Quero aqui recorrer a um curioso mito medieval que personifica de modo ímpar a coincindentia oppositorum. Refiro-me a figura enigmática de Merlim. Em todas as épocas os poetas e os artistas expressaram de modo privilegiado as questões decisivas da vida coletiva. Muitas vezes denunciando, mesmo que involuntariamente, suas contradições mais veladas e as principais transformações em curso no Inconsciente Coletivo. A literatura européia do século XII não é exceção. Assim como a alquimia e os movimentos heréticos surgidos na mesma época em toda a Europa, a literatura inspirada pela chamada “matéria da Bretânea”, através da figura de José de Arimatéia, dá continuidade ao desenvolvimento do mito constelado, esboça uma reinterpretação do messianismo cristão que aponta para seu desdobramento.
A personagem de Merlim fez sua primeira aparição na literatura ocidental através da obra do clérigo galês GEOFFREY DE MONMOUTH (1100-1155). Por volta de 1135 surgem as PROPHETIA MERLINI, posteriormente incorporadas a HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE (1136). Em 1148 aparece a VIDA MERLINI cuja a autoria, embora discutível, também é atribuída a GEOFREY. Foi por intermédio de sua obra que Arthur, até então um folclórico chefe guerreiro que se destacara no combate aos invasores saxões durante o século VI, converteu-se em um poderoso monarca comparável a personalidades como Alexandre, o Grande, e Carlos Magno. Uma das fontes das quais GEOFREY se valeu para a composição de sua obra foi certamente a HISTÓRIA BRITTONUM de NENNIUS DE MÉRCIA, mas muito pouco se pode falar sobre as referências literárias e folclóricas que inspiraram o autor. Curiosamente, a preocupação relativa e poética com dados históricos ou seculares de suas obras contradiz uma característica dos continuadores da dita “matéria da Bretânha”, ou seja, a intemporalidade dos personagens e seu universo vívido. Essa peculiaridade lhe distancia das canções de gesta ou de outras composições medievais como a anônima CANÇÃO DOS NIBELUNGEN ou a CANÇÃO DE ROLAND.
A HISTÓRIA REGUM BRITANNIAE é pouco depois do seu aparecimento na Inglaterra traduzida para o francês pelo normando WACE DE JERSEY sob o título de ROMANCE DE BRUTUS. A tradução apresenta alguns elementos inexistentes no original como, por exemplo, a primeira menção a mesa redonda de Arthur. Ao longo dos séculos XII e XIII, a partir da Inglaterra e especialmente da França, cria-se e divulga-se pelas cortes da Europa toda uma literatura que transforma e aperfeiçoa a crônica, recriando as lendas folclóricas da antiga Bretânha perpetuadas pela tradição oral.
O mais significativo literato que, depois de GEOFREY DE MONMOUTH, ocupou-se da chamada “matéria da Bretânea” foi o francês CRISTIEN DE TROYES em cuja a obra, porém, a figura de Merlim aparece de modo velado na imagem de misteriosos eremitas que surgem significativamente no caminho dos cavaleiros de Arthur durante suas andanças e aventuras. A associação definitiva entre Merlim, a Távola Redonda e a lenda do Graal, pelo que se sabe até o momento, foi estabelecida por um outro francês chamado ROBERT DE BORON. Sua obra, ao contrário da de CRISTIEN, é de cunho claramente teológico, justapõe a imagem do profeta de origem misteriosa a imagem do santo Graal criando entre elas uma unidade enigmática. É justamente a partir do MERLIM de ROBERT DE BORON, escrito entre duas outras obras, JOSÉ DE ARIMATÉIA e PERCIVAL OU A QUESTÃO DO SANTO GRAAL , que pretendo tecer minhas considerações.
Em linhas gerais, estou inteiramente de acordo com a leitura de MARIE LOUISE VON FRANZ que vê na dualidade da origem de Merlim, filho do diabo e de uma virgem pura temente a Deus, a concidentia oppositorum que o faz portador do princípio da totalidade de modo muito similar ao mercúrio alquímico. Este fato torna-se mais compreensível quando associado ao drama do velho rei pescador. Na leitura da citada autora, o rei moribundo do Graal, representa a atitude cristã envelhecida. Sua ferida na coxa, na região genital, alude ao problema da natureza e da sexualidade não solucionado pelo cristianismo e ao estado de dissociação característico da consciência cristã frente a repressão dos conteúdos anímicos personificados pelo imaginário pagão. Merlim parece atuar no sentindo da superação da unilateralidade do ideal de espiritualide cristão mediante a imagem do Graal como personificação de uma nova totalidade que se insinua de modo contraditório e misterioso no imaginário medieval.
Na interpretação de EMMA JUNG , o obscuro profeta dos tempos de Arthur, é um ser luciferiano, semelhante a mefistófeles, um representante do “intelecto in statu nascendi”, uma personificação viva do logos e, simultaneamente, portador da numen naturae enquanto um deus de duas faces análogo a Hermes ou ao mercurius duplex da alquimia. O Merlim de ROBERT DE BORON realiza esta ambigüidade de modo realmente exemplar. Ele estabelece sobre o mito cristão uma interpretação distinta e complementar a dos evangelhos canônicos e da Igreja. Merlim usurpa assim, mesmo que veladamente, o lugar de cristo como mediador entre o homem e Deus. Coisa que ele mesmo confessa:
“...E farei tantas coisas e falarei tanto, que me tornarei o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus”
Além disso, como esclarece ao eremita Blaise, que “mete por escrito” a lenda do Graal:
“...Entretanto este livro não estará revestido de autoridade, porque o senhor não tem autoridade, visto que não pode ser um apóstolo. Os apóstolos não meteram em escrito senão o que viram e ouviram de Nosso Senhor, ao passo que o senhor, o faz é meter no livro o que viu e ouviu por meio de mim. E assim como eu sou obscuro para as pessoas a quem não quero esclarecer, assim seu livro será cheio de segredos e poucos haverá que os desvendarão.”
Este caráter obscuro e ambíguo de Merlim marca toda a narrativa. Filho de um incubo e de uma virgem, anunciado por um concílio de demônios, instrumento da vingança dos mesmos contra os profetas que anunciaram a vinda de Cristo, Merlim descarta, entretanto, a possibilidade de uma regressão ao paganismo e realiza, por intermédio da obra do Graal, um caminho alternativo de redenção que tem como centro a Távola Redonda. O segredo do Graal, nesta versão associado as palavras trocadas entre Jesus e José de Arimatéia, em momento algum é revelado. Como podemos ler em a A LENDA DO GRAAL de EMMA JUNG e MARIE LOUISE VON FRANZ:
“Palavras secretas de algum tipo aparecem em todas as versões da lenda do Graal. A pergunta tão essencial que o buscador tem que fazer ao rei doente e cuja omissão acarreta o novo desaparecimento do Graal é uma outra forma de dizer a mesma coisa. “
O Graal representa, no texto de ROBERT DE BORON, um aspecto da trindade que penetra na matéria terrena estabelecendo uma ponte para a solução do problema dos opostos e do Mal. Neste sentido ele é, como o próprio Merlim, símbolo da coicidentia oppositorum, e, ao mesmo tempo, uma consciência exteriorizada e projetada, algo bastante semelhante ao que no primeiro milênio da era cristã era identificado com o Espirito Santo e a nova era que este inauguraria a partir do segundo milênio.
Além das palavras misteriosas trocadas entre Jesus e José, existem outras imagens obscuras na obra. Uma das mais decisivas é a do assento perpetuamente vazio à Távola Redonda. Associado ao lugar de Judas na santa ceia ele só pode ser ocupado pelo cavaleiro do Graal que, desta forma, muito se assemelha a um novo messias. Nesta imagem revela-se o mais decisivo conteúdo da versão cristianizada da lenda, ou seja, o significado escatológico do cálice sagrado enquanto portador da solução do drama divino cristão.
EMMA JUNG e MARIE LOUISE VON FRANZ oferecem uma fecunda interpretação da lenda que nos permite melhor entender sua tragicidade inegável: Como a sociedade medieval não era capaz de solucionar o problema da coicidentia oppositorum, a narrativa permaneceu inacabada e o Graal, assim como Merlim, desapareceu do mundo, em conseqüência, a Távola Redonda dissolveu-se de forma dramática. Cabe, entretanto, observar que Merlim é o próprio conteúdo do recipiente do Graal (que também é um túmulo!). Em linguagem psicológica, tratar-se-ia de uma personificação da busca pela realização do principium individuationis.
Quanto ao cavaleiro do Graal, se Deus se fez homem através de si mesmo por intermédio da mítica figura de Cristo, Percival é um novo portador da luz que deve tornar possível a transfiguração do universo pelo espirito humano. Em outras palavras, cabe-lhe realizar, através do espirito do homem, aquilo que deveria ser realizado por Cristo através do espirito de Deus. Ocupar o assento perigoso, o lugar de Judas, talvez corresponda justamente a expectativa de um novo messias, secular e humano, cuja a nova consciência redima a humanidade de todo sofrimento. Trata-se, desta forma, da gestão de uma nova imagem do homem coletivo, do Antrophos, que dê continuidade a “missão” do “filho do homem”.
Mas é curiosa a distância existente entre Percival, o buscador da totalidade e, portanto, herói cristão, e Merlim, o filho do diabo e portador da própria totalidade. Como ser de origem antagônica, dotado de talentos divinos e diabólicos, Merlim é na verdade o homem original a ser liberto, o arquétipo do Antrophos, enquanto Percival é aquele que busca encontrar sua “salvação” ou a superação do estado de dissociação. Ignorado em muitas versões da lenda Arthusiana, Merlim permanece ausente das peregrinações de Percival sendo curiosamente difícil deduzir qualquer relacionamento mais concreto entre estas duas personagens chaves da lenda.
A resposta ao problema do Graal parece ter sido esboçada pela literatura alquímica que, de muitas formas, representa a aurora das ciências modernas, do incomparável desenvolvimento técnico científico através do qual o homem contemporâneo substituiria a Deus no domínio da natureza e de suas energias.
O inacabamento do mito em nada prejudica a realização de Merlim enquanto profeta que parece, aliais, transcender a própria Távola Redonda. Recusando toda forma de poder e questão mundana, como sugere a versão mais popular da lenda, ele se entrega totalmente ao princípio de Eros através dos braços de Vivianne ou a dama do lago, personagem inspirada na deusa celta das águas, Muirgen. Seu destino ilustra de forma significativamente poética o humano desejo de completude e virtude acima das atrocidades, confusões e contradições do mundo. Por outro lado, mediante sua ambígua natureza que lhe permite o domínio tanto do passado quanto do futuro, Merlin, personifica o ideal do historiador que, na máxima de HEINE, é um profeta que olha para trás.
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