domingo, 26 de janeiro de 2020

AURORA


A banalidade mágica do dia que amanhece
Encanta a paisagem.
Tudo participa do espetáculo da manhã surgente. 

A aurora está em cada detalhe .
Posso senti-la no cheiro de café  fresco que perfuma a casa
Ou no meu corpo recém desperto 
Ainda pesado de preguiça
A enfrentar o banho. 

Estar novamente desperto e ativo
É me render a roupa que me espera
Para me acompanhar pelo resto do dia.
Ela me diz que o amanhecer é  livre,
Mas não há liberdade na rotina e nas horas. 

Mas isso pouco importa agora.
Nada parece definido, previsível,
No rito de despertar,
onde o futuro encontra o presente 
No brilho do sol
Através do infinito do céu e do mar.

Lá fora, hoje talvez,
Permaneça dentro de mim
um gosto de aurora.





segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

A INCERTEZA DO EU


É  como memória que o eu existe.
Mas o que é  a memória
Além do efeito de uma ausência ?

O eu resiste a um presente
Que constantemente lhe escapa
Produzindo lembranças,
Acumulando existência,
descartando presenças.

O eu é apenas marca, vestígio,
Mutação constante
Contra o precário da identidade.
O eu não tem substância.

O tempo para ele não  existe.
enquanto persiste contra o perde-se do agora,
Contra o vazio do passado e do futuro,
Surpreendendo-se sempre um outro
Na afirmação de si mesmo.


domingo, 19 de janeiro de 2020

O ENIGMA DA ESCRITA



Escrevo para escapar a mim  mesmo,
Para desacontecer  o mundo
Na intimidade da natureza.

Minha escrita não diz a vida,
Ela inventa um segredo,
Um desafio.

Escrever é saber paradoxos,
Desaparecer na linguagem,
Apagando  bibliotecas 
No porvir do livro.

Escrevo a morte no registro da consciência,
Fugindo a toda tradição, 
Escapando a forma homem,
Na intuição de um futuro sem tempo
Correndo dentro do meu próprio corpo.

Escrever é perder -se,
saber -se outro.


sábado, 18 de janeiro de 2020

A FLOR DA PELE


A pele nossa de cada dia nos abriga e forma.
Ela é   superfície,  atrito e encontro profundo
Entre o corpo e o mundo.

É carne, sangue e impressão,
Uma roupa viva que por nós  existe.
A pele é alma além da forma.

Nada é profundo.
Tudo é  pele e profano
em vital Sensualismo.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

DO CORPO, DA LIBERDADE


É no corpo que o mundo existe,
que o pensamento vira comportamento
através do dizível e do visível.
É também no corpo
que o poder se inscreve,
que a norma desenha a opressão do gesto.

Mas o mesmo corpo produz, ainda,
o  espontâneo e o novo,
na medida em que cria,
que deseja,
que inventa o inesperado
Na intuição do indizível,
para dar forma a liberdade
que ele próprio exige
como uma grande dança
De celebração do sensível.

A VIDA DOS ENUNCIADOS


Hoje não passamos de um lugar enunciativo,
onde as palavras convulsionam
e o falar engasga na garganta.

Expressar-se é um ato de criação
do qual já não somos capazes.

 As palavras circulam,
somos habitados por signos e símbolos,
afogados em sentidos,
até o limite da compreensão,
Mas a linguagem nos cala
No dizer que se impõe. 
 É  nosso silêncio que anima
tudo aquilo que é dito.

TEMPORALIDADE MÓRBIDA




O futuro tornou-se uma lembrança triste,
reminiscência de um tempo
onde eramos jovens
e o amanhã parecia possível.
Somos contemporâneos de passados
que nunca existiram
na ficção de um presente
desde sempre defasado
e carente de agora.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

TEMPO E REVOLUÇÃO


Depois de maio de 1968
o tempo abandonou a história.

O devir acordou o absurdo
no pesadelo da eternidade
enquanto o instante explodia o século
derrubando a ditadura do  calendário.

Já não há mais antes,
nem depois.
A Historia perdeu a Razão.
Hegel foi decapitado!
Tudo transborda
No eterno retorno do  agora!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

PALAVRAS AVULSAS




Palavras avulsas decoram o quarto.
Sei o ritmo da escrita fácil,
As velocidades das letras em combinado
E a harmonia do sentido
que suja o espaço em branco.

Tais palavras nunca são  profundas.
Apenas beliscam a consciência 
Tentando provocar um sorriso,
Desdizer a realidade,
No mais que  real 
Da imaginação e do risco
De transmitir o silêncio de ser
simulando melodias.







A POTÊNCIA DE QUASE SER




“Os homens, dizia em essência Kant, não são feitos destas madeiras duras e retilínias, com as quais fazemos mastros. Se as vezes, para alguns, existe ao longo da vida uma espécie de fidelidade a si mesmo, uma coerência, outros conhecem rupturas improváveis. Estes tornam-se irreconhecíveis a si mesmos e aos outros, cabendo-lhes varias vidas diferentes. Mas, em princípio, cada existência, mesmo a mais tranquila, contem um numero infinito de possibilidades que a cada instante reorganiza suas virtualidades.”

David Le Breton in Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea

O ego, enquanto complexo psicológico que opera como centro da consciência, esta longe de  ser uma realidade continua, unitária. Constitui, ao contrário, um campo instável, sujeito a permanentes rearranjos e rupturas cujo desenrolar quase não percebemos.

Nunca permanecemos os mesmos.  Há em nós  um virtus (força ou potência) que nos impõe o possível como uma sombra de incerteza e transformação projetada em um porvir sempre renovado. 

O ego segue sempre a frente de sua auto manifestação concreta. É como uma miragem, como um duplo de si mesmo. Nunca se apresenta como identidade fixa. Manifesta-se,  ao contrario, como virtualidade e inacabamento que  nunca  se adéqua ao rosto.

A criança que fui um dia, por exemplo,  não esta contida naquele que sou hoje. Ela simplesmente desapareceu como manifestação circunstancial de um eu no qual nunca me reconheci por inteiro.

O eu, portanto, só existe como possibilidade, só é em si no movimento de tornar-se. Existe, portanto, na indeterminação de um quase ser, no complexo deslocamento de coisas dentro de coisas, através do movimento de corpos dentro de corpos, que não cabem na ilusão da homogeneidade e continuidade de um pensante e sensível eu que faz do mundo espelho da sua auto ilusão .