domingo, 18 de maio de 2008

LITERATURA INGLESA XXIX


“We are the fools of time and terror


Lord Byron in Mnafred

Salman Rushdie (1947- ) é sem sombra de duvida um dos mais representativos autores contemporâneos da literatura inglesa. Nascido no seio de uma prospera família mulçumana em Bombaim, tornou-se súdito britânico após alguns anos de estudos na Inglaterra. Inicio a carreira de escritor em 1981 com a publicação do seu aclamado romance intitulado Os filhos da Meia Noite. Seu prestigio cresceu significativamente, entretanto, com a publicação de seu bombasticamente polêmico Versos Satânicos em 1988. Alem de reconhecimento e prêmios a obra lhe valeu uma sentença de morte promulgada pelo então aiatolá Khomeini, uma das mais bizarras personalidades publicas e globais do ultimo século. Cabe registrar, entretanto, que sua suposta ofensa ao islamismo é absolutamente fantasiosa e só se justifica pela miopia e irracionalidade do fundamentalismo islâmico.
O Ultimo suspiro do Mouro (1995), seu primeiro romance após a sentença de morte que lhe obriga até hoje a viver escondido e sobre proteção policial, nos apresenta um universo hibrido e plural onde a pluralidade e a diversidade apresenta-se como um traço essencial a nossas sensibilidades contemporâneas e uma alternativa fecunda aos fundamentalismos étnicos e políticos que ainda nos assombram no limiar deste novo milênio, apesar dos deslocamentos idenditários impostos pelo dinamismo vivo das gobalizações.
Surpreendentemente, a citada obra não possui qualquer referência direta ao absurdo episódio da condenação arbitraria do autor. Ela nos oferece apenas uma leitura saborosa, recheada de certo humor, perplexidade, crueldade, sofrimento, irracionalismos e todos os altos e baixos que compõe a aventura da vida humana sobre a terra.
Quanto ao apelo à pluralidade e ao hibridismo ou indeterminação identidária atualmente em pauta na experiência cultural ocidental, basta dizer que o herói narrador da narrativa é o filho de um judeu de ascendência espanhola e nome árabe com uma católica de ascendência portuguesa em uma India dividida pelo conflito entre hindus e mulçumanos.
Deixo aqui um significativo fragmento do comentado romance como uma insuficiente amostra do talento e da contemporaneidade da literatura de Rushdie que, através de seus romances, ainda é capaz de dizer o horror do mundo na peculiar lucidez de seu olhar literário.

“... Mas, pensando bem, não é necessário por a culpa em ancestrais e amantes. Minha carreira de espancador- minha fase martelo- foi fruto de um capricho da natureza, que me deu um punho direito tão poderoso, ainda que inútil para outros fins. Até então eu jamais matara ninguém; mas isso era mais uma questão de sorte, tendo em vista alguma surras violentíssimas e prolongadas que eu administrara. Se, no caso de Raman Keats, atribui-me as funções de juiz, júri e verdugo, o fiz em conformidade com minha própria natureza.
A civilização é um truque de prestidigitação que oculta de nós mesmos nossa verdadeira natureza. Minha mão, prezado leitor, não tinha dígitos capazes de executar um presto; mas ela entendia do assunto.
Assim, a sede de sangue estava no meu sangue, e nos meus ossos também. Uma tomada a decisão, jamais exitei; resolvi que me vingaria, ou então morreria tentando me vingar. Eu vinha pensando muito na morte. Agora encontrara uma maneira de dar sentido a uma morte inexpressiva. Dei-me conta, com uma espécie de surpresa abstrata, de que estava disposto a morrer, desde que o cadáver de Raman Keats estivesse junto ao meu. Ou seja: também eu me transformara num assassino fanático. ( Ou num vingador coberto de razão; escolha o que preferir.)
Violência é violência, assassinato é assassinato, um mal não justifica outro: eu tinha plena consciência dessas verdades. E também desta: quando descemos ao nível do adversário, perdemos nossa superioridade moral. Nos dias que se seguiram à destruição de Babri Masjid, “mulçumanos indignados”/ “assassinos fanáticos” ( mais uma vez, risque a opção que menos lhe agradar) destruíram templos hinduístas e mataram hindus, na Índia e no Paquistão também. Nesses surtos de violência coletiva chegamos a um ponto em que se torna irrelevante perguntar: “Quem foi que começou?” As conjugações múltiplas da morte se divorciam de qualquer possibilidade de justificação, muito menos de justiça. Hindus e mulçumanos irrompem a nossa voltam, de um lado e do outro, com facas e pistolas, matando, queimando, saqueando e brandindo os punhos erguidos em direção ao céu esfumaçado. Como seus atos, as causas que defendem se conspurcam; ambas perdem o direito de reivindicar qualquer virtude; uma se transforma no tormento da outra.
Não me eximo desta culpa. Fui um agente da violência por muito tempo, e na noite do dia em que Raman Keats insultou minha mãe na televisão dei fim a sua vida maldita por meio de um ato brutal. E, ao matá-lo, fiz com que minha própria existência fosse amaldiçoada.”


(SALMAN RUSHDIE. O ULTIMO SUSPIRO DO MOURO/ TRADUÇÃO DE PAULO HENRIQUE BRITTO. SP: COMPANHIA DAS LETRAS, 1996, P. 381 E 382)

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