Sexto Empírico - Hipotiposes Pirrônicas
Tradução*
Danilo Marcondes
Livro l
Capítulo I: Sobre a principal diferença entre os sistemas filosóficos.
O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser isto inapreensível, ou ainda, persiste em sua busca. O mesmo ocorre com as investigações filosóficas, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade, outros que a verdade não pode ser apreendida, enquanto outros continuam buscando. Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade são os "dogmáticos", assim são chamados especialmente Aristóteles, por exemplo, Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e os céticos continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética. Sobre os dois primeiros sistemas deixemos que outros falem, nossa tarefa presentemente é descrever em linhas gerais (Ípotupvtik«w) a maneira cética de filosofar (skeptkw∞ égvg∞w), esclarecendo inicialmente que as nossas asserções futuras não devem ser entendidas como afirmando positivamente que as coisas são tais como dizemos, mas simplesmente registramos como um cronista (Ístorik«w), cada coisa tal como nos aparece no momento.
Capítulo II: Sobre os argumentos dos céticos
Na filosofia cética há um tipo de argumentação, ou linha de exposição, geral e outra específica. Na argumentação geral apresentamos as características próprias do ceticismo, seus propósitos e princípios, seus argumentos, seu critério e seus objetivos, assim como os "tropos" ou "modos" que levam à suspensão do juízo (ofl trÒpoi t∞w §pox∞w), o sentido em que adotamos as fórmulas céticas, bem como a distinção entre o ceticismo e as filosofias com que se relaciona. Na argumentação específica, formulamos objeções contra as diversas divisões da assim chamada filosofia. Vamos, pois, considerar em primeiro lugar a argumentação genérica, começando nossa apresentação com os nomes dados ao ceticismo.
Capítulo III: Sobre as denominações do Ceticismo
A filosofia cética é denominada "zetética" devido à sua atividade de investigar (zhte›n) e indagar (sk°ptesyai); "efética" (§FektikÆ), ou suspensiva, devido ao estado (pãyow) produzido naquele que investiga após a sua busca; e "aporética", ou dubitativa, seja, segundo alguns, devido a seu hábito de duvidar (épore› n) e de buscar (zhte›n), ou devido à sua indecisão quanto à afirmação ou negação; e "Pirrônica", a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores.
Capítulo IV: O que é o Ceticismo?
O ceticismo é uma habilidade (dÊnamiw) que opõe as coisas que aparecem (fainÒmena) e que são pensadas (nooum°nvn)de todos os modos possíveis, com o resultado de que devido à eqüipolência nesta oposição tanto no que diz respeito aos objetos (prãgmasi) quanto às explicações (lÒgoi), somos levados inicialmente à suspensão (§pox∞) e depois à tranqüilidade (étaraj¤a). Nós o denominamos "habilidade", não em um sentido especial, mas simplesmente no sentido de "ser hábil ou
* Publicada originalmente na revista O que nos faz pensar, número 12, setembro de 1997, p 115-122.
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capaz de algo". As coisas que aparecem (fainÒmena) são entendidas neste contexto como objetos da percepção sensível (afisyhtã), os quais contrastamos com objetos do pensamento (noetã). A expressão "de todos os modos possíveis" pode ser relacionada seja com a palavra "habilidade", em seu sentido usual, como dissemos; ou pode ser relacionada com "opõe as coisas que aparecem e que são pensadas", na medida em que opomos coisas que aparecem a coisas que aparecem, coisas pensadas a coisas pensadas, coisas que aparecem a coisas pensadas e vice-versa, a expressão "de todos os modos possíveis" permitindo designar todas estas diferentes formas de oposição. Ou ainda, podemos relacionar "de todos os modos possíveis" com "coisas que aparecem e que são pensadas", indicando que não temos que nos perguntar sobre como o que aparece aparece, ou como o que é pensado é pensado, mas tomamos estes termos no sentido habitual. A expressão "explicações que se opõem" é tomada não na acepção de negação e afirmação (épofãsin ka‹ katãfasin), mas na de explicações conflitantes (maxom°nouw). "Eqüipolência" (fisosy°neian) nós usamos no sentido de equivalência quanto a ser crível (p¤stin) ou não crível (épist¤an), indicando que nenhuma das explicações em conflito é mais crível do que a outra. A suspensão (§poxÆ) é um estado mental de repouso (stãsiw dian¤oaw) no qual não afirmamos nem negamos nada. Ataraxia é a tranquilidade ou ausência de perturbação da alma (cux∞w). Como a ataraxia é obtida por meio da epoche é algo de que trataremos no capítulo sobre o objetivo do ceticismo [cap.XII].
Capítulo V: Sobre o cético
Na definição do procedimento cético (skeptk∞w égvg∞w), está incluída a do filósofo pirrônico: trata-se daquele que possui esta habilidade (dÁnamiw).
Capítulo VI: Sobre os Princípios (érx«n) do Ceticismo
A motivação fundamental que leva ao ceticismo é seu objetivo de atingir a tranqüilidade (étaraj¤a). Homens de talento, perturbados pelas contradições nas coisas e em dúvida sobre que alternativa adotar, foram levados a indagar sobre as coisas (prãgmasin) verdadeiras e sobre as falsas, esperando encontrar a tranqüilidade ao resolver esta questão. O princípio básico (érxÆ) do ceticismo é o de opor (éntike›syai) a cada explicação (lÒgo˚) uma outra equivalente (lÒgon ‡son), porque acreditam que assim deixarão de ter uma atitude dogmática (dogmat¤zein).
Capítulo VII: O cético dogmatiza?
Quando dizemos que o cético não dogmatiza, não usamos o termo "dogma" como alguns o utilizam, no sentido genérico de "dar a aprovação a algo", pois o cético dá assentimento a sensações que são o resultado necessário de impressões sensíveis, e ele não dirá, por exemplo, quando sente calor ou frio, "Não creio estar com calor (ou frio)". Mas dizemos que o cético não dogmatiza usando "dogma" no sentido, mantido por alguns, de "assentimento a objetos não-evidentes da investigação científica", pois os pirrônicos não dão assentimento a nada que seja não-evidente (êdÆlon). Nem sequer ao enunciar as fórmulas céticas sobre o não-evidente, tais como "Não mais [isso do que aquilo]", ou "Não determino nada", ou outras que discutiremos mais tarde [caps. XVIII-XXVIII], o cético dogmatiza. Pois, enquanto para o dogmático as coisas sobre as quais considera-se que dogmatiza são realmente existentes, os céticos não empregam essas fórmulas de maneira dogmática, como se fossem reais. Isto porque assim como considera que a fórmula "Tudo é falso" se aplica a si mesma além de a tudo mais (do mesmo modo que a fórmula "Nada é verdadeiro"), também a fórmula "Não mais", deve ser entendida como dizendo que ela própria não é mais isso do que aquilo, e portanto elimina a si mesma junto com o resto. E o mesmo dizemos das outras fórmulas. Portanto, o dogmático mantém serem reais as coisas sobre as quais tem crenças, mas o cético enuncia suas fórmulas de modo que elas próprias se auto-eliminam, e neste sentido não podem ser considerados como enunciando-as de forma dogmática. E o ponto principal é que ao enunciá-las ele diz aquilo que lhe aparece e relata o que sente
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(pãyo˚) de forma não-dogmática, sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa (¶jwyen Ípokeim°nvn).
Capítulo VIII: O cético pertence a uma escola?
Seguimos a mesma linha quanto à questão sobre se o cético pertence a uma escola. Pois se entendemos que pertencer a uma escola significa aderir a um conjunto de dogmas que dependem uns dos outros bem como do que aparece, e se dizemos que "dogma" é assentimento a algo não-evidente, então con-sideramos que o cético não pertence a nenhuma escola. Mas se entendemos por "escola" um procedimento que, de acordo com o que aparece, segue uma certa linha argumentativa mostrando como é possível viver corretamente ("corretamente" (Ùry«w] entendido como se referindo não apenas à virtude, mas em um sentido mais amplo e aplicando-se à habilidade de obter a suspensão), neste caso dizemos que o cético pertence a uma escola, uma vez que seguimos de modo coerente, de acordo com o que aparece, uma linha de raciocínio que nos indica uma forma de vida em conformidade com as leis e os costumes tradicionais e com nossos próprios sentimentos (ofike›apãyh).
Capítulo IX: O cético dedica-se às ciências naturais?
Respondemos da mesma maneira ao examinarmos a questão sobre se o cético dedica-se às ciências naturais. Não estudamos as ciências naturais com o objetivo de proferir asserções com firme convicção sobre os objetos destas ciências. Mas estudamos as ciências naturais de modo a sermos ca-pazes de opor a cada explicação científica uma outra explicação equivalente, e com o objetivo de alcançar a tranqüilidade. E é também desta mesma maneira que nos relacionamos com a lógica e a ética, os outros ramos da assim chamada "filosofia".
Capítulo X: Os céticos rejeitam o aparente?
Aqueles que afirmam que o cético rejeita o aparente (fainÒmena) não prestaram atenção ao que dissemos. Pois, como dissemos antes, não rejeitamos as impressões sensíveis (fantas¤an payhtikÆn) que nos levam ao assentimento involuntário (éboulÆtvw) e estas impressões são o aparente (fainÒmena). E quando investigamos se as coisas na realidade (Ípoke¤menon) são como parecem ser, aceitamos o fato de que aparecem e o que investigamos não diz respeito à aparência, mas à explicação da aparência, e isto é diferente de uma investigação sobre o aparente ele próprio. Por exemplo, o mel nos parece doce (e aceitamos isto na medida em que temos uma percepção sensível da doçura), porém se é doce em si mesmo é algo questionável, pois não se trata mais de uma aparência, mas de um juízo sobre o aparente. E mesmo se formulamos argumentos sobre o aparente, isto não se deve à intenção de rejeitarmos as aparências, mas apenas de mostrarmos a precipitação do dogmático, pois se a razão nos ilude de tal modo que nos tira até mesmo o aparente de debaixo de nossos olhos, então temos que tomar cuidado no caso das coisas não-evidentes (édÆloiw) para não nos precipitarmos ao segui-la.
Capítulo XI: Sobre o critério do ceticismo
Que aderimos ao aparente é claro a partir do que é dito sobre o critério (kritÆrion) do ceticismo. O termo "critério" é usado em dois sentidos: no primeiro, os critérios geram crenças sobre a realidade ou não de algo (discutiremos estes critérios ao refutá-los)1, e no segundo, temos critérios de ação, de acordo com os quais em nossa vida cotidiana praticamos certos atos e evitamos praticar outros, e é destes critérios que tratamos aqui. Dizemos então que para os céticos o critério é a aparência, querendo dizer com isso as impressões sensíveis, uma vez que estas consistem em sensações e afecções involuntárias e logo não estão sujeitas ao questionamento. Portanto, presumivelmente ninguém
1 Livro II, 14-17. 3
discutirá se uma coisa existente (Ípoke¤menon) tem esta ou aquela aparência, o que se discute é se de fato corresponde àquilo que aparece.
Aderindo, portanto, ao que aparece, vivemos de acordo com as normas da vida comum (bivtikØn tÆrhsin), de modo não-dogmático, já que não podemos permanecer totalmente inativos. Essas práticas que regulam a vida comum parecem ser de quatro tipos, consistindo primeiro na orientação natural (ÍfhgÆsei fÊsevw), depois no caráter necessário das sensações (énãgk˙), em seguida nas leis e costumes da tradição (paradÒsei nÒmvn te ka‹ §y«n), e por fim na instrução nas artes (didaskal¤a). Pela orientação natural somos capazes de percepção e de pensamento; é devido ao caráter necessário das sensações que a fome nos leva à comida e a sede à bebida; dadas as leis e os costumes da tradição consideramos em nossa vida cotidiana a piedade (eÈsebe›n) como um bem e a impiedade como algo de ruim; graças à instrução nas artes não permanecemos inativos naquelas que adotamos. E dizemos tudo isso de forma não-dogmática.
Capítulo XII: Qual a finalidade do ceticismo?
Nossa próxima questão será a finalidade do ceticismo. "Finalidade" (t°low) é aquilo visando o que todas as ações e raciocínios são realizados, enquanto que ela própria não existe com nenhum outro objetivo; ou ainda, o fim último do que se deseja. Dizemos ainda que a finalidade do cético é a tranqüilidade em questões de opinião e a sensação moderada quanto ao inevitável. Pois o cético, tendo começado a filosofar com o objetivo de decidir acerca da verdade ou falsidade das impressões sensíveis de modo a alcançar com isso a tranqüilidade, encontrou-se diante da eqüipolência nas controvérsias, e sem poder decidir sobre isto, adotou a suspensão, e, em conseqüência da suspensão seguiu-se, como que fortuitamente, a tranqüilidade em relação às questões de opinião. Pois aqueles que mantêm uma opinião sobre se algo é por natureza bom ou mau estão sempre perturbados. Quando se encontram privados daquilo que consideram bom, sentem-se afligidos por algo naturalmente mau e passam a buscar aquilo que pensam ser bom. E ao obter isso sentem-se ainda mais perturbados, já que ficam contentes de forma irracional e imoderada e passam a recear que as coisas mudem e percam aquilo que pensam ser bom. Mas, ao contrário, aqueles que não determinam serem as coisas naturalmente boas ou más, não as evitam nem as buscam avidamente, e, por isso, não se perturbam.
Um fato que se conta sobre o pintor Apeles se aplica igualmente ao cético. Certa vez, segundo se conta, Apeles estava pintando um cavalo e desejava representar a espuma em sua boca, porém, sem sucesso, desistiu disto e lançou contra a tela a esponja que usava para limpar os pincéis, conseguindo com isto o efeito pretendido da espuma na boca do cavalo. Do mesmo modo, os céticos pretendiam alcançar a tranqüilidade decidindo sobre as anomalias em relação às sensações e aos pensamentos, e incapazes de conseguir isto, suspenderam o juízo. Ao fazê-lo, entretanto, descobriram que, como que por acaso, a tranqüilidade seguiu-se à suspensão, como uma sombra segue um corpo. Não supomos, contudo, que o cético não tenha perturbações, mas admitimos que ele sofra as perturbações inevitáveis, pois ele sente frio e sede e várias sensações deste tipo. Mas, mesmo nestes casos, enquanto que as pessoas comuns são afetadas de duas maneiras: primeiro pela afecção ela própria, e, além disso, igualmente, pela crença de que isto é ruim por natureza, os céticos, ao rejeitarem a crença adicional de que estas coisas são ruins por natureza, sofrem menos com isso. Portanto, dizemos que, em relação a questões de opinião a finalidade do cético é a tranqüilidade, e em relação ao inevitável uma forma moderada (metriopãyeian) de sensação. Mas alguns céticos importantes acrescentaram como uma finalidade adicional, a suspensão do juízo em relação ao que se investiga.
Tradução de Danilo Marcondes
Nota do Tradutor
As Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico (séc.II) são nossa principal fonte de conhecimento do Ceticismo Pirrônico, e após sua tradução para o latim (por H. Etienne) em 1562 e subsequente divulgação, tiveram uma
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influência marcante no desenvolvimento do Pensamento Moderno. Apresentamos aqui os doze primeiros capítulos do Livro I desta obra, que nos parecem especialmente importantes por conterem uma caracterização de alguns dos conceitos-chave do Ceticismo.
Esta tradução baseia-se no texto grego da edição da Loeb Classical Library (Harvard University Press, Cambridge, Mass., e Heinemann, London, 1976 [1ª ed.,1933]), apresentado paralelamente, bem como nas tra-duções para o inglês de R. G. Bury da edição Loeb, na de J. Annas e J. Barnes (Outlines of Scepticism, Cambridge Univ.Press, 1994) e na mais recente de Benson Mates, The Skeptic Way, Sextus Empiricus's Outlines of Pyrrhonism, Oxford Univ. Press, 1996. É significativo notar que após mais de 60 anos de existência da tradução de Bury para o inglês, surgiram mais duas novas traduções para esta língua, o que atesta o interesse que a discussão sobre o ceticismo vem despertando na filosofia ultimamente.
Optamos por manter o título original "Hipotiposes", embora Bury, Annas e Barnes e Mates o traduzam por "outlines", e em espanhol se encontre freqüentemente a tradução "bosquejos", sendo que ambos estes termos poderiam ser traduzidos por "esboços". Consideramos, entretanto, que o termo "hipotipose" tem um sentido bastante específico, designando um tipo de texto, de resto bastante comum na época. Enesidemo (séc. I a.C), fun-dador do movimento cético de que Sexto Empírico foi um seguidor, escreveu também Hipotiposes, obra hoje perdida. O termo "hipotipose" designa uma figura de linguagem consistindo em uma descrição tão vívida de algo que é como se o tivéssemos diante de nós2. Esta é a definição que encontramos, por exemplo, na Institutio Oratória (IX, 2, 40) de Quintiliano: "trata-se de uma representação dos fatos em termos tão expressivos que cre-mos vê-los e não apenas ouvi-los". É com base nesta acepção de "hipotipose", bastante distante de um simples "esboço", que preferimos manter o termo original.
2 V. J. Laurent, "La Notion d"esquisse' selon Sextus Empiricus", Revue Philosophique de la France et de l'étranger, n. 4, Oct./Dec.l993, pp. 649-659.
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Tradução*
Danilo Marcondes
Livro l
Capítulo I: Sobre a principal diferença entre os sistemas filosóficos.
O resultado natural de qualquer investigação é que aquele que investiga ou bem encontra aquilo que busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser isto inapreensível, ou ainda, persiste em sua busca. O mesmo ocorre com as investigações filosóficas, e é provavelmente por isso que alguns afirmaram ter descoberto a verdade, outros que a verdade não pode ser apreendida, enquanto outros continuam buscando. Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade são os "dogmáticos", assim são chamados especialmente Aristóteles, por exemplo, Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e os céticos continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética. Sobre os dois primeiros sistemas deixemos que outros falem, nossa tarefa presentemente é descrever em linhas gerais (Ípotupvtik«w) a maneira cética de filosofar (skeptkw∞ égvg∞w), esclarecendo inicialmente que as nossas asserções futuras não devem ser entendidas como afirmando positivamente que as coisas são tais como dizemos, mas simplesmente registramos como um cronista (Ístorik«w), cada coisa tal como nos aparece no momento.
Capítulo II: Sobre os argumentos dos céticos
Na filosofia cética há um tipo de argumentação, ou linha de exposição, geral e outra específica. Na argumentação geral apresentamos as características próprias do ceticismo, seus propósitos e princípios, seus argumentos, seu critério e seus objetivos, assim como os "tropos" ou "modos" que levam à suspensão do juízo (ofl trÒpoi t∞w §pox∞w), o sentido em que adotamos as fórmulas céticas, bem como a distinção entre o ceticismo e as filosofias com que se relaciona. Na argumentação específica, formulamos objeções contra as diversas divisões da assim chamada filosofia. Vamos, pois, considerar em primeiro lugar a argumentação genérica, começando nossa apresentação com os nomes dados ao ceticismo.
Capítulo III: Sobre as denominações do Ceticismo
A filosofia cética é denominada "zetética" devido à sua atividade de investigar (zhte›n) e indagar (sk°ptesyai); "efética" (§FektikÆ), ou suspensiva, devido ao estado (pãyow) produzido naquele que investiga após a sua busca; e "aporética", ou dubitativa, seja, segundo alguns, devido a seu hábito de duvidar (épore› n) e de buscar (zhte›n), ou devido à sua indecisão quanto à afirmação ou negação; e "Pirrônica", a partir do fato de que Pirro parece ter se dedicado ao ceticismo de forma mais significativa do que seus predecessores.
Capítulo IV: O que é o Ceticismo?
O ceticismo é uma habilidade (dÊnamiw) que opõe as coisas que aparecem (fainÒmena) e que são pensadas (nooum°nvn)de todos os modos possíveis, com o resultado de que devido à eqüipolência nesta oposição tanto no que diz respeito aos objetos (prãgmasi) quanto às explicações (lÒgoi), somos levados inicialmente à suspensão (§pox∞) e depois à tranqüilidade (étaraj¤a). Nós o denominamos "habilidade", não em um sentido especial, mas simplesmente no sentido de "ser hábil ou
* Publicada originalmente na revista O que nos faz pensar, número 12, setembro de 1997, p 115-122.
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capaz de algo". As coisas que aparecem (fainÒmena) são entendidas neste contexto como objetos da percepção sensível (afisyhtã), os quais contrastamos com objetos do pensamento (noetã). A expressão "de todos os modos possíveis" pode ser relacionada seja com a palavra "habilidade", em seu sentido usual, como dissemos; ou pode ser relacionada com "opõe as coisas que aparecem e que são pensadas", na medida em que opomos coisas que aparecem a coisas que aparecem, coisas pensadas a coisas pensadas, coisas que aparecem a coisas pensadas e vice-versa, a expressão "de todos os modos possíveis" permitindo designar todas estas diferentes formas de oposição. Ou ainda, podemos relacionar "de todos os modos possíveis" com "coisas que aparecem e que são pensadas", indicando que não temos que nos perguntar sobre como o que aparece aparece, ou como o que é pensado é pensado, mas tomamos estes termos no sentido habitual. A expressão "explicações que se opõem" é tomada não na acepção de negação e afirmação (épofãsin ka‹ katãfasin), mas na de explicações conflitantes (maxom°nouw). "Eqüipolência" (fisosy°neian) nós usamos no sentido de equivalência quanto a ser crível (p¤stin) ou não crível (épist¤an), indicando que nenhuma das explicações em conflito é mais crível do que a outra. A suspensão (§poxÆ) é um estado mental de repouso (stãsiw dian¤oaw) no qual não afirmamos nem negamos nada. Ataraxia é a tranquilidade ou ausência de perturbação da alma (cux∞w). Como a ataraxia é obtida por meio da epoche é algo de que trataremos no capítulo sobre o objetivo do ceticismo [cap.XII].
Capítulo V: Sobre o cético
Na definição do procedimento cético (skeptk∞w égvg∞w), está incluída a do filósofo pirrônico: trata-se daquele que possui esta habilidade (dÁnamiw).
Capítulo VI: Sobre os Princípios (érx«n) do Ceticismo
A motivação fundamental que leva ao ceticismo é seu objetivo de atingir a tranqüilidade (étaraj¤a). Homens de talento, perturbados pelas contradições nas coisas e em dúvida sobre que alternativa adotar, foram levados a indagar sobre as coisas (prãgmasin) verdadeiras e sobre as falsas, esperando encontrar a tranqüilidade ao resolver esta questão. O princípio básico (érxÆ) do ceticismo é o de opor (éntike›syai) a cada explicação (lÒgo˚) uma outra equivalente (lÒgon ‡son), porque acreditam que assim deixarão de ter uma atitude dogmática (dogmat¤zein).
Capítulo VII: O cético dogmatiza?
Quando dizemos que o cético não dogmatiza, não usamos o termo "dogma" como alguns o utilizam, no sentido genérico de "dar a aprovação a algo", pois o cético dá assentimento a sensações que são o resultado necessário de impressões sensíveis, e ele não dirá, por exemplo, quando sente calor ou frio, "Não creio estar com calor (ou frio)". Mas dizemos que o cético não dogmatiza usando "dogma" no sentido, mantido por alguns, de "assentimento a objetos não-evidentes da investigação científica", pois os pirrônicos não dão assentimento a nada que seja não-evidente (êdÆlon). Nem sequer ao enunciar as fórmulas céticas sobre o não-evidente, tais como "Não mais [isso do que aquilo]", ou "Não determino nada", ou outras que discutiremos mais tarde [caps. XVIII-XXVIII], o cético dogmatiza. Pois, enquanto para o dogmático as coisas sobre as quais considera-se que dogmatiza são realmente existentes, os céticos não empregam essas fórmulas de maneira dogmática, como se fossem reais. Isto porque assim como considera que a fórmula "Tudo é falso" se aplica a si mesma além de a tudo mais (do mesmo modo que a fórmula "Nada é verdadeiro"), também a fórmula "Não mais", deve ser entendida como dizendo que ela própria não é mais isso do que aquilo, e portanto elimina a si mesma junto com o resto. E o mesmo dizemos das outras fórmulas. Portanto, o dogmático mantém serem reais as coisas sobre as quais tem crenças, mas o cético enuncia suas fórmulas de modo que elas próprias se auto-eliminam, e neste sentido não podem ser considerados como enunciando-as de forma dogmática. E o ponto principal é que ao enunciá-las ele diz aquilo que lhe aparece e relata o que sente
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(pãyo˚) de forma não-dogmática, sem afirmar nada de positivo sobre o que existe na realidade externa (¶jwyen Ípokeim°nvn).
Capítulo VIII: O cético pertence a uma escola?
Seguimos a mesma linha quanto à questão sobre se o cético pertence a uma escola. Pois se entendemos que pertencer a uma escola significa aderir a um conjunto de dogmas que dependem uns dos outros bem como do que aparece, e se dizemos que "dogma" é assentimento a algo não-evidente, então con-sideramos que o cético não pertence a nenhuma escola. Mas se entendemos por "escola" um procedimento que, de acordo com o que aparece, segue uma certa linha argumentativa mostrando como é possível viver corretamente ("corretamente" (Ùry«w] entendido como se referindo não apenas à virtude, mas em um sentido mais amplo e aplicando-se à habilidade de obter a suspensão), neste caso dizemos que o cético pertence a uma escola, uma vez que seguimos de modo coerente, de acordo com o que aparece, uma linha de raciocínio que nos indica uma forma de vida em conformidade com as leis e os costumes tradicionais e com nossos próprios sentimentos (ofike›apãyh).
Capítulo IX: O cético dedica-se às ciências naturais?
Respondemos da mesma maneira ao examinarmos a questão sobre se o cético dedica-se às ciências naturais. Não estudamos as ciências naturais com o objetivo de proferir asserções com firme convicção sobre os objetos destas ciências. Mas estudamos as ciências naturais de modo a sermos ca-pazes de opor a cada explicação científica uma outra explicação equivalente, e com o objetivo de alcançar a tranqüilidade. E é também desta mesma maneira que nos relacionamos com a lógica e a ética, os outros ramos da assim chamada "filosofia".
Capítulo X: Os céticos rejeitam o aparente?
Aqueles que afirmam que o cético rejeita o aparente (fainÒmena) não prestaram atenção ao que dissemos. Pois, como dissemos antes, não rejeitamos as impressões sensíveis (fantas¤an payhtikÆn) que nos levam ao assentimento involuntário (éboulÆtvw) e estas impressões são o aparente (fainÒmena). E quando investigamos se as coisas na realidade (Ípoke¤menon) são como parecem ser, aceitamos o fato de que aparecem e o que investigamos não diz respeito à aparência, mas à explicação da aparência, e isto é diferente de uma investigação sobre o aparente ele próprio. Por exemplo, o mel nos parece doce (e aceitamos isto na medida em que temos uma percepção sensível da doçura), porém se é doce em si mesmo é algo questionável, pois não se trata mais de uma aparência, mas de um juízo sobre o aparente. E mesmo se formulamos argumentos sobre o aparente, isto não se deve à intenção de rejeitarmos as aparências, mas apenas de mostrarmos a precipitação do dogmático, pois se a razão nos ilude de tal modo que nos tira até mesmo o aparente de debaixo de nossos olhos, então temos que tomar cuidado no caso das coisas não-evidentes (édÆloiw) para não nos precipitarmos ao segui-la.
Capítulo XI: Sobre o critério do ceticismo
Que aderimos ao aparente é claro a partir do que é dito sobre o critério (kritÆrion) do ceticismo. O termo "critério" é usado em dois sentidos: no primeiro, os critérios geram crenças sobre a realidade ou não de algo (discutiremos estes critérios ao refutá-los)1, e no segundo, temos critérios de ação, de acordo com os quais em nossa vida cotidiana praticamos certos atos e evitamos praticar outros, e é destes critérios que tratamos aqui. Dizemos então que para os céticos o critério é a aparência, querendo dizer com isso as impressões sensíveis, uma vez que estas consistem em sensações e afecções involuntárias e logo não estão sujeitas ao questionamento. Portanto, presumivelmente ninguém
1 Livro II, 14-17. 3
discutirá se uma coisa existente (Ípoke¤menon) tem esta ou aquela aparência, o que se discute é se de fato corresponde àquilo que aparece.
Aderindo, portanto, ao que aparece, vivemos de acordo com as normas da vida comum (bivtikØn tÆrhsin), de modo não-dogmático, já que não podemos permanecer totalmente inativos. Essas práticas que regulam a vida comum parecem ser de quatro tipos, consistindo primeiro na orientação natural (ÍfhgÆsei fÊsevw), depois no caráter necessário das sensações (énãgk˙), em seguida nas leis e costumes da tradição (paradÒsei nÒmvn te ka‹ §y«n), e por fim na instrução nas artes (didaskal¤a). Pela orientação natural somos capazes de percepção e de pensamento; é devido ao caráter necessário das sensações que a fome nos leva à comida e a sede à bebida; dadas as leis e os costumes da tradição consideramos em nossa vida cotidiana a piedade (eÈsebe›n) como um bem e a impiedade como algo de ruim; graças à instrução nas artes não permanecemos inativos naquelas que adotamos. E dizemos tudo isso de forma não-dogmática.
Capítulo XII: Qual a finalidade do ceticismo?
Nossa próxima questão será a finalidade do ceticismo. "Finalidade" (t°low) é aquilo visando o que todas as ações e raciocínios são realizados, enquanto que ela própria não existe com nenhum outro objetivo; ou ainda, o fim último do que se deseja. Dizemos ainda que a finalidade do cético é a tranqüilidade em questões de opinião e a sensação moderada quanto ao inevitável. Pois o cético, tendo começado a filosofar com o objetivo de decidir acerca da verdade ou falsidade das impressões sensíveis de modo a alcançar com isso a tranqüilidade, encontrou-se diante da eqüipolência nas controvérsias, e sem poder decidir sobre isto, adotou a suspensão, e, em conseqüência da suspensão seguiu-se, como que fortuitamente, a tranqüilidade em relação às questões de opinião. Pois aqueles que mantêm uma opinião sobre se algo é por natureza bom ou mau estão sempre perturbados. Quando se encontram privados daquilo que consideram bom, sentem-se afligidos por algo naturalmente mau e passam a buscar aquilo que pensam ser bom. E ao obter isso sentem-se ainda mais perturbados, já que ficam contentes de forma irracional e imoderada e passam a recear que as coisas mudem e percam aquilo que pensam ser bom. Mas, ao contrário, aqueles que não determinam serem as coisas naturalmente boas ou más, não as evitam nem as buscam avidamente, e, por isso, não se perturbam.
Um fato que se conta sobre o pintor Apeles se aplica igualmente ao cético. Certa vez, segundo se conta, Apeles estava pintando um cavalo e desejava representar a espuma em sua boca, porém, sem sucesso, desistiu disto e lançou contra a tela a esponja que usava para limpar os pincéis, conseguindo com isto o efeito pretendido da espuma na boca do cavalo. Do mesmo modo, os céticos pretendiam alcançar a tranqüilidade decidindo sobre as anomalias em relação às sensações e aos pensamentos, e incapazes de conseguir isto, suspenderam o juízo. Ao fazê-lo, entretanto, descobriram que, como que por acaso, a tranqüilidade seguiu-se à suspensão, como uma sombra segue um corpo. Não supomos, contudo, que o cético não tenha perturbações, mas admitimos que ele sofra as perturbações inevitáveis, pois ele sente frio e sede e várias sensações deste tipo. Mas, mesmo nestes casos, enquanto que as pessoas comuns são afetadas de duas maneiras: primeiro pela afecção ela própria, e, além disso, igualmente, pela crença de que isto é ruim por natureza, os céticos, ao rejeitarem a crença adicional de que estas coisas são ruins por natureza, sofrem menos com isso. Portanto, dizemos que, em relação a questões de opinião a finalidade do cético é a tranqüilidade, e em relação ao inevitável uma forma moderada (metriopãyeian) de sensação. Mas alguns céticos importantes acrescentaram como uma finalidade adicional, a suspensão do juízo em relação ao que se investiga.
Tradução de Danilo Marcondes
Nota do Tradutor
As Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico (séc.II) são nossa principal fonte de conhecimento do Ceticismo Pirrônico, e após sua tradução para o latim (por H. Etienne) em 1562 e subsequente divulgação, tiveram uma
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influência marcante no desenvolvimento do Pensamento Moderno. Apresentamos aqui os doze primeiros capítulos do Livro I desta obra, que nos parecem especialmente importantes por conterem uma caracterização de alguns dos conceitos-chave do Ceticismo.
Esta tradução baseia-se no texto grego da edição da Loeb Classical Library (Harvard University Press, Cambridge, Mass., e Heinemann, London, 1976 [1ª ed.,1933]), apresentado paralelamente, bem como nas tra-duções para o inglês de R. G. Bury da edição Loeb, na de J. Annas e J. Barnes (Outlines of Scepticism, Cambridge Univ.Press, 1994) e na mais recente de Benson Mates, The Skeptic Way, Sextus Empiricus's Outlines of Pyrrhonism, Oxford Univ. Press, 1996. É significativo notar que após mais de 60 anos de existência da tradução de Bury para o inglês, surgiram mais duas novas traduções para esta língua, o que atesta o interesse que a discussão sobre o ceticismo vem despertando na filosofia ultimamente.
Optamos por manter o título original "Hipotiposes", embora Bury, Annas e Barnes e Mates o traduzam por "outlines", e em espanhol se encontre freqüentemente a tradução "bosquejos", sendo que ambos estes termos poderiam ser traduzidos por "esboços". Consideramos, entretanto, que o termo "hipotipose" tem um sentido bastante específico, designando um tipo de texto, de resto bastante comum na época. Enesidemo (séc. I a.C), fun-dador do movimento cético de que Sexto Empírico foi um seguidor, escreveu também Hipotiposes, obra hoje perdida. O termo "hipotipose" designa uma figura de linguagem consistindo em uma descrição tão vívida de algo que é como se o tivéssemos diante de nós2. Esta é a definição que encontramos, por exemplo, na Institutio Oratória (IX, 2, 40) de Quintiliano: "trata-se de uma representação dos fatos em termos tão expressivos que cre-mos vê-los e não apenas ouvi-los". É com base nesta acepção de "hipotipose", bastante distante de um simples "esboço", que preferimos manter o termo original.
2 V. J. Laurent, "La Notion d"esquisse' selon Sextus Empiricus", Revue Philosophique de la France et de l'étranger, n. 4, Oct./Dec.l993, pp. 649-659.
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