Os ensaios de Walter Benjamim sobre o Haxixe são qualquer coisa a mais do que simples narrativas de “um comedor de Haxixe” sobre sua experiência com a droga. Em seu conjunto elas esboçam uma Filosofia da História, um modo de codificar a realidade a partir da “fulgurância do instante”, dos labirintos do momento, cuja pluralidade e profundidade imagética reinventam o tempo e o real na numinosidade do “apresentar-se” do mundo, durante o qual certas coisas se verbalizam por si mesmas em um encadeamento mágico.
O ensaio abaixo reproduzido, que integra a citada obra, é um eloqüente exemplo disso :
NOTAS SOBRE O ÊXTASE DO HAXIXE
1
“ Nada mais eficaz para legitimar o êxtase do haxixe do que a consciência de que graças a ele penetramos naquele universo de superfícies, recõndido e em geral de difícil acesso, que o ornamento expõe à nossa vista. Esse universo nos rodeia quase que por toda parte. No entanto, nosso entendimento fracassa por tentar apreende-lo. Na verdade, quase nunca o vemos. Já sobre o efeito da droga sua presença nos atrai intensamente. Chegamos ao ponto de exaurir ludicamente e com profunda satisfação aquela relação com o ornamento que se estabelece na infância e nos momentos de febre; ela se sustenta sobre dois elementos que, no êxtase do haxixe, são decisivos. Trata-se aqui da ambigüidade do ornamento. Todo ornamento pode ser encarado de duas maneiras distintas: como superfície imaginária ou como configuração linear. No entanto, as formas isoladas, integrando-se nos mais diferentes grupos, permitem quase sempre inúmeras configurações. Basta essa constatação para que se evidencie uma das propriedades intrínsecas do êxtase: sua incansável disposição para emprestar a um mesmo estado de coisas- por exemplo, um cenário ou uma paisagem- os mais diferentes aspectos, conteúdos e significações. Mais adiante trataremos de mostrar que essa multiplicidade de interpretações, cuja manifestação primeira repousa no ornamento, representa apenas a outra face daquela relação com a própria identidade inaugurada pelo êxtase. Outra característica do ornamento que o faz corresponder à fantasia acionada pelo haxixe é a perseverança. É típico que a fantasia apresenta ao fumante objetos- em geral, de pequeno porte- dispostos em série. As sequências infinitas, nas quais se lhe dão a ver sempre os mesmos utensílios, objetos e plantas, representam de certo modo esboços quase informes de um ornamento primitivo.
Além do ornamento, porém, há na esfera banal das coisas observáveis certos objetos que transmitem ao êxtase o peso e o significado que os habitam. Entre eles incluem-se as cortinas e os rendados. As cortinas são interpretes da linguagem dos ventos. Elas conferem a cada sopro o perfil e a sensualidade das formas femininas. Diante delas o fumante, absorto em seu jogo ondulatório, desfruta do mesmo prazer que lhe proporcionaria uma bailarina consumada. Mas, se a cortina estiver aberta de par em par, ela pode tornar-se instrumento de um jogo ainda mais extraordinário. Pois essas rendas funcionarão para o fumante como padrões que, por assim dizer, seu olho imprimira sobre a paisagem, transformando-a de maneira singular. As rendas submetem à moda a paisagem que elas emolduram mais ou menos como o arranjo de certos chapéus submete à moda a plumagem dos pássaros ou um maço de flores. Existem cartões- postais antigos nos quais, sob dizeres do tipo “Lembrança de Bad Sem”, vê-se a cidade dividida em Passeio das Águas, Estação Central, Monumento ao Imperador Guilherme, Grupo Escolar e Morro de Carolina, cada coisa num círculo diminuto. Postais desse gênero dão uma noção aproximada da intensidade com que uma cortina de renda modifica uma paisagem. Tentei agora entrever uma bandeira naquela cortina, mas a aproximação não foi feliz.
As cores podem exercer sobre o fumante um impacto imenso. Um dos ângulos da sala de Selz fora decorada com xales que pendiam das paredes. Sobre um baú recoberto por uma toalha de renda havia algumas jarras de flores. Nos xales e nas flores predominava o vermelho em suas diferentes nuanças. Minha repentina descoberta desse recanto deu-se mais tarde, quando já ia adiantada a festa. Mas o efeito deixou-me quase atordoado. Por um momento senti que me cabia investigar o modo de ser da cor daquele instrumental incomparável. Chamei esse recanto de Laboratoire du Rouge. Minha primeira tentativa de absorver-me no trabalho não deu resultado. Mais tarde, porém,insisti novamente. No momento, a única lembrança dessa empresa que consigo evocar é o fato de que o objeto de minha investigação parecia ter se deslocado. Ele era agora mais abrangente e dizia respeito às cores em geral. Pareceu-me notável que elas possuíssem uma forma, que elas se identificassem perfeitamente com a matéria que as exibia. No entanto, uma vez que se manifestavam igualmente sobre os mais diferentes objetos- por exemplo, uma pétala de flor ou uma folha de papel-, elas funcionavam também como intermediárias ou alcoviteiras do reino inanimado; através delas associavam-se em perfeita harmonia as coisas mais díspares.
2
A atitude moralista, que escamoteia dados essenciais sobre a natureza do êxtase, deixa de considerar também um aspecto decisivo da intoxicação. Trata-se do aspecto econômico. Não é temerário afirmar que, em, muitos casos, o vício serve principalmente para aumentar a disposição do viciado em sua luta pela sobrevivência. E essa meta não é absolutamente fictícia; pelo contrário, na grande maioria dos casos ela se verifica plenamente. Tal fato não surpreende a ninguém que tenha tido a oportunidade de constatar até que ponto a droga aumenta o poder de atração do viciado. O fenômeno é tão incontestável quanto são obscuras suas causas. Pode-se presumir que, no rol das modificações introduzidas pela droga, esteja também a abolição de certos sentimentos que tolhem o indivíduo. Aspereza, arrogância e farisaísmo são traços que só se encontram raramente em viciados. Soma-se a isso um efeito sedativo da droga que perdura até o fim do transe, sendo que um dos componentes desse efeito se traduz na convicção de que nada se equipara à droga em valor e importância. Tudo isso pode conferir às naturezas mais modestas uma ilusão de soberania que seria impossível em casa ou no exercício das funções profissionais. O fumante valoriza esse estado de espírito não apenas porque ele influi na sua relação com os outros-, mas porque o próprio viciado passa a se ver com outros olhos. Do mesmo modo como o mecanismo da inibição se manifesta sobretudo na voz tornada áspera, rouca, embargada, coisa de que o falante se dá conta um pouco melhor que o ouvinte, a abolição desse mecanismo, ao menos no modo de sentir do sujeito, dá-se a conhecer por meio de um surpreendente, preciso e agradável domínio da própria voz.
A descontração que está na raiz desses acontecimentos não é sempre um efeito imediato da droga. Surge outro fator nos casos em que várias pessoas intoxicadas se reúnem. Certas drogas têm em comum o fato de aumentarem consideravelmente o prazer da convivência entre parceiros, a tal ponto que não é raro manifestar-se uma espécie de misantropia entre eles. Lidar com alguém que não participe de suas práticas parece-lhes tão penoso quanto inútil. Obviamente, esse encantamento não deriva apenas da conversação. Por outro lado, é provável que, para aqueles que as promovem constantemente, o grande atrativo dessas experiências não resida apenas na mera supressão das inibições. Aqui parece dar-se como que uma junção dos sentimentos de inferioridade, complexos e perturbações dos diferentes parceiros. Cada viciado absorve no outro seus fluidos negativos, participando assim de uma catarse coletiva. É obvio que isso acarreta riscos extraordinários. Porém, tal circunstância pode explicar também o valor enorme e até inestimável que o vício assume justamente nas constelações mais comuns do dia a dia.
O fumante de ópio ou comedor de haxixe experimenta uma força no olhar que lhe permite apreender no mesmo espaço mil lugares diferentes.
Sono pela manhã, depois de fumar. Disse-me naquele momento que era como se a vida houvesse sido posta em conserva num pote fechado. O sono era o líquidoi que a conservara e que agora se despejava na pia, repleto de todos os odores da vida.
“Les mouchoirs accrochés au mur tiennent pour moi La place entre torche et torchon.”
Rot c’est comme um papillon qui va se poser sur chacune dês nuances de la couleur rouge”
(Walter Benjamim. Haxixe. Tradução: Flávio de Menezes e Carlos Nelson Coutinho, SP: Brasiliense, 2º edição, 1984, p. 37 á 41 )
Nenhum comentário:
Postar um comentário