Em sua auto biografia Memórias, Sonhos Reflexões, Jung faz mais do que narrar seu sentimento pessoal de mundo e colecionar recortes biográficos. Na verdade o que parece decisivo nesse singular relato é o balanço de suas vivências psicológicas e a descrição de seu próprio confronto criativo com o inconsciente.
Neste livro, Jung procura apresentar sua mensagem de modo diferente daquele condicionado por seus textos científicos, nos oferecendo uma chave de leitura para sua obra que, transcendendo a mera apreensão intelectual, pois pressupõe a participação de nossos sentimentos, fantasias e intuições ou, simplesmente, nosso envolvimento subjetivo com aquela dimensão mais profunda e obscura de nós mesmos que prefigura a própria condição humana.
Não por acaso não encontramos em suas memórias um julgamento definitivo de sua própria vida e obra. Ele não nos oferece um legado cristalizado e dogmático, mas um testemunho da experiência viva da psique. Toda a sua obra pode ser sumariamente definida como a delimitação de um campo, de um mapa ou caminho que só pode ser percorrido pessoalmente ou individualmente por cada pessoa. Não há um trajeto pré fixado pela rigidez teórica ou sistêmica. Tudo o que realmente importa é que aprendamos a escutar nosso daimon....
“ Conheci todas as dificuldades possíveis para me afirmar, sustentando meus pensamentos. Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre o que decidia. Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as atitudes convencionais. Jamais podia deter-me no que obtinha. Precisava continuar, na tentativa de atingir minha visão. Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, só podiam constatar que eu prosseguia sem me deter.
Ofendi muitas pessoas; assim que lhes percebia a incompreensão, elas me desinteressavam. Precisava continuar. À exceção dos meus doentes, não tinha paciência com os homens. Precisava seguir uma lei interior que me era imposta, sem liberdade de escolha. Naturalmente, nem sempre obedecia a ela. Como poderíamos viver sem cometermos incoerências?
Em relação a alguns seres, era sempre próximo e presente na medida em que mantínhamos um diálogo interior; mas podia ocorrer que, bruscamente, eu me afastasse, por sentir que nada mais havia que me ligasse a eles. Tinha que aceitar, penosamente, o fato de que continuassem lá, mesmo quando nada mais tinham a me dizer. Muitos despertaram em mim um sentimento de humanidade viva, mas só quando esta era visível no circulo mágico da psicologia; no instante seguinte, o projetor poderia afastar deles seus raios e nada mais restaria. Poderia interessar-me intensamente por alguns seres, mas, desde que se tornavam translúcidos para mim, o encanto se quebrava. Fiz, assim, muitos inimigos. Mas, como toda personalidade criadora, não era livre, mas tomada e impelida pelo demônio interior.
(...)
Poderia talvez dizer: necessito das pessoas mais do que os outros, e, ao mesmo tempo, bem menos. Quando o daimon está em ação, sentimo-nos muito perto e muito longe. Só quando ele se cala é que podemos guardar uma medida intermediária.
(...)
Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera. Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim. Em sua maioria dependem do destino. Lamento muitas tolices resultantes de minha teimosia, mas se não fossem elas não teria chegado a minha meta. Assim, pois, eu me sinto ao mesmo tempo satisfeito e decepcionado. Decepcionado com os homens, e comigo mesmo. Em contacto com os homens vivi ocasiões maravilhosas e trabalhei mais do que eu mesmo esperava de mim. Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno vida e o fenômeno homem são demasiadamente grandes. À medida em que envelhecia, menos me compreendia e me reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo.”
( C G Jung. Memória, Sonhos, Reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. RJ: Nova Fronteira, 20º ed, p. 308 et seq. )
Neste livro, Jung procura apresentar sua mensagem de modo diferente daquele condicionado por seus textos científicos, nos oferecendo uma chave de leitura para sua obra que, transcendendo a mera apreensão intelectual, pois pressupõe a participação de nossos sentimentos, fantasias e intuições ou, simplesmente, nosso envolvimento subjetivo com aquela dimensão mais profunda e obscura de nós mesmos que prefigura a própria condição humana.
Não por acaso não encontramos em suas memórias um julgamento definitivo de sua própria vida e obra. Ele não nos oferece um legado cristalizado e dogmático, mas um testemunho da experiência viva da psique. Toda a sua obra pode ser sumariamente definida como a delimitação de um campo, de um mapa ou caminho que só pode ser percorrido pessoalmente ou individualmente por cada pessoa. Não há um trajeto pré fixado pela rigidez teórica ou sistêmica. Tudo o que realmente importa é que aprendamos a escutar nosso daimon....
“ Conheci todas as dificuldades possíveis para me afirmar, sustentando meus pensamentos. Havia em mim um daimon que, em última instância, era sempre o que decidia. Ele me dominava, me ultrapassava e quando tomava conta de mim, eu desprezava as atitudes convencionais. Jamais podia deter-me no que obtinha. Precisava continuar, na tentativa de atingir minha visão. Como, naturalmente, meus contemporâneos não a viam, só podiam constatar que eu prosseguia sem me deter.
Ofendi muitas pessoas; assim que lhes percebia a incompreensão, elas me desinteressavam. Precisava continuar. À exceção dos meus doentes, não tinha paciência com os homens. Precisava seguir uma lei interior que me era imposta, sem liberdade de escolha. Naturalmente, nem sempre obedecia a ela. Como poderíamos viver sem cometermos incoerências?
Em relação a alguns seres, era sempre próximo e presente na medida em que mantínhamos um diálogo interior; mas podia ocorrer que, bruscamente, eu me afastasse, por sentir que nada mais havia que me ligasse a eles. Tinha que aceitar, penosamente, o fato de que continuassem lá, mesmo quando nada mais tinham a me dizer. Muitos despertaram em mim um sentimento de humanidade viva, mas só quando esta era visível no circulo mágico da psicologia; no instante seguinte, o projetor poderia afastar deles seus raios e nada mais restaria. Poderia interessar-me intensamente por alguns seres, mas, desde que se tornavam translúcidos para mim, o encanto se quebrava. Fiz, assim, muitos inimigos. Mas, como toda personalidade criadora, não era livre, mas tomada e impelida pelo demônio interior.
(...)
Poderia talvez dizer: necessito das pessoas mais do que os outros, e, ao mesmo tempo, bem menos. Quando o daimon está em ação, sentimo-nos muito perto e muito longe. Só quando ele se cala é que podemos guardar uma medida intermediária.
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Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera. Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim. Em sua maioria dependem do destino. Lamento muitas tolices resultantes de minha teimosia, mas se não fossem elas não teria chegado a minha meta. Assim, pois, eu me sinto ao mesmo tempo satisfeito e decepcionado. Decepcionado com os homens, e comigo mesmo. Em contacto com os homens vivi ocasiões maravilhosas e trabalhei mais do que eu mesmo esperava de mim. Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno vida e o fenômeno homem são demasiadamente grandes. À medida em que envelhecia, menos me compreendia e me reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo.”
( C G Jung. Memória, Sonhos, Reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. RJ: Nova Fronteira, 20º ed, p. 308 et seq. )
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