Escrita em 1864, a novela NOTAS DO SUBSOLO de Fiódor Dostoiévski permanece uma obra emblemática da literatura ocidental. Pois foi através dela que um dos grandes arquétipos da narrativa ficcional moderna encontrou sua origem. Refiro-me ao mito do anti herói, aqui personificado por um narrador anônimo identificado ao final da narrativa apenas pelo rótulo de “paradoxista”.
Trata-se de um longo monólogo dividido em duas partes em que o narrador intercala a beliciosa investida contra imaginários interlocutores e contra todas as tendências do pensamento do seu tempo com a coloquial exposição de suas experiências e angustias mais intimas.
Considero NOTAS DO SUBSOLO um texto incomum sobre os limites do mundo e das codificações humanas do real, uma brochura desafiadora aos lugares comuns da vida compartilhada em sociedade e a própria cultura.
Poder-se-ia dizer ainda que trata-se aqui do trágico testemunho da impotência do individuo frente ao mundo que lhe define...
Ilustro o presente comentário com alguns fragmentos da obra em questão:
“...estou convencido de que o homem nunca renunciará ao sofrimento verdadeiro, isto é, à destruição e ao caos. O sofrimento é a única causa da consciência. E, embora eu tenha declarado no inicio que , na minha opinião, a consciência é a maior infelicidade para o homem, eu sei que o homem ama a consciência e não a trocará por satisfação alguma.” P.46
“Porque para mim o que importa é brincar com as palavras, é sonhar, e quanto a realidade, sabe do que preciso? De que vocês todos vão para o diabo! É isso ai! O que eu quero é tranquilidade. Sou capaz de vender agora mesmo o mundo inteiro por um copeque para que me deixem em paz. Entre o mundo acabar e eu beber o meu chá, eu quero que o mundo se dane, quero ter sempre o meu chá para beber. Você sabia disso ou não? Pois eu sabia que era canalha, patife, egoísta, preguiçoso.” P. 140
“Um romance precisa de um herói, e aqui foram reunidos intencionalmente todos os traços para um anti-herói, e , o que é mais importante, tudo isso vai produzir uma impressão muito desagradável, porque nós todos nos desacostumamos da vida, uns mais, outros menos, e nos desacostumamos ao ponto de sentirmos às vezes uma certa repugnância pela verdadeira “vida viva”, e por isso não podemos suportar que nos façam lembrar dela. Pois chegamos ao ponto de quase achar que a verdadeira “vida viva” é um trabalho, quase um emprego, e todos nós no íntimo pensamos que nos livros é melhor. E porque as vezes ficamos irrequietos, inventamos caprichos? E o que pedimos? Nos mesmos não sabemos. Nós mesmos nos sentimos pior se nossos pedidos delirantes forem atendidos . Pois bem, façam uma experiência, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem as mãos de qualquer um de nós, ampliem nossa esfera de ação, relaxem a tutela e nós... eu lhe asseguro: nós imediatamente pediremos a volta da tutela. Sei que os senhores talvez fiquem bravos comigo, comecem a gritar e a berrar com os pés: “Fale somente sobre si mesmo e sobre suas misérias de subsolo, mas nunca ouse dizer todos nós”. Permitam-me, senhores, eu não estou me justificando quando digo todos. E , no que me diz respeito, eu apenas levei as ultimas consequências na minha vida aquilo que os senhores não tiveram coragem de levar nem à metade, e ainda por cima acharam que sua covardia era bom senso, consolando-se e enganando a si próprio com isso. De modo que talvez eu esteja mais “vivo” que os senhores. Olhem com mais atenção! Nós nem sabemos sabemos onde vive essa coisa viva, o que ele é, como chamá-la! Deixem-nos sós, sem livros, e imediatamente ficaremos confusos, perdidos- não saberemos a quem nos unir, o que devemos apoiar; o que amar e o que odiar; o que respeitar e o que desprezar. Até mesmo nos é difícil ser gente- gente com seu próprio e verdadeiro corpo e sangue; sentimos vergonha disso, achamos que é um desmérito e nos esforçamos para ser uma espécie inexistente de homens em geral. Somos natimortos, e há muito tempo nascemos não de pais vivos , e isso nos agrada cada vez mais. Estamos tomando gosto. Em breve vamos quere nascer da ideia, de algum modo. Mas basta, não quero mais escrever do “subsolo”... p. 1458/149
( Fidor Dostoievski. Nota do Subsolo. Tradução de Maria Aparecida Botelho Pereira Soares-Porto Alegre: L &PM, 2011 )