A obra “Merlin: O filho do Diabo” de Maria Nazareth Alvim de Barros, é mais do que uma arbitrária compilação contemporânea de antigas narrativas medievais que a partir do sec. XI e XII, inspiradas na chamada “matéria da bretânha” , gradativamente construíram o ciclo arthuriano.
Em linhas gerais, este belo texto contemporâneo procura antes de tudo, diferentemente de suas fontes medievais, que dado o contexto histórico, reproduzem uma tensão estrutural entre a intencionalidade de “espiritualização”/ “cristianização” dos códigos cavaleirescos de alguns de seus autores, como Robert de Boron, que vinculou de forma definitiva Merlin ao graal e a mitifica figura do rei Arthur, e sua contra partida através da vinculação de tal gênero literário ao universo fantástico de suas origens célticas e à tradição trovalesca e a problemática do amor cortes, que na pena de Christian de Troyes,se materializaria na introdução da personagem de Lancelot do Lago.
Maria Nazareth , bebendo em ambas as fontes, procura a partir da justaposição de vários elementos e diversas versões da lenda, procura criar um todo coerente, onde as tensões estabelecidas sob os textos no passado pelo esforço de cristianização da “matéria da Bretânha” são suprimidas em favor de uma leitura inspirada no feérico de sua matriz céltica diluído na matriz cultural de nosso imaginário contemporâneo.
Não por acaso, a personagem de Merlin lhe serve mais do que qualquer outro como protagonista da narrativa, dado que, se nas versões cristianizadas, enquanto filho de um diabo ( incubus) e uma virgem pura, ele surge como mentor da távola redonda, estando seu destino profundamente associado ao do graal, que também desaparece deste mundo. Por outro lado, Merlim também personifica de modo muito particular o ideário cortes pois, mesmo sem ser propriamente um cavaleiro ou um nobre, ele abre mão de tudo para entregar-se completamente aos braços de sua dama, Viviane, tornando-se seu prisioneiro em um castelo do ar. Em poucas palavras, Merlim é a personagem que articula os diversos projetos narrativos de construção do ciclo arturiano.
Na versão de Maria Nazareth, Merlin expressa de modo realmente comovente, quando de seu aprisionamento por Vivianne, a imagem de mundo que subterraneamente perpassa toda narrativa como sopro de sua própria atemporalidade e tragicidade latente:
“Nada é Tudo. Tudo é nada! Você já viu neste mundo alguma coisa ter sentido? Ser jamais ou para sempre?”
Por derradeiro cabe observar “o encantamento” do passado que a narrativa propõe logo de inicio aos seus leitores:
“Há muito o sol se havia posto. Da janela do meu quarto, eu contemplava o céu, enebriava-me com o desenho irregular das estrelas que pintavam de prata o firmamento anoitecido. A lua, em todo seu esplendor, caminhava silenciosa, imperceptível a olhos em brutecidos, narcotizados pela rotina da vida, quando um manto translúcido, embora negro como o breu, apagou por instantes seus reflexos. Uma fria rajada de vento envolveu o mundo visto da minha janela, sacudiu a folhagem das árvores que empinavam envaidecidas seus troncos e galhos, quebrou as mais orgulhosas. Mergulhou tudo em trevas e sortilégios. A tempestade surgiu do nada, aguou e encharcou a terra. Emanando do silencio e da total escuridão, ouviu-se o uivo dos lobos, seus movimentos excitados, nervosos. Depois, vieram as vozes. Murmurantes, soturnas, confundidas ao vento e à chuva. Logo, porém, tornaram-se poderosas, ensurdecendo a terra com gritos, risos de escárnio, blasfêmias, lamentos e choros.
Paralisado pelo terror, enrijecido pelo deslumbramento, a tudo assisti e ouvi. Depois, o silencio envelopou o céu e a terra, a névoa se desfez, as estrelas voltaram a brilhar, a reforçar o luziluzir lunar. E não fosse o cheiro da terra molhada que penetrava em meu quarto e em minhas narinas, poderia jurar que havia sonhado.
Um cansaço incomum retirou-me da janela, recostou-me no leito. Prostrado, apesar de lúcido, compreendi, imediatamente, que aquelas vozes não eram deste mundo e que os deuses, adormecidos por entre as dobras da terra, tentavam romper amarras, expulsar intrusos, entronizar seus reis, reunificar a ilha da Bretanha e fixar no grande livro do mundo sua história.”
Maria Nazareth A. de Barros. Merlin : O filho do diabo. SP: Editora Planeta do Brasil, 2005, p.6)