTURAL, originalmente publicada no Reino Unido e nos Estados Unidos em 1997, é uma referência indispensável não somente para historiadores, mas também para todos aqueles que, de algum modo, refletem sobre as transformações contemporâneas dos usos e significados da cultura.
Especial atenção merece o ensaio Unidade e variedade na História Cultural que, mais do que realizar um balanço historiográfico, analisa as tendências e perspectivas atuais do fenômeno cultural.
A pluralidade, sincretismos e hibridismos culturais atualmente em pauta diante das múltiplas dinâmicas introduzidas pelo fenômeno das globalizações contemporâneas de modo geral lançaram novas luzes sobre a construção da modernidade e sua correspondente e complexa “economia mundo”. Afinal, a experiência da modernidade foi, entre outras coisas, uma experiência de fronteiras, tensões e trocas culturais sem procedentes no mundo ocidental.
Deixando falar o autor:
“... Para retornar a linguagem “tradicional”, os indivíduos talvez tenham acesso a mais de uma tradição e optem por uma em vez de outra segundo a situação, ou se apropriem de elementos de duas para fazer alguma coisa por conta própria. Do ponto de vista “êmico”, o que o historiador precisa examinar é a lógica subjacente a essas apropriações e combinações, os motivos locais dessas opções. Por isso alguns historiadores tem estudado as respostas de indivíduos aos encontros entre culturas, em especial aqueles que mudaram de comportamento- quer os chamados “convertidos”, da perspectiva de sua nova cultura, ou “renegados”, do ponto de vista da antiga. A questão é estudar esses indivíduos- cristãos que viraram mulçumanos no Império Otomano, ou ingleses que viraram índios na América do Norte- como casos extremos e especialmente visíveis de resposta a situação do encontro e concentrar-se nas maneiras como eles reconstituíram suas identidades. As complexidades da situação são bem exemplificadas pelo estudo de um grupo de negros brasileiros, descendentes de escravos, que retornaram a África Ocidental porque a consideravam sua pátria, e descobriram que os habitantes locais os consideravam americanos.”
(Peter Burke. Unidade e Variedade na História Cultural. in Variedades de história cultural./ Tradução de Aldo Porto. RJ, Civilização Brasileira, 2000, p. 264)
No que diz respeito a nossa contemporaneidade cultural Burke acrescenta:
“ .... Retomemos a situação de hoje. Alguns observadores ficam impressionados com a homogeneização da cultura mundial, o “efeito coca-cola”, embora muitas vezes não levem em conta a criatividade da recepção e transposição dos sentidos discutidas antes neste capitulo. Outros vêem mixagem ou ouvem pidgin em toda parte. Alguns acreditam poder discernir uma nova ordem, a “creolização do mundo”. Um dos grandes estudantes da cultura em nosso século Michail Bakhtin, costumava enfatizar o que chamava de “heteroglossario”, em outras palavras, a variedade e conflito de línguas e pontos de vista dos quais, segundo sugeriu, se desenvolveram nossas formas de linguagem e novas formas de literatura ( em particular o Romance).
Retornamos ao problema fundamental de unidade e variedade, não apenas na história cultural, mas na própria cultura. É necessário evitar duas supersimplificações opostas: a visão de cultura homogênea, cega às diferenças e conflitos, e a visão de cultura essencialmente fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios pelos quais todos criamos nossas misturas, sincretismos e sínteses individuais ou de grupo. A interação de subculturas as vezes produz uma unidade de opostos aparentes. Feche os olhos e ouça por um momento um sul-africano falando. Não é fácil dizer se o locutor é negro ou branco. Não vale a pena perguntar se as culturas negra e branca na África do Sul compartilham outras características, apesar de seus contrastes, conflitos, graças a séculos de interação?
Para alguém de fora, historiador ou antropólogo, a resposta é sem a menor duvida “sim”. As semelhanças parecem exceder em peso as diferenças. Para os de dentro, contudo, as diferenças talvez sejam mais importantes que as semelhanças. É provável que essa questão sobre diferenças em perspectiva seja válida para muitos encontros culturais . Portanto, deduz-se que uma história cultural centrada em encontros não deve ser escrita segundo um ponto de vista apenas. Nas palavras de Mikhail Bakhtin, essa história tem de ser “polifônica”. Em outras palavras, tem que conter em si mesma várias línguas e pontos de vista, incluindo os vitoriosos e os vencidos, homens e mulheres, os de dentro e os de fora, de contemporâneos e historiadores.”
( Idem, p.266-267)