Dentre o sem numero de pessoas que assistiram a versão épica cinematográfica do Senhor dos Anéis do diretor e roteirista neo zelandes Peter Jackson, um numero muito significativo não teve a prévia experiência direta desta, então adaptada para o cinema, maior obra do escritor britânico J.R.R. Tolkien ( ( 1892-1973). Não significa isso que sua obra não tenha sido lida e difundida antes de sua versão cinematografica. Afinal, Tolkien não foi absolutamente um "autor qualquer", podemos considera-lo o maior narrador de histórias do século XX, o construtor de uma mitologia contemporânea que nos ensina a contemporaneidade da linguagem e imaginação mítica, mesmo em tempos de "realismos".
Não por acaso Tolkien, que escrevera descontinuamente o Senhor dos Anéis como um desdobramento do Hobbit, entre os anos de 1936 e 1949, desaprovava as interpretações da obra como uma analogia simbólica ou alegórica da Segunda Guerra Mundial. Pessoalmente, acho que o livro nos fala de valores inspirados em uma representação do passado europeu arcaico/pagão. Indo mais fundo, ele é também uma critica ao poder, personificado pelo anel e sua potencial corrupção absoluta. No delicado e sutil jogo de interesses que define a existência coletiva quase nunca nos orientamos pela materialização do que temos de melhor em nossa humana condição...
No prefácio que acompanha a edição da obra de Tolkien em português, reproduzido lamentavelmente sem determinação cronológica e contextualização, o autor apresenta-se justamente como um singular e solitário contador de histórias, um narrador único e sem pares:
“O Senhor dos Anéis foi lido por muitas pessoas desde que finalmente foi lançado na forma impressa, e eu gostaria de dizer algumas coisas aqui, com referência às muitas suposições ou opiniões, que obtive ou li, a respeito dois motivos e significados da história. O motivo principal foi o desejo de um contador de histórias de tentar fazer de uma história realmente longa, que prendesse a atenção dos leitores, que os divertisse, que os deliciasse e às vezes, quem sabe, os excitasse ou emocionasse profundamente. Como parâmetro eu tinha apenas meus próprios sentimentos a respeito do que seria atraente ou comovente, e para muitos o parâmetro foi inevitavelmente uma falha constante. Algumas pessoas que leram o livro, ou que de qualquer forma fizeram uma critica dele, acharam-no enfadonho, absurdo ou desprezível; e eu não tenho razões para reclamar, uma vez que tenho opiniões similares a respeito do trabalho dessas pessoas, ou dos tipos de obras que elas evidentemente preferem. Mas, mesmo do ponto de vista de muitos que gostaram de minha história, há muita coisa que deixa a desejar. Talvez não seja possível numa história longa agradar a todos em todos os pontos, nem desagradar a todos nos mesmos pontos; pois, pelas cartas que recebi, percebo que as passagens ou capítulos que para alguns são uma lástima são especialmente aprovados por outros. O leitor mais critico de todos, eu mesmo, agora encontra muitos defeitos, menores e maiores, mas, infelizmente, não tendo a obrigação de criticar o livro ou escrevê-lo novamente, passará sobre eles em silêncio, com exceção de um defeito que foi notado por alguns: o livro é curto demais.”
( J RR Tolkien. Prefácio in O Senhor dos Anéis/ tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta; revisão de técnica e consultoria Ronald Eduard Kyrme; coordenação Luis Carlos Borges- SP: Martins Fontes, 2001; p. XIV)
Deixo aqui o pouco de um fragmento/momento poético do Senhor dos Aneis, personificado por uma canção citada em um devaneio do Hobbit Bilbo em dialogo com seu sobrinho Frodo, para dizer em detalhe a magia arcaica que encanta na obra de Tolkien:
Sentado ao pé do fogo eu penso
Em tudo o que já vi,
Flores do prado e borboletas,
Verões que já vivi;
As teias e as folhas amarelas
De outonos de outros dias,
Com névoa e sol pela manhã,
No rosto as auras frias.
Sentado ao pé do fogo eu penso
No mundo que há de ser
Com inverno sem primavera
Que um dia hei de ver.
Porque há tanta coisa ainda
Que nunca vi de frente:
Em cada bosque, em cada fonte
Há um verde diferente.
Sentado ao pé do fogo eu penso
Em gente que se desfez,
E em gente que vai ver o mundo
Que não verei de vez.
Mas enquanto sentado eu penso
Em tanta coisa morta,
Atento espero pés voltando
E vozes junto à porta.
( idem; p.290)
Mas cabe aqui ainda, antes de encerrar, uma última citação; um retalho rasgado, da obra do critico alemão Walter Benjamim sobre a decadência da narrativa que nos ajuda a melhor compreender a posição impar ocupada por Tolkien no cenário da literatura inglesa:
“O primeiro indicio da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no inicio do período moderno. O que separa o romance da narrativa ( e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa- contos de fada, lendas e mesmo novelas- é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se destingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relata para os outros. E incorpora as coisas narradas a experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los.
(...)
Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidem aos que presidiram a formação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram e se extinguiram mais lentamente.”
(Walter Benjamim. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov; in Magia, Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Vol. I, tradução de Paulo Rouanet. 4º ed, SP: Btrasiliense; p.201.)
Não por acaso Tolkien, que escrevera descontinuamente o Senhor dos Anéis como um desdobramento do Hobbit, entre os anos de 1936 e 1949, desaprovava as interpretações da obra como uma analogia simbólica ou alegórica da Segunda Guerra Mundial. Pessoalmente, acho que o livro nos fala de valores inspirados em uma representação do passado europeu arcaico/pagão. Indo mais fundo, ele é também uma critica ao poder, personificado pelo anel e sua potencial corrupção absoluta. No delicado e sutil jogo de interesses que define a existência coletiva quase nunca nos orientamos pela materialização do que temos de melhor em nossa humana condição...
No prefácio que acompanha a edição da obra de Tolkien em português, reproduzido lamentavelmente sem determinação cronológica e contextualização, o autor apresenta-se justamente como um singular e solitário contador de histórias, um narrador único e sem pares:
“O Senhor dos Anéis foi lido por muitas pessoas desde que finalmente foi lançado na forma impressa, e eu gostaria de dizer algumas coisas aqui, com referência às muitas suposições ou opiniões, que obtive ou li, a respeito dois motivos e significados da história. O motivo principal foi o desejo de um contador de histórias de tentar fazer de uma história realmente longa, que prendesse a atenção dos leitores, que os divertisse, que os deliciasse e às vezes, quem sabe, os excitasse ou emocionasse profundamente. Como parâmetro eu tinha apenas meus próprios sentimentos a respeito do que seria atraente ou comovente, e para muitos o parâmetro foi inevitavelmente uma falha constante. Algumas pessoas que leram o livro, ou que de qualquer forma fizeram uma critica dele, acharam-no enfadonho, absurdo ou desprezível; e eu não tenho razões para reclamar, uma vez que tenho opiniões similares a respeito do trabalho dessas pessoas, ou dos tipos de obras que elas evidentemente preferem. Mas, mesmo do ponto de vista de muitos que gostaram de minha história, há muita coisa que deixa a desejar. Talvez não seja possível numa história longa agradar a todos em todos os pontos, nem desagradar a todos nos mesmos pontos; pois, pelas cartas que recebi, percebo que as passagens ou capítulos que para alguns são uma lástima são especialmente aprovados por outros. O leitor mais critico de todos, eu mesmo, agora encontra muitos defeitos, menores e maiores, mas, infelizmente, não tendo a obrigação de criticar o livro ou escrevê-lo novamente, passará sobre eles em silêncio, com exceção de um defeito que foi notado por alguns: o livro é curto demais.”
( J RR Tolkien. Prefácio in O Senhor dos Anéis/ tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves, Almiro Pisetta; revisão de técnica e consultoria Ronald Eduard Kyrme; coordenação Luis Carlos Borges- SP: Martins Fontes, 2001; p. XIV)
Deixo aqui o pouco de um fragmento/momento poético do Senhor dos Aneis, personificado por uma canção citada em um devaneio do Hobbit Bilbo em dialogo com seu sobrinho Frodo, para dizer em detalhe a magia arcaica que encanta na obra de Tolkien:
Sentado ao pé do fogo eu penso
Em tudo o que já vi,
Flores do prado e borboletas,
Verões que já vivi;
As teias e as folhas amarelas
De outonos de outros dias,
Com névoa e sol pela manhã,
No rosto as auras frias.
Sentado ao pé do fogo eu penso
No mundo que há de ser
Com inverno sem primavera
Que um dia hei de ver.
Porque há tanta coisa ainda
Que nunca vi de frente:
Em cada bosque, em cada fonte
Há um verde diferente.
Sentado ao pé do fogo eu penso
Em gente que se desfez,
E em gente que vai ver o mundo
Que não verei de vez.
Mas enquanto sentado eu penso
Em tanta coisa morta,
Atento espero pés voltando
E vozes junto à porta.
( idem; p.290)
Mas cabe aqui ainda, antes de encerrar, uma última citação; um retalho rasgado, da obra do critico alemão Walter Benjamim sobre a decadência da narrativa que nos ajuda a melhor compreender a posição impar ocupada por Tolkien no cenário da literatura inglesa:
“O primeiro indicio da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no inicio do período moderno. O que separa o romance da narrativa ( e da epopéia no sentido estrito) é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa- contos de fada, lendas e mesmo novelas- é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se destingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relata para os outros. E incorpora as coisas narradas a experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o individuo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los.
(...)
Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidem aos que presidiram a formação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram e se extinguiram mais lentamente.”
(Walter Benjamim. O narrador. Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov; in Magia, Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. Vol. I, tradução de Paulo Rouanet. 4º ed, SP: Btrasiliense; p.201.)
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