sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O PARADÓXO DO PARTO

Hoje lembram o dia

do parto da minha mãe

como se eu fosse

o feto que alí se apresentou

atônico e abismado

quando  desabrigado e lançado ao mundo.

 

Mas tal trauma não  deixou memória.

Não era eu aquele princípio de gente,

aquele feto indigente.

Mas nele já estava contido este corpo,

objeto de  afetos e experiências.

Corpo que soube gradativamente  de si no acumular dos anos,

além de toda ilusão  de consciência,

E ainda contém aquele feto

que  nunca terminou de nascer,

enquanto o corpo

aprendia a morrer.



 

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

SOBRE A EXISTÊNCIA

Os anos passam e não  me definem.
Sou o que se perde,
o que desaparece,
o que definha,
em  corpo que reinventa o espaço enterrado na cidade. 

Tenho todas as idades
nos afetos que me transformam,
que me apagam do mundo
na alucinação do momento.



sábado, 9 de outubro de 2021

PRÁTICA DE EXISTÊNCIA

Prática de existência como um inventar-se permanente nas desarrumações do tempo. Individuar contra o próprio rosto, corpar a vida no movimento da memória, esculpindo o tempo presente, contra os imediatismos do agora.
Prática de existência como silêncio e fala, pausa e escrita de si, musicalidade sem notas ou, simplesmente, movimento de quase ser, na inconstância de um devir outro sempre atualizado em suas metamorfoses.
Pratica de existência como borboleta que passeia entre as flores de um jardim,
como verbo/acontecimento.

NOVÍSSIMO SELVAGEM

Tenho os pés enlameados de mundo,
e as mãos turvas de terra.
Meu pensamento é o verde das matas,
meu amanhã é o agora das flores.
Sei a vida como os animais.
Minha alma é a floresta
em devir natureza.
Sou corpo através dos corpos.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

O QUE REALMENTE IMPORTA

O que realmente me importa,
é aquilo que não pode ser comprado,
embrulhado pra presente,
e transformado em lixo
ao longo dos anos.

É aquilo que não pode ser conquistado,
que não requer esforço,
mas acontece expontâneamente
em qualquer ponto abstrato
do meu encontro concreto com o mundo.

O que realmente importa
foge a palavra e me atravessa
em direção ao indefinido e incriado de um grande nada.

O que realmente importa carece de qualquer importância.

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

EXISTO

 

Existo entre a inconsciência do corpo

e a consciência do mundo,

como um ponto indeterminado

entre o tempo e o espaço.


Existo na ilusão de ser livre,

único e admirável,

como se a razão

me colocasse no centro do universo

desvelando enigmas entre as palavras e as coisas.


Existo no delírio da extensão da matéria

preso aos apetites

que me acordam o corpo.


Existo anonimamente entre muitos outros

atravessado por signos, símbolos e imagens,

que me adivinham pelo avesso.


domingo, 3 de outubro de 2021

MUDANÇA

Mudar não é uma escolha.
Mudar é escapar a si mesmo,
É perder-se,
é não saber ou poder
ser como antes,
na confusão de todas as certezas.

A vida, afinal, é algo indeterminado.
Ela não é feita de identidades. 
Tudo muda,
mesmo que ninguém perceba.

A mudança nos consome,
nos escolhe,
e nos rouba a ilusão de ser.


sábado, 2 de outubro de 2021

CORPO, VIDA E LUGAR

O mais estranho lugar do mundo é o corpo. Pois ele é o que somos em todos os lugares, no  além da própria consciência de estar em qualquer parte.
O corpo é mundo, e o mundo é corpo. Ele não nos pertence, mas lhe pertencemos, no além de todas as pretensões da ficção de um eu consciente que lhe nega a autonomia, por mais que ela seja evidente.
Todos os lugares são movimento, passagens, como o próprio corpo que não passa de um provisório arranjo de matéria. A vida é  paisagem. O corpo é paisagem dentro de paisagens. Todas as paisagens mudam constantemente. Todos os lugares são incertos.
Nenhum lugar é realmente um lugar.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O ANTI ADÃO

Uma parte de mim é selvagem.
Nunca tocou o mundo,
nunca foi criança
ou morrerá adulta.

Uma parte imprecisa de mim
sonha profundamente 
enterrada no caos primordial.
Ela delira contra a ordem e a realidade.
permanece guardada em uma potência crua de criação 
contra tudo que se tornou diurno e demasiadamente  humano.

A VIDA E O ALÉM DO HUMANO

A vida é alguma coisa que ainda não nos aconteceu.
Ela é algo entre o corpo e a natureza,
uma porta seme aberta entre o animal ,o homem, e além,
que leva a uma outra condição de existência. 

A vida é devir,
coincidência  de todas as coisas
na arquitetura de um caos em movimento,
que não cabe na ridicula ilusão da razão e do humano.