"(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou
os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual
nos queremos apoderar."
Michel Foucualt, A ordem do
discurso
Inspirando-me, mas transbordando
as questões colocadas na Ordem do Discurso de Michel Foucualt, digo que o ato
de fala é aquilo que se produz através de um ou vários enunciados. Não é o
dizer-se de um sujeito, mas o acontecer de um discurso, seu objeto e sua meta
enquanto realidade discursiva é a normatização, a configuração da “palavra possível”
como expressão da verdade.
O discurso é a linguagem assumida
pelo sujeito da fala, sendo o sujeito aquele lugar vazio da enunciação que
apenas desvela o sentido que o antecede, que estabelece através do seu ato, a
miragem de um significado histórica e socialmente possível em determinada
momento ou contexto coletivo.
Há relações de força
inconscientes na produção do saber/poder que nos define em relação aos outros
em função da posição discursiva que ocupamos, do atendimento ou não de certas expectativas
sociais, protocolos de fala e configurações
da verdade.
Por isso o desviante, o dizer da
loucura é tão intrigante. Sua fala, ao
fugir ao consenso racional, torna-se ininteligível e sem valor, porque não corresponde
a nossas expectativas. Como pratica
social o discurso produz relações de inclusão/exclusão, condicionados a um
regime institucionalizado de verdade.
O niilismo dadaísta, do qual o surrealismo e sua escrita automática são uma derivação, através de uma apropriação
psicanalítica e irracional, quis por em cheque o dizer das coisas, a normatização
racional. Assim estabeleceu uma estratégia de fuga a prisão dos protocolos de
fala estabelecidos pelo racionalismo reinante. Mesmo hoje, cem anos depois das
vanguardas artísticas de inicio de século XX, ainda nos insurgimos de forma
inconclusiva contra os consensos racionais. Neste sentido, nada mais apropriado
do que invocar Artaud e seu desesperado grito de existência contra os muros da
ordem discursiva:
“Onde cheira a merda cheira a ser.
(...) Então o homem recuou e
fugiu.
E então os animais o devoraram.
Não foi uma violação,
ele prestou-se ao obsceno
repasto.
Ele gostou disso
e também aprendeu a agir como
animal
e a comer seu rato.”
(ARTAUD,
Antonin. Para acabar com o Julgamento de Deus. IN: WILLER, Cláudio. Escritos de
Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 153)
Artaud, convida a vertigem, ao
limite da palavra, a transgreção. Sua fala é um lugar privilegiado de criação,
de transbordamento da linguagem, cuja nervura ele busca através de seu próprio ser.
Em poucas plavras, a fala pode se insurgir contra o discurso, recusar seu próprio
lugar. Ela pode tornar-se “literatura” contra a pretensão à verdade.
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