Há algum tempo pensei em fazer
uma espécie de folha de balanço da minha vida.
A primeira coisa que constatei foi o fato de que tal narrativa já não
mais poderia ser concebida no formato tradicional de um escrito biográfico.
Minha existência apresenta-se tão
desestruturada, fragmentada e descontínua ao longo dos anos, que seria artificial
impor-lhe qualquer raciocínio linear, qualquer periodicidade cronológica
ou etária, qualquer propósito teleológico.
Não vejo possibilidade de uma avaliação serena e coerente de todas as
coisas vividas e sentidas que definiram minha existência ao longo das últimas
décadas.
Sei, por exemplo, que nada tenho daquele menino que fui um dia. Não me reconheço nele. Apenas invejo seu
mundo seguro e fechado decorado pelo colorido de sonhos e fantasias.
Também não me reconheço em meus amores perdidos, nas viagens e pequenas
glorias do simples cotidiano hoje tão distantes do meu dia a dia. Talvez, eu
apenas me veja um pouco em meus grandes amigos que seguiram resolutos seus
próprios caminhos e buscas e se perderam do meu mundo.
A verdade é que meu passado pessoal já não está mais onde deveria estar
como abstrata dimensão de identidade e memória.
Todo vivido tornou-se abstrato e incerto.