domingo, 21 de setembro de 2008

JUNG E O ULISSES DE JAMES JOYCE


Uma das mais criativas interpretações do significado do Ulisses de James Joyce foi ao meu ver a realizada por Jung em um breve ensaio literário originalmente publicado em Berlim no ano de 1932. Nele o autor de modo realmente instigante explora os significados desta verdadeira obra prima da literatura universal enquanto expressão dos dilemas humanos de sua própria época, dos desafios existenciais dos quais de muitas formas ainda nos são contemporâneos Afasta-se, entretanto, de muitos dos seus outros interpretes ao não rotulá-la como uma obra simbólica frisando assim seu caráter consciente/racional. O que poder-se-ia ser explicado pelo fato de Ulisses definir-se acima de tudo como uma fascinante experiência discursiva onde o falar, o dizer e o pensar se distanciam do cognoscível e dos nossos usos convencionais da linguagem na invenção dos significados... Trata-se da construção de uma nova mitologia, paradoxalmente secular e niilista.

Seja lá como for, para JUNG:

“... O artista é s em querer o porta voz dos segredos espirituais de sua época e, como todo profeta, é de vez em quanto inconsciente como um sonâmbulo. Julga está falando por si, mas é o espírito da época que se manifesta e, o que ele diz, é real em seus efeitos.
Ulisses é um documento humano de nosso tempo, e mais, é um segredo. É bem verdade que ele pode libertar os que estão presos espiritualmente e que sua frieza consegue congelar, até a medula, não só o sentimentalismo, mas o próprio sentimento normal. Mas estes efeitos salutares não esgotam a sua essência. Dizer que foi o próprio diabo quem apadrinhou a obra é uma observação espirituosa interessante, mas não satisfaz. Há vida na obra, e a vida nunca é apenas má e destrutiva. Na verdade, tudo o que de imediato podemos apreender neste livro é negativo e solúvel, mas pode-se pressentir algo intangível, uma intenção secreta que lhe dá sentido e, portanto, valor. Seria este mosaico colorido de palavras e imagens “porventura” simbólico? Por Deus, não estou me referindo a uma alegoria, mas ao símbolo como expressão de uma essência inatingível. Neste caso deveria ao menos bruxulear um sentido oculto em algum lugar nesta tecidura estranha. Aqui e acolá deveriam ressoar sons já ouvidos em outros tempos e em outros lugares, talvez em sonhos raros ou nas obscuras sabedoria de raças esquecidas. Não se pode contestar esta possibilidade. Mas eu, pessoalmente, não consegui encontrar a chave. Pelo contrário, o livro me parece ter sido escrito no estado de mais plena consciência; não é sonho, nem revelação do in consciente. Penso até que mostre um propósito mais forte e uma tendência mais exclusiva do que o Zaratustra de NIETZSCHE ou a segunda parte do Fausto de GOETHE. Talvez por isso Ulisses não possua a característica de obra simbólica. ( ...) Pois “simbólico” significa que uma essência poderosa e inconcebível reside oculta no objeto, seja espírito ou mundo; e que o homem faz desesperados esforços para enquadrar numa expressão o segredo que lhe escapa. Para tanto deve-se dirigir ao objeto com todas as suas forças mentais e penetrar todos os véus reluzentes, a fim de trazer a superfície o outro que jaz oculto nas desconhecidas profundezas.
Mas o que perturba no Ulisses é que, atrás de milhares e milhares de véus, nada existe. Não se dirige ao espírito e nem ao mundo. Frio como a lua, observando de uma distância cósmica, permite que a comédia da criação, da existência e do desaparecimento siga o seu curso. Espero sinceramente que Ulisses não seja simbólico; pois do contrário não terá atingido seu objetivo. Qual o segredo tão ansiosamente guardado e encoberto com cuidado impar durante essas intoleráveis 735 páginas? Melhor não despender energias e tempo com infrutíferas caças ao tesouro. Nada pode haver atrás disso, pois do contrário a nossa consciência estaria novamente comprometida com o espírito e o mundo, perpetuando para sempre os Srs. Daedalus e Bloom e enganados pelas dez mil aparências. É exatamente isso que Ulisses quer evitar: ele quer ser um olhar lunar, uma consciência desligada do objeto; não escravizado por deuses , nem pela luxuria; não preso por amor ou ódio, por convicção ou preconceito. Ulisses não diz isto, mas age assim: o despreendimento da consciência é a meta que começa a se manifestar por trás da cortina nebulosa deste livro. Este é certamente o verdadeiro segredo da nova consciência cósmica que não é revelada aquele que leu conscienciosamente as 735 páginas, mas àquele que durante os 735 dias contemplou o seu mundo e a sua própria mente através dos olhos de Ulisses.”
( C G JUNG. Ulisses um Monologo/ tradução de Maria de Moraes Barros, in Obras Completas de C G Jung Vol. XV. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 1985, p.107-8)

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