domingo, 11 de julho de 2010

house para historiadores



Em seu clássico ensaio “SINAIS: RAÍZES DE UM PARADIGMA INDICIÁRIO”, o historiador Carlo Ginszburg, a partir da trípice analogia entre a critica de arte desenvolvida por Morelli, a psicanálise  freudiana e a técnica investigativa utilizada pela personagem de Sherlock Holmes, traça um original esboço do novo paradigma que, segundo ele,  afirmou-se no século XIX, mais precisamente na década de 1870-80.
Trata-se do método indiciário inspirado pelo modelo cognitivo fornecido pela semiótica medica, mas cujas raízes são demasiadamente arcaicas e remetem aquele que, segundo o autor,  talvez seja o mais antigo gesto da história intelectual do gênero humano: “o caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa”.
Em suas próprias palavras,
 “Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira de ciladas.
Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio cognitivo. Na falta de uma documentação verbal para se pôr ao lado das pinturas rupestres e dos artefatos, podemos recorrer às narrativas de fábulas, que do saber daqueles remotos caçadores transmite-nos às vezes um eco, mesmo que tardio e deformado.”
( Carlo Ginszburg. Sinais: Raízes de um paradigma Indiciário in Mitos, Emblemas e Sinais. SP: Companhia das Letras, p. 151)
Esta verdadeira gramática dos pormenores construída por gerações e gerações de caçadores, encontra-se  difundida em todo o mundo como uma forma milenar de conhecimento que, parafraseando o autor, une estreitamente o animal homem às outras espécies animais.
Seguindo os passos de Ginsburg, ouso afirmar que na época moderna tal modalidade de conhecimento ganhou um novo alento e significado com a decadência do pensamento sistêmico a partir do sec. XVIII, na medida em que se tornou possível, no plano do saber erudito, formular juízos sobre o homem e a sociedade a partir de sintomas e indícios.
Cabe  observar que o paradigma indiciário ou semiótico, tal como afirma  nosso autor, “penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos, modelando profundamente as ciências humanas”, tanto quanto foi amplamente utilizado ao longo do séc. XIX para elaboração de “formas de controle social sempre mais sutis e minuciosas”.
 Em ambos os casos trata-se de uma redefinição do status do conhecimento na época moderna a partir do desenvolvimento de novas formas de saber “tendencialmente mudas”, no sentido de que suas regras não se prestam a formalização ou a transmissão de procedimentos pré determinados,  já que utiliza em sua essência o imponderável da intuição.
Se o historiador encontra-se familiarizado com tal paradigma indiciário através da chamada micro- história, o grande publico não raramente depara-se com ele através da ficção, seja personificada pelo clássico universo de historias de detetive, que nos remete mais do que qualquer outro aos casos  e aventuras do oitocentista  Sherlock Holmes, criado por  Sir  Arthur Conan Doyle,  ou, mais recentemente,  através de  séries de TV como CSI ou House MD.
O médico Gregory House, uma espécie de Sherlock Holmes da medicina, representa, ao meu ver, a mais complexa tradução do arquétipo do homem de ciências orientado por uma racionalidade indiciária. Sua vida resume-se ao seu oficio, ao ethos definido pela cotidiana instrumentalização do seu saber, que é também uma codificação da realidade e do mundo.
 A suposta falta de ética de House, sua aversão a autoridade e aos protocolos sociais, bem como sua inadequação á convencional persona do medico, são estratégias de distinção e  individuação em uma sociedade de massas, onde os vestígios individuais tendem a ser  empalidecidos ou apagados pelo existir coletivo, onde o micro universo do efêmero e do particular é mais revelador sobre a realidade do humano do que os discursos  e conceitos articulados pelos lugares comuns do trato social, dos diagnósticos convencionais da medicina mais ortodoxa, opções morais, valores ou sistemas de pensamento.

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