Este Blog é destinado ao exercicio ludico de construção da minima moralia da individualidade humana; é expressão da individuação como meta e finalidade ontológica que se faz no dialogo entre o complexo outro que é o mundo e a multiplicidade de eus que nos define no micro cosmos de cada individualidade. Em poucas palavras, ele é um esforço de consciência e alma em movimento...entre o virtual, o real, o simbolo e o sonho.
quarta-feira, 25 de novembro de 2020
PELA URGÊNCIA DE UMA POESIA INSURGENTE
terça-feira, 24 de novembro de 2020
SOBRE OS LIMITES DA IDÉIA DE HUMANIDADE
Já não introjetamos como verdade os valores e certezas dominantes. As convenções vigentes de mundo comum inspiradas por valores ditos universais nos parecem pálidas invenções de um século ingenuamente crente nos poderes da deusa razão. Duvidamos da eficácia das codificações de mundo inspiradas por metas narrativas totalizantes. Afinal, contra atrocidades não desmentiram ao longo da história recente da civilização ocidental não pois em xeque suas nobres auto representações inspiradas pela fé sem sentido na positividade do “progresso”?
São tantas as “humanidades” que povoam o mundo, tantas possibilidades e estratégias de existência e sobrevivência, que é totalmente descabido falar da humanidade como um todo homogêneo. Seria, aliais, até mesmo, pertinente questionar quais características imutáveis da condição humana ao longo das épocas e lugares nos permite usar um conceito tão abrangente.
DO ANTROPOMORFISMO AO RETORNO DA NATUREZA
Para Cassirrer em sua obra tardia Ensaio sobre o Homem, o homem é, em sua melhor definição, um animal "symbolicum" que transcende seu condicionante zoologico. É através de tal característica que nos apresentamos ao longo dos séculos como um animal orientado para um perpétuo vir a ser. Poderíamos dizer, portanto, que a condição humana não é um estado, mas um inventar-se constante e, como tal, também um perder-se, uma incerteza.
A cultura é o eixo existencial da construção da subjetividade e diversidade de nossa espécie. Criar-se através da produção de signos e símbolos a singularidade do faktum cultural como tipicidade do fazer-se humano. Mas o homem como medida de todas as coisas, como denuncia Foucault em As Palavras e as Coisas, é uma verdade recente e ameaçada por um desaparecimento iminente.
Hoje, em uma sociedade cada vez mais definida pelos artifícios tecnológicos e pela cultura imaterial do virtual, a diimensão inumana do humano é uma sombra que cresce sobre nossa narcisista consciência de si como medida de todas as coisas.
A natureza, o não humano, o limite de nosso desenvolvimento civilizacional pós industrial, reinventam nossa cultura simbólica contra o antropormofismo e logocentrismo dos últimos séculos pondo em questão os valores pós iluministas baseados em um humanismo ingênuo e prepotente que nos coloca em uma posição de domínio sobre o mundo natural como expressão de nossa pretensa humanidade .
terça-feira, 17 de novembro de 2020
ENTRE O DENTRO E O FORA DE SI MESMO
O lado de fora de nós
é o profundo dentro das coisas,
a embriaguez dos sentidos,
que encanta o mundo
através do corpo.
Há em tudo um infinito,
um sem tempo,
onde nada é.
Eis o segredo de todo acontecimento:
As coisas são na pele
de quem sente e vê.
Existir é estar do lado de fora
de si
em intenso estado de desabrigo
e desapego.
segunda-feira, 16 de novembro de 2020
A SOMBRA DO DIA SEGUINTE
Tenho medo do dia seguinte,
da
sociedade e do presente
como prisão da existência,
como opressão que formata
todos os afetos,
todo ser na natureza
que nos falta.
Vivemos em uma sociedade
onde o tempo consome a vida
contra a possibilidade de um viver
que realize o tempo.
sexta-feira, 13 de novembro de 2020
O TEMPO
Incerto e inconstante,
o tempo não dura,
nem funda eternidades.
Ele apenas afirma a insustentabilidade do instante,
a fragilidade da existência e do mundo,
na concretude do espaço e da matéria em câmbio.
O tempo acontece inexistindo
no desaparecimento da gente
Na combinação e descriminação das coisas microfisicas...
quinta-feira, 12 de novembro de 2020
IDENTIDADE E MEMÓRIA
Habito em um punhado de lembranças.
Elas constituem minha identidade,
a casa da minha consciência.
Entretanto, apesar de todo seu valor afetivo,
elas não passam de sombras opacas
de momentos mortos, vagos e perdidos.
Não importa nada daquilo que foi vivido.
O tempo é um eremita e um andarilho.
Ele nunca repousa e segue sempre vazio
Através do corpo que nasce, cresce e definha sempre.
MUDANÇA
Ainda que nada mude
é sempre momento de mudança.
Ainda que nada aconteça
o futuro será outro mundo
além das fronteiras do tempo presente.
Nada que nos sustenta tem mais consistência
do que o ar.
quarta-feira, 11 de novembro de 2020
TERRITOREIDADE E GEOFILOSOFIA
By Carlos Pereira Júnior
“ Em resumo, a filosofia se retirretorializa três vezes, uma vez no passado, sob os gregos, uma vez no presente sob o Estado democrático, uma vez no porvir, sobre o novo povo e a nova terra. Os gregos e os democratas se deformam singularmente neste espelho do futuro.”
Gilles Deleuze e Felix Guattari in O que é a Filosofia?
Sobre o conceito de território e seus fluxos
O presente ensaio tem por objetivo discutir o conceito de território a partir da filosofia ( ou geo filosofia) construída por Gilles Deleuze e Felix Guattari. Tal filosofia busca estabelecer uma interseção entre o pensamento e a terra, que permite captar a inconstância e dinamismo da realidade territorial que define o devir humano em sua inserção na espacialidade da natureza através de sua materialidade sócio cultural. Trata-se antes de tudo de uma filosofia da imanência.
Negando a definição tradicional fornecida pela geografia, território, tal como aqui entendido, não é uma realidade material estática naturalmente dada, mas uma topografia dinâmica, múltipla, viva, cheia de vínculos, ramificações, intercâmbios, entre um componente humano, animal e outro natural que se transformam mutuamente em um arranjo sempre provisório e instável. O território relaciona-se, portanto, tanto com um espaço vivido quanto com um sistema percebido de subjetivação.
Em uma perspectiva rizomática, o conceito de território apresenta múltiplos sentidos e se desenvolve a partir da interseção de diversas disciplinas e saberes, como a geografia, biologia, antropologia, sociologia, história e filosofia. Assim, o conceito de território comporta múltiplas logicas e estratégias de sentido e significação. Pode-se mesmo dizer que territoriedade é uma categoria relacional, um vir-a-ser constante, uma multiplicidade dinâmica, um produzir de planos e camadas geológicas definidas por zonas, vizinhanças, linhas. É um estar no meio das coisas em movimentos de terriroriarizaçãos, desterritoriarizações e reterritoriarizações.
Para melhor definir este eco sistema que é um território é muito oportuno o uso de um conceito que Deleuze e Guattari consideram fundamental a sua geo filosofia. Refiro-me ao conceito de Ritorneloi. Ritornelo é a experiência de improvisação no jazz. Em termos musicais ele é um ritmo que demarca território, é um refrão, um estribilho, uma cadência. Em termos filosóficos o ritornelo é um espaço entro o eu e o mundo, entre interior e exerior. Ele possui três componentes: um componente direcional (que remete a um ponto dentro do caos), um componente de dimensional ( busca de consolidação de um território) e um componente de passagem ou de fuga ( um território esta sempre em variação). Estes três componentes definem uma espécie de “lógica de existência”, esclarecem três formas de habitar um território: a territoriarização, a desterritoriarização e a reterritoriarização. Estar sempre de partida, em transito, ou movimento. Território é sempre passagem, transitoriedade e imanência. Desta forma, o ritornelo é um agenciamento territorial. Em um sentido geral, risorneto é “todo um conjunto de materiais de expressão que traçam um território e que se desenvolvem em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, ópticos, etc.)
Neste ponto é necessário esclarecer que para a devida compreensão dos conceitos deleuzianos é preciso descartar um regime de signos definidos por uma acepção restritiva dentro da teoria da representaçãoii. Ou seja, não se deve conectar palavras e coisas em um jogo de correspondências. Lembrando uma passagem de Foucault citada por Deleuze em Mil Platôs, “Não adianta dizer o que se vê, o que se vê não habita jamais o que se diz”. A expressão não é um fenômeno que se reduz a um dizer das coisas, ela define um conjunto de enunciados que compõem na cartografia social u “multiplicidades discursivas” de expressões e “multiplicidades não discursivas de conteúdo, isto é, como forma de conteúdo e como forma de expressão que que originam maquinações abstratas. Em outros termos, os conceitos filosóficos são também maneiras de habitar e agir em um território. A palavra, o dizer, de um modo geral, cria agenciamentos coletivos de enunciação através de um discurso indireto que produz territoriarizações e desterritoriarizações ou, simplesmente, estratégias de subjetivação. O próprio conceito de território e de risorneto são bons exemplos disso. Se a expressão terra natal já era usual no século XVII, o uso do termo território só é encontra morada em nossas praticas discursivas a partir do sec. XVIII, quando começou a ser utilizado em uma significação politica através das obras de autores hoje clássicos como Montesquieu e Rouseau.
Por outro lado, como afirma Deleuze em Diálogos, os movimentos comparados de territoriarização e desterritoriarização formam fluxos cujo estudo de intensidade, os continuums se tornam evidentes em campos sociais concretos,
“...Tomamos como exemplo, em torno do século XI: o movimento de fuga das massas monetárias; a grande desterritorialização das massas camponesas, sob a pressão das ultimas invasões, e das crescentes exigências dos senhores; as desterritoriarização das massas mobiliárias , que toma formas tão diversas quanto a cruzada, a instalação nas cidades, os novos tipos de exploração da terra ( arrendamento ou assalariado); as novas figuras das cidades, cujos os equipamentos são cada vez menos territoriais; a desterritoriarização da Igreja, com sua privação de bens terrenos, sua’paz de Deus’, sua organização de cruzadas; a desterritoriarização da mulher com o amor cavalheiresco, depois o amor cortês. As cruzadas,(inclusive a cruzada das crianças) podem aparecer como um limiar de conjugação de todos esses movimentos. De certa maneira, pode-se dizer que em uma sociedade o que é primeiro são as linhas, os movimentos de fuga. Pois estes, longe de serem uma fuga fora do social, longe de serem utópicos ou até mesmo ideológicos, são constitutivos do campo do social, cujo declive e fronteiras, todo o devir, eles traçam.
(...)
Nós dizemos, antes, que, em uma sociedade, tudo foge, e que uma sociedade se define por suas linhas de fuga que afetam massas de toda natureza (mais uma vez, ‘massa’ é uma noção molecular). Uma sociedade, mas também um agenciamento coletivo, se definem, antes de tudo, por suas pontas de desterritorialização, seus fluxos de desterritoriarização.”iii
Em poucas palavras, tomando como referência o contexto mediterrâneo do sec. XI Deleuze exemplifica o quanto um território é definido por suas linhas de fuga, pelos seus múltiplos fluxos de desterritoriarização que, ao mesmo tempo, engendram fluxos de reteriorização, que são, por sua vez, formas de se conformar a um código de enunciados que se tornam dominantes. Um estado de coisas ou uma cartografia nova se estabelece através das conjugações, orientações, convergências e divergências das linhas de fuga. Vale dizer que o desejo também se confunde com as linhas de fuga. Aquilo que Deleuze e Gatarri chamam de corpo sem órgãos esta ligado ao plano de imanência do desejo em contra partida ao sistema que Foucault chama de bio poder que, operaria, para estes dois autores, através de reterritoriarizações do corpo.
Maquina de Guerra e Aparelho de Estado
Um território é composto por multiplicidades, por um emaranhado de linhas, de segmentos duros e molares, onde o Estado não é um ponto que funciona apenas como centro ou campo onde se estabelecem relações de poder, ele funciona como uma caixa de ressonância em um horizonte de segmentações onde se criam relações de força, tensões e linhas de fuga. Linhas de fuga que são agenciamentos do desejo no campo social, que é também um campo de imanência. As relações de poder, por outro lado, não são localizáveis na topografia do Estado ( transcendência), não se confundem com seus modelos e mecanismos institucionais. O Estado é antes de tudo um grande agenciador de desejos e é como tal que se sedentariza e segmentariza no território, através de modalidades instrumentais que buscam sedentalizações, inibir linhas de fuga. Assim sendo, quando Deleuze e Guattari falam em macro e micro política, não estabelecem propriamente um antagonismo entre Estado e Sociedade. Macro é a política do plano de linhas de território que tornam a paisagem reconhecível através de oposições binárias, de segmentações duras e uma subjetividade processual. O micro, por sua vez, compreende uma segmentação flexível, molecular e relacional. Trata-se aqui de dois modos distintos e complementares de habitar um território perpassado por diversos agenciamentos. A máquina de Estado pressupõe estratégias de captura, onde os agenciamentos são complexos de linhas. Não falamos aqui de estado como o resultado de um processo civilizatório, mas como uma figura.
Não estamos falando aqui também, propriamente, de definições no sentido clássico do termo, mas de modos de ser e de se produzir a existência. Coloca-se, assim, diante de nós, a questão chave de O que é a Filosofia?, última obra escrita conjuntamente por Deleuze e Guattari: “Qual a relação do pensamento com a terra?” A resposta passa, obviamente, pelo modo como os autores na referida obra “explicam” a origem da filosofia na Grécia clássica, negando a clássica versão de uma causalidade histórica, para afirmar em seu lugar uma contingência geográfica. O que, segundo estes autores, propiciou o advento da filosofia foi uma combinação de devir, meio e ambiente. Neste sentido, embora Atenas e as demais cidades da antiga Grécia não tinham sido as primeiras cidades comerciantes, foram as primeiras a ser ao mesmo tempo bastante próximas e bastante distantes dos impérios arcaicos orientais, a ponto de formar um meio de imanência onde os artesões e os mercadores encontraram uma mobilidade, um verdadeiro “mercado internacional” que os impérios lhe recusavam. O mesmo aconteceu com a filosofia, os primeiros filósofos eram estrangeiros desprateados, que encontraram entre os gregos uma sociabilidade nova, um espaço de imanência onde impera um gosto pela opinião e pela troca de opiniões. Parafraseando Deleuze e Guattari, pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra, ( ou antes adsorve) em uma desterritoriarização que se converte em reterritoriarização, em “uma nova terra”. Os gregos inventaram um plano de imanência absoluto que nos é contemporâneo como devir.
Voltando a questão da dualidade entre Estado e maquina de guerra, tomemos aqui como referência, o capítulo 12, ou o Platô 1227 de Mil Platôs, intitulado Tratado de Nomadologia: A Máquina de Guerra. Este Platô disserta sob o paradigma guerreiro dos antigos Aqueus, que representa “um lado de fora” em relação à “interioridade” sedentária do Estado. Para tanto, os autores tomam como ponto de partida as analise de Pierre Clastres sobre as sociedades ditas primitivas, combinadas com as pesquisas de Georges Dumézil sobre a mitologia indo europeia.
As maquinas de guerra nômade se inserem entre o rei mágico e o sacerdote jurista, que são as duas polaridades da soberania estatal indo europeia estabelecendo uma configuração tripartida. Mas, para inicio de conversa, cabe relacionar Mil Platôs e O Anti Edipo, dizendo que maquina de guerra e aparelho de Estado estabelecem uma aparente dicotomia entre uma maquina desejante e um aparelho de repressão edipiano, cuja dualidade impõem um jogo entre imanência e transcendência, ou, dito de outra forma, definem uma superfície terrestre lisa (sem estrias ou ramificações) ou estreada ( codificada, normatizada), dependendo do modo (nômade ou sedentário) de ocupação do território.
A máquina de guerra (imanência) é exterior ao Estado (transcendência) porque é irredutível a ele em sua “multiplicidade pura e sem medida”. Em outras palavras, enquanto modos cognitivos de se relacionar com um território, enquanto formas de estar nele, maquina de guerra e aparelho de Estado constituem não apenas estratégias distintas de se separar ou ligar a terra, mas também modalidades diversas de pensamento.
A captura da maquina de guerra nômade pelo aparelho do Estado estabelece uma relação complexa entre imanência e transcendência. Pode-se dizer que o Estado no Ocidente foi capaz de incorporar os espaços lisos (nômades), moldar territórios em função de suas exigências maquínicas e transcendentes, afinal,
“Uma das tarefas fundamentais do Estado é estriar o espaço sobre o qual reina, ou utilizar os espaços lisos como um meio de comunicação a serviço de um espaço estriado. Para qualquer Estado, não só é vital vencer o nomadismo, mas controlar as migrações e, mais geralmente, fazer valer uma zona de direitos sobre todo um ‘exterior’, sobre o conjunto de fluxos que atravessam o ecúmeno. Com efeito, sempre que possível o Estado empreende um processo de captura sobre fluxos de toda sorte, de populações, de mercadorias ou de comércio, de dinheiro ou de capitais, etc.”iv
Em contra partida as maquinas de guerra representam uma tendência para fragmentação do espaço em multiplicidades, para a inibição dos poderes estáveis da unidade (imanência). Nomadizar é justamente traçar linhas de fuga contra o processo de captura estatal.
Maquinas de Guerra e Corpo sem Órgãos ( CSO)
O corpo sem órgãos (CSO) está diretamente associado à produção da maquina de guerra nômade e sua resistência à captura pelo Estado, ele é produzido através da superação da tensão estabelecida entre as polaridades que definem um território, o transcendente/sedentário e o Imanente/nômade. Enquanto linha de fuga da transcendência normativa, o CSO remete a uma pratica ou conjunto de práticas nômades, a um devir, a uma experimentação e não a uma interpretação, ou seja, ele não produz sentido pela interpretação, ele é povoado por intensidades. O que ele expressa é a construção de um campo de imanência do desejo, uma desconstrução do sujeito como síntese do corpo enquanto organismo e sua conversão a uma “maquina desejante”. Desta forma, o CSO é uma desterritoriarização, uma fuga dos agenciamentos sociais, ele substitui o orgânico pelo sutil e revela uma potência que nos povoa enquanto intensidades. O CSO se define justamente por suas zonas de intensidades, por limiares, gradientes e fluxos. Ele é mesmo a pura intensidade de um corpo devir guerreiro, de um corpo que devém, que se volta para a intensidade da vida seja no estrato geológico, biológico e antropomórfico. Mas o CSO, tal como proposto por Deleuze e Guattari, não tem como marco teórico apenas a famosa conferência radiofônica Para acabar com o juízo de Deus, proferida por Artaud em 1947 onde, este declara “guerra aos órgãos”. O livro referencia para o CSO é a Ética de Espinoza. Neste sentido, O CSO remete antes de tudo a produção de singularidade como fim e meio de uma nova forma de habitar o mundo, como expressão de uma nova ética. Como afirma Deleuze em Nietzsche a Filosofia:
“Espinosa abriu um caminho novo para as ciências e a filosofia. Nem mesmo sabemos o que pode um corpo, dizia ele; falamos da consciência e do espírito, tagarelamos sobre tudo isso, mas não sabemos de que é capaz um corpo, quais são suas forças nem o que elas preparam.”v
O que pode um corpo? Talvez, um novo modo de existência imanente. Mas a pergunta é uma incógnita. Não pode ser respondida. Ela acontece como um agenciamento. Em O que é Filosofia? São os conceitos de afectos, que apontam para a experiência de um devir não humano no homem, e de percetos, que apontam a paisagem não humana da natureza, insinuando dentro desta nova ética e territoriedade uma estética, um ir além de uma visão antropomórfica do mundovi, o que permite novas estratégias de subjetivação onde a vida converte-se em obra de arte libertando-se da normatividade edipiana ou transcendente. O CSO é uma forma de habitar a terra em intensidades.
Plano de imanência e o sentido de uma nova terra
A desterritoriarização da terra é sua antropoformalização como territoriedade em um plano abstrato, sua conversão à totalidade normativa através do princípio da transcendência tal como realizado pela História da Filosofia. É preciso buscar uma nova terra, nômade e imanente. Localiza-se na filosofia de Nietzsche a inspiração para a geo filosofia anunciada em Mil Platôs e confirmada em O que é a Filosofia? . Esta emblemática passagem do Prologo de Assim Falou Zaratustra é um significativo exemplo:
“O além-do-homem é o sentido da Terra. Que vosso querer diga: seja o além-do-homem o sentido da Terra! Eu vos conjuro, meus irmãos, à Terra sede fiéis (...) Outrora a blasfêmia a Deus foi a maior blasfêmia, mas Deus morreu, e com ele morreram também esses blasfemadores. Blasfemar a Terra é agora o mais terrível, e estimar mais elevadas as entranhas do insondável que o sentido da Terra!”
É este sentido da terra, que se confunde com o além do homem, que inspira a geo filosofia de Deleuze e Guattari. Se pensar se faz através da relação do território com a terra, é porque o pensamento destina-se a estabelecer através dos conceitos um plano de imanência, evoca uma terra e um povo por vir, uma terra em devir, que se despe da transcendência e de todo ideal moral. O sentido não nasce mais de uma lógica do predicado, mas como acontecimento imanente. Ele precisa ser experimentado. Tal perspectiva é inspirada na Genealogia da Moral e na transvaloração dos valores propostas por Nietzsche. Novas formas de valoração assentam um “novo homem” ou um “além do homem” em uma nova terra livre da transcendência, o que também é proposto na perspectiva geo filosófica apresentada em O que é a Filosofia?.
É interessante observar como nesta obra, o conceito de corpo sem órgãos, tão decisivo nas paginas de Anti Édipo e Mil Platôs, é substituído pelo conceito de plano de imanência no esforço construtivista de um pensamento que pressupõe um fora de si e se faz experimentação. É neste sentido que o plano de imanência é como um corte no caos e age como um crivo. Nele a própria imanência é uma outra coisa além de si, é multiplicidade, é o que sustenta o acontecer dos conceitos acontecem. Além disso, existe um plano de imanência para cada conceito. Um plano de imanência é, ao mesmo tempo, o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado. Como já foi dito, ele precisa ser experimentado. O pensamento traça o plano que é povoado pelos conceitos.vii O pensar é um criar que, por sua vez, é uma forma de habitar. Por isso, na perspectiva de Deleuze e Guattari, como já havia sido sugerido por Nietzsche, é possível falar de uma filosofia alemã, francesa, etc. Parafraseando estes autores em O que é a filosofia?, pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro.viii
4-Habito e habitação: entre o cuidado de si, o uso de si e heterotopias
Extrapolando a pauta de Deleuze e Guatari em Mil Platôs e O que é a Filosofia?, e dialogando com o último Foucault, diria que a geo filosofia implica na construção de uma ética, de um ábito como um modo de existência, como uma forma de habitar a terra ( reterritoriarização) e, portanto, um ethos impessoal.
O filosofo italiano Giorgio Agamben, em O Uso dos Corpos, nos oferece, neste sentido, uma reflexão interessante:
“ Deleuze, no final de O que é a Filosofia? Define a vida em sua imediatez como ‘contemplação sem conhecimento’. Dessa ‘criação passiva’ que, ‘é, mas não age’, ele dá como exemplo a sensação e o hábito. No mesmo sentido, Maine de Biran, em seu Mémorie sur décomposition de la pensée, busca incansavelmente captar, para além do eu da vontade, um ‘modo de existência’, por assim dizer, impessoal’, que ele denomina ‘afetibilidade’ e define como a simples capacidade orgânica de sermos afetados sem consciência nem personalidade, capacidade que, assim como a estátua de Condillac, se torna todas as suas modificações e todas as suas sensações e, no entanto, constitui ‘uma maneira de existir positiva e completa em seu gênero’.”ix
Aganben usa este exemplo para nos lembrar, contra o prestigio do conhecimento em nossa cultura moderna, e remetendo a doutrina medieval do habitus, inspirada em Aristóteles, que a contemplação e o ábito, como o uso de si, articulam uma zona de não conhecimento que corresponde a um lugar habitual no qual o ser vivo se sente bem antes de qualquer subjetivação. Segundo ele, fazer uso de si significa manter relação com uma zona de não conhecimento. Tal perspectiva me parece, em alguma medida, coerente com o devir, com as linhas de percepção, blocos de intensidade e percursos de experimentação que definem a construção de conceitos e os planos de imanência, dentro da perspectiva de Deleuze e Guattari.
Mas é também aqui interessante, lembrar como contra ponto, o Foucault das heterotipias, destes “lugares outros” que transbordam os limites entre o real e o virtual no espaço social,x
Segundo Foucault as Heterotopias se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma espécie de ruptura absoluta com o seu tempo tradicional.
Em suas palavras próprias palavras,
“Enfim, o último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante, uma função. Esta se desenvolve entre dois polos extremos. Ou bem elas têm o papel de criar um espaço de ilusão, que denuncia como mais ilusório ainda todo o espaço real, todas as alocações no interior das quais a vida humana é compartimentada (talvez seja esse o papel que, por muito tempo, tiveram os famosos bordéis, dos quais estamos agora privados). Ou então, ao contrário, o papel das heterotopias é criar um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arranjado quanto o nosso é desordenado, mal disposto e bagunçado. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação, e eu me pergunto se não é um pouco dessa maneira que algumas colônias funcionaram.” xi
Até onde se sabe, o conceito de Heterotopia foi utilizado pela primeira vez por Foucault no prefácio de As Palavras e as Coisas, referindo-se a um texto de Borges e ao desconcertante estratégia narrativa utilizada por ele ao estabelecer na narrativa uma “desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito”,
Tal como proposta por Foucault, as heterotopias funcionam como “contra espaços”, como “utopias realizadas”, ou, ainda, como um conceito limite que evoca uma nova terra através da transfiguração do uso dos espaços.
Foucault inicia sua conferencia proferida em março de 1967, para uma prateia de arquitetos, com um significativo diagnóstico: Se o século XIX foi o século da História, nossa época seria, antes de tudo, uma época do espaço.
Para ele, embora tenha ocorrido uma dessacralização teórica do espaço a partir de Gallileu, ainda hoje não atingimos uma dessacralização plena do espaço. Codificações binárias como público e privado, social e familiar, etc., ainda tão naturalizadas entre nós, demonstram o quanto experimentamos coletivamente um espaço qualitativo, preenchido por símbolos e normatizações. Tal fato foi magistralmente explorado de forma singular por Barchelard através de sua fenomenologia de uma imaginação espacial ou poética do Espaço.
Mas não é o espaço interior de nossas subjetivações que interessa a Foucault, e sim o espaço “do fora” de nossas experimentações cotidianas da funcionalidade dos lugares. O espaço das heterotopias, que podem ser de diversos tipos, é um espaço de fuga normativa, estabelecem um conjunto de relações e um campo de tensões que demarcam um sitio. Sejam lugares de movimento ou de repouso, como um trem ou um quarto. Trata-se de lugares que de alguma forma estão fora de todos os lugares, mesmo quando localizáveis. Existem, por exemplo, heterotopias de ilusão e de compensação, como exemplificam as colônias puritanas inglesas na américa do século XVII e os bordeis do século XIX.
Impossível não criar vizinhanças entre as heterotopias de Foucault e as linhas de fuga e maquinas de guerra de Deleuze e Guattari, suas velocidades, suas alternâncias entre espaços lisos e estreados, em um movimento constante de desterritoriarização e reterritoriarização. Há algo de nômade nas heterotopias que urge ser explorado.
Podemos concluir que o esforço de trazer o pensamento para terra, em uma perversão do platonismo e de toda a História da Filosofia, caminho aberto por Nietzsche e perpetuado por Deleuze, é ainda hoje um campo insurgente e fecundo contra o sedentarismo do pensamento vigente.
i Criamos ao menos um conceito muito importante: o de ritornelo. Para mim, o ritornelo é esse ponto comum. Em outros termos, para mim, o ritornelo está totalmente ligado ao problema do território, da saída ou entrada no território, ou seja, ao problema da desterritorialização. Volto para o meu território, que eu conheço, ou então me desterritorializo, ou seja, parto, saio do meu território? (Deleuze, 1997).
ii No primeiro capítulo de O que é a Filosofia? Deleuze e Guattari esclarecem que para eles “ O conceito é um incorporal, embora se encarne ou se efetue nos corpos. Mas, justamente, não se confunde o estado de coisas na qual se efetua.” P. 33
iii Deleuze, Guilles. Diálogos/ Gilles Deleuze/ Patrícia Parnet. SP: Editora Escuta, 1998, p. 157-158
iv Deleuze Guilles. Mil Platos: Capitalismo e Esquizofrenia. vol. 5- Guilles Deleuze/ Felix Guattari. SP: Ed. 34, 1997, p. 59.
v Deleuze Guilles. Nietzsche e a Filosofia, p.32
vi Perceptos (que não são percepções) e afectos (que não são efeitos), existem na ausência do homem. Eles existem em si excedento o próprio vivido. O próprio homem é um conjunto de peceptos e afectos.
vii O conceito não revela o sentido da coisa, apenas anuncia parcialmente o acontecimento que ocorre no plano. Parafraseando Eric Alliez em A Assinatura do Mundo, a imanência é imanente a uma consciência pura. O plano de imanência é como um fora dentro do conceito.
viii A enunciação filosófica é imanente ao conceito. Diferente das enunciações científicas que apenas que apenas recorrem as proposições que possuem como objeto um estado de coisas referente. Lidamos aqui com um devir ecosófico da filosofia que contraria n qualquer lógica objetal, pois se confunde com a razão e seus devires. Neste sentido, a filosofia não contempla o Eterno, nem refrete o histórico, mas se ocupa do diagnóstico dos devires atuais.
ix Aganben, Giorgio. O Uso dos Corpos ( Homo Sacer,IV,2). SP: Boi tempo, 2017, p.86
x O texto da conferência de 1967 foi publicado em 1984 e reproduzido com o título Des espaces autres na coletânea Dits et écrits . É uma versão do texto em tradução livre, que nos serve como referência: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68705/71285