quinta-feira, 29 de maio de 2008

CONTEMPORANEIDADE E SAUDE PÚBLICA: RELENDO SUSAN SONTAG


“... Afirma-se que o que esta em jogo é a sobrevivência da nação, da sociedade civilizada, do próprio mundo- tradicionais justificativas para a repressão.”
Susan Sontag

Um dos aspectos mais decisivos e cruciais da contemporaneidade é o confronto entre as novas questões e fatos proporcionados pelo avanço e redimensionamento dos saberes das antigas ciências naturais-através das pesquisas de ponta como as realizadas com células tronco e em torno da clonagem humana- e o caduco universo de valores da chamada moral tradicional de inspiração judaico-cristã.
Fazem também parte deste confronto, de modo exatamente inverso, as resistências à descriminalização do aborto, assim como as conservadoras e apocalipticas representações sociais de epidemias como a da AIDS ou o alarde em torno das conseqüências do tabagismo, visto que tais males, no imaginário coletivo, colocam igualmente em cheque uma dada idéia totalitária ou totalizadora de sociedade e de natureza humana, inspirada pelos citados valores tradicionais, claramente avessos a diversificação e pluralidade ilimitada de morais e opções que caracterizam o contemporâneo e sua implosão do universal, do social.
Falando especificamente sobre a AIDS, como uma alegoria para ilustrar o que se passa com relação as novas linguagens das políticas de saúde pública, cabe dizer que existe certa distância entre as “imaginações” inspiradas pela epidemia e a “realidade” da própria epidemia. Tal tese talvez fique mais clara através do seguinte fragmento de Susan Sontag sobre “as metáforas” da AIDS por ela denunciada em fins dos anos 80:

“ ... Pois alem da epidemia real, com o inexorável acumulo de vitimas fatais ( estatísticas são divulgadas a cada semana, a cada mês, por organizações de saúde nacionais e internacionais), há um desastre qualitativamente diferente, muito maior, que acreditamos e não acreditamos que venha a acontecer. Nada se altera quando as estimativas mais apavorantes são temporariamente revistas e atenuadas, o que acontece com regularidade com as estatísticas especulativas divulgadas por burocratas da área de saúde e jornalistas. Tal como as previsões demográficas, provavelmente tão precisas, o teor geral da noticia é normalmente pessimista.
A proliferação de relatórios ou projeções de eventualidades apocalípticas, irreais ( ou seja, inconcebíveis), tende a gerar uma variedade de reações que constituem maneiras de negar a realidade. Assim, na maioria das abordagens da questão da guerra nuclear, ser racional ( assim se auto qualificam os peritos) significa não reconhecer a realidade humana, enquanto levam em conta emocionalmente até mesmo uma parte mínima do que esta em jogo para a humanidade (que é o fazem aqueles que se consideram ameaçados) significa insistir na exigência irrealista de que toda essa situação perigosa seja rapidamente desfeita. Essa divisão da atitude pública, em uma visão inumana e outra demasiadamente humana, é muito menos radical no caso da AIDS. Os peritos denunciam a esteriotipagem do aidético e do continente onde, segundo se imagina, ela teve origem, enfatizando que a AIDS afeta populações muito mais amplas do que os grupos de risco iniciais e ameaça o mundo inteiro, não apenas na África. Embora a AIDS, como era de se esperar, venha se tornando uma das doenças mais carregadas de significado, como a lepra e a sífilis, há sem dúvida limites ao impulso de estigmatizar suas vidas. O fato de a doença ser um veículo perfeito para os temores mais genéricos existentes a respeito do futuro, tem, até certo ponto, o efeito de tornar irrelevantes as tentativas previsíveis de associar a doença a um grupo divergente ou a um continente negro.
Assim como a questão da poluição industrial e a do novo sistema de mercados financeiros globais, a crise da AIDS aponta para o fato de que vivemos num mundo em que nada de importante é regional, local, limitado; em que tudo que pode circular acaba circulando, e todo problema é- ou esta fadado a tornar-se mundial. Circulam bens ( inclusive imagens, sons e documentos, que circulam mais depressa, eletronicamente.) O lixo circula: os rejeitos industriais tóxicos de St. Etienne, Hanover, Mestre e Bistrol estão sendo despejados em cidadezinhas da costa da África ocidental. As pessoas circulam em números sem precedentes. E as doenças também. Desde as incontáveis viagens de avião dos ricos, a negócios ou a passeio, até as migrações de pobres das aldeias para as cidades, e, legalmente ou não, de um pais para outro- toda esta mobilidade, esse inter-relacionamento físico ( com a conseqüente dissolução de velhos tabus, sociais e sexuais) é tão vital para o pleno funcionamento da economia capitalista avançada, ou mundial, quanto o é a facilidade de transmissão de bens, imagens e recursos financeiros. No entanto, agora, esse maior inter-relacionamento espacial, característico do mundo moderno, não apenas pessoal mas também social, estrutural, tornou-se veiculo de uma doença às vezes considerada uma ameaça à própria espécie humana; e o medo da AIDS faz parte de toda a atenção dada a outros desastres, subprodutos de uma sociedade avançada, particularmente aqueles que constituem exemplos de degradação do meio ambiente em escala mundial. A AIDS é um dos arautos distópicos da aldeia global, aquele futuro que já chegou e ao mesmo tempo está sempre por vir, e que ninguém sabe como recusar.”
(Susan Sontag. AIDS e suas metáforas/ tradução de Paulo Henriques Brito. SP: Companhia das Letras, 1989, p. 108 e 109)

Sontag vai ainda mais longe em suas reflexões sobre a epidemia da AIDS formulando uma critica as políticas de saúde públicas que me parece adequada para fundamentação do autoritarismo inerente ao controle de epidemias e doenças que, enquanto fenômenos e realidades sócio culturais, atualmente fomentam injustificáveis leituras de mundo mediante uma concepção “fundamentalista” da saúde e da afirmação de um dado “tipo ideal” de individuo saudável. Exemplo claro disso é a ofensiva antitabagista claramente coercitiva. Talvez seja o momento de melhor pensar as conseqüências da AIDS e suas metáforas, a reorientação perversamente autoritárias das políticas de saúde hoje em curso em todo o mundo ocidental. Recorrendo novamente a autora:

“ A idéia de medicina “total” é tão indesejável quanto a da guerra “total”. E a crise criada pela AIDS também nada tem de “total”. Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós- a medicina, a sociedade- não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio... Em relação a essa metáfora, a metáfora militar, eu diria, perafraseando Lucrecio: que guardem os guerreiros.”
(Idem, p. 111)



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