Comentei a poucos dias a obra de William Golding “O Senhor das Moscas” e me pareceu adequado agora aprofundar a imagem das dimensões sombrias da condição humana, sugeridas pela literatura do autor, através de um fragmento do ensaio Presente e Futuro de C G Jung, originalmente publicado em março de 1057 em Zurique. Se o grande tema aqui é o arquetipico da sombra, cabe lembrar que um dos desafios que conduzem a saúde psíquica e a um desenvolvimento da consciência não é a sua recusa moral, mas sua integração positiva a pluralidade de eus que nos compõe... Na reflexão de Jung, aqui exposta há ainda o espectro da então relativamente recente experiência da Segunda Guerra Mundial e das polêmicas surgidas em torno de especulações sobre sua posição frente ao nacional socialismo. O que importa, porém, é a critica do autor a idéia de que o mal corresponde a uma realidade metafísica da qual somos vitimas em lugar de algo humano, demasiadamente humano...
“Na opinião generalizada de que o homem é aquilo que sua consciência conhece de si mesmo, diz-se sub-repticiamente que o homem é inocente, o que na verdade, só acrescenta uma dose de ignorância a maldade dele presente. Não se pode negar que coisas terríveis aconteceram e ainda acontecem. Contudo, achamos que são sempre os outros, os responsáveis, e como esses acontecimentos pertencem sempre a um passado, seja mais próximo ou mais distante, eles rapidamente acabam mergulhando no mar do esquecimento, num estado de espírito completamente ausente e crônico que chamamos de “estado normal”. Na realidade, porém, nada desaparece definitivamente e nada pode ser reposto. O mal, a culpa, o medo profundo da consciência moral e as instituições sinistras estão ai para quem quiser ver. Forma homens que cometeram esses atos: eu sou um homem e, enquanto natureza humana, compartilho dessa culpa como também trago a em minha própria essência a capacidade e a tendência de fazer, a cada momento, algo semelhante. Do ponto de vista jurídico, mesmo não estando presentes no momento do ato, nós somos, enquanto seres humanos, criminosos em potencial. Na realidade só nos faltou a oportunidade adequada para nos lançarmos ao turbilhão infernal. Ninguém esta fora da negra sombra negra sombra coletiva da humanidade. Se o crime foi cometido por muitas gerações ou se é apenas hoje que se realiza, isso não altera o fato de que o crime é o sintoma de uma disposição preexistente em toda parte, de que realmente possuímos uma “imaginação para o mal”. Apenas o imbecil pode desconsiderar durante todo tempo as condições de sua própria natureza. Mas é justamente essa negligência que se revela o melhor meio para torná-lo um instrumento do mal. A inocuidade e a ingenuidade são atitudes tão inúteis quanto seria para um doente de cólera e s eus vizinhos permanecer inconscientes a respeito da natureza contagiosa da doença. Ao contrário, estas acabam levando a projeção do mal não percebido nos “outros”. Isso só fortalece enormemente a posição contrária, pois, com a projeção do mal, não percebido nos “outros”. Isso só fortalece enormemente a posição contrária, pois, com a projeção do mal, nós deslocamos o medo e a irritação que sem timos em relação ao nosso próprio mal para o opositor, aumentando ainda mais o peso da sua ameaça. Além disso, a perda da possibilidade de compreensão também nos retira a capacidade de lidarmos com o mal. Aqui nos vemos diante de um dos preconceitos básicos da tradição cristã e um grande obstáculo a nossa política. Segundo esse principio, é preciso evitar o mal a todo custo e, se possível, jamais falar dele nem mencioná-lo. O mal é também o “desfavorável”, o tabu e a instância de temor. O comportamento apotropético na relação com o mal e na forma de se lidar com ele ( mesmo que aparente) vem ao encontro da tendência característica do homem primitivo de evitar o mal, de não querer percebe-lo e de, se possível, afastá-lo para outras fronteiras, tal como o pode expiatório, no Na tigo Testamento, usado para afastar o mal para o deserto.
Se entendermos então que o mal habita a natureza humana independentemente da nossa vontade e que ele não pode ser evitado, o mal entra na cena psicológica como o lado oposto e inevitável do bem. Essa compreensão nos leva de imediato ao dualismo que, de maneira inconsciente, se encontra prefigurado na cisão política do mundo e na dissociação do homem moderno. O dualismo não advém da compreensão. Nós é que nos encontramos diante de um estado de dissociação. Todavia, seria extremamente difícil pensar que teríamos de assumir pessoalmente essa culpa. Assim, preferimos localizar o mal em alguns criminosos isolados ou em um grupo, lavando as próprias mãos e ignorando a propensão geral para o mal. A inocência, porém, a longo prazo, não será capaz de se manter porque, como nos mostra a experiência, a origem do mal está no próprio homem e não constitui um principio metafísico como supõe a visão cristã.”
( C G Jung. Presente e Futuro, in Obras Completas de C G Jung. Vol. X/1/ tradução: Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2ºed. 1989, p.44)
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